Cebaldo de León: “Alguém disse que é uma enciclopédia que caminha de aldeia em aldeia”
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___________________________________________________________________________________Cebaldo de León Smith, autor, poeta, antropólogo, tem tido um trabalho no campo da antropologia, bem como da história e da ecologia política, e focado nos povos da cultura indígena Abya Yala. A Casa da América Latina conversou com ele no âmbito da nova exposição “Têxteis Extraordinários – Molas do Panamá”, que irá inaugurar em meados de junho na CAL.
Cebaldo de Léon Assume a curadoria de uma exposição que a Casa da América Latina vai inaugurar no decorrer do próximo mês de junho, dedicada às molas do Panamá. Assumindo que nem toda a gente sabe o que são as molas, como é que falaríamos delas?
As molas são a vestimenta comum, corrente, do dia-a-dia, da mulher kuna. Mas agora não é só uma vestimenta, já tem um estatuto de arte, de poesia. Isto deve-se ao facto de a forma como a mulher kuna interpreta o seu mundo e o mundo ser através dessas telas, que são sobrepostas e passadas a tecido. A criadora pode sonhar, tem os seus mundos oníricos, observa o que acontece no dia-a-dia na comunidade, e depois passa para a tela, faz o desenho, faz a escrita.
Ou seja, o povo kuna – um povo indígena do Panamá mas também da Colômbia – tem uma tradição associada à roupa, a que chamamos molas, e que, como o Cebaldo estava a dizer, é poética no sentido em que as mulheres kuna passam para um desenho e depois fazem a roupa, tanto os sonhos que têm como o que observam É isso?
Sim, contam histórias, é uma narrativa. Alguém disse que é uma enciclopédia que caminha de aldeia em aldeia porque alguém está a contar o que aconteceu. Mas antigamente, porque os kuna são originários da selva – estão em ilhas há 200 e tal anos por causa das conquistas e depois das migrações e afins, mas a origem era da selva, na zona da Serra Nevada na Colômbia, uma vez que antes não havia nem Colômbia nem Panamá, era um território indígena – as mulheres utilizavam a pintura para fazerem tatuagens no corpo, pintavam o corpo. Depois de passarem para as ilhas ficou diferente porque a floresta ficou para trás. A floresta continua a ser ecossistema para os kunas, para o cultivo, para cuidar e para trabalhar, mas todo o mundo passa a viver nas ilhas, e aí a forma de vestir passa a ser mais forte. Mas a origem mais antiga é a pintura corporal.
Portanto, começam por pintar o corpo, depois fazem esses desenhos e então trabalham os tecidos.
Sim, porque os tecidos não são uma criação kuna, o tecido é ocidental e compra-se, como a agulha e os fios. A ideia central é que é kuna, ou seja, o desenho, um pensamento, enfim, porque a tela vem de fora.
Pode dar-nos, por exemplo, uma narrativa associada a uma mola que o Cebaldo conheça? Conte-nos uma narrativa.
Por exemplo, a floresta, porque a mulher e o homem vão à floresta, ao rio. Há esta ligação importante à vida da floresta, sobretudo às plantas, plantas medicinais, tudo o que tenha a ver com as árvores. Há, no entanto, uma coisa importante a salientar: não é um desenho clássico, o olho não vê que é uma árvore. Pode ser uma forma da mulher a pensar que é uma árvore. Por isso, muitas vezes os desenhos são geométricos e têm uma geometria diferente.
Há muitos estudos sobre isso, agora há muitas teses de antropologia, sociologia, sobre as molas, que dizem que é uma arte abstrata.
Uma vez questionei uma mulher kuna, tentando traduzir o que é o abstrato para o mundo ocidental e para nós, e ela só se ria e dizia: “aqui não há nada abstrato, aqui simplesmente está água e um pássaro a voar, mas é a minha interpretação”. Faz lembrar um pouco a história do chapéu do Principezinho, porque essa é a interpretação que elas têm do seu mundo ou de como observam o mundo. Também existem figuras mais concretas, um barco, um helicóptero, por exemplo. A primeira vez que foi um helicóptero à aldeia, uma mulher viu e passou para a tela, e não só passa como é a roupa dela. Assim, ela vai contando essa história quando passa na rua.
Podemos dizer então que o povo kuna ou as mulheres kuna vestem a forma como veem o mundo e também como o imaginam?
Exatamente, a mola conta o mundo e conta o seu mundo através da sua roupa, está a narrar o que pensa, o que para ela é divertido inclusive.
E também o que imagina?
Sim, o que imagina, completamente! Existem muitas molas que eu não sei o que significam e elas sabem. Os teóricos fazem uma interpretação e por isso dizemos que é antropologia, mas esse é um caminho de caracol.
Qual é o papel dos sonhos, o papel onírico nas molas?
Na cultura kuna o onírico é fundamental. Por exemplo, muita da sabedoria e da medicina kuna passa pelos sonhos também, é uma forma de aprender, por isso o mundo onírico é fundamental. De tal maneira que há uma forma de cumprimento no povo kuna que eu ainda experimentei com o meu avô. Quando acordava de manhã, a primeira pergunta que ouvia era “Cebalito, o que é que sonhaste?”. Era como se fosse o “bom dia”. Ou seja, dizer “bom dia” na minha língua é dizer “o que sonhaste?”. Mesmo que não te lembres, porque muitas vezes não nos lembramos, é uma maneira de dizer que vou cuidar de ti hoje, conta-me as tuas duvidas, conta-me os teus medos, é um ato de solidariedade fantástico. E, para além disso, imagine o que é toda a gente a contar o que sonhou, é uma coisa preciosa. Porque pode ser algo sobre uma doença que poderá aparecer, alguma lembrança, entre outras coisas.
E a mulher kuna tem ainda essa capacidade de passar à tela o que sonhou, fazer o desenho sobre o sonho. Há quem utilize o papel ou quem use diretamente a tesoura para fazer as formas. Podem parecer, por exemplo, umas borboletas que falam ou um gato que ri, qualquer coisa. Por isso é que muita gente diz que é abstrato, porque não percebem o que quer dizer. Elas simplesmente querem contar o que sonharam. E dá-me impressão que, muitas vezes, elas entre elas percebem essa linguagem. Uma kuna vem vestida com a sua roupa, com a sua mola, e vem outra e ri-se. É um mundo feminino incrível e nós homens não percebemos. Bem, nós não percebemos muitas coisas (risos).
O povo kuna é matriarcal?
Sim, é um povo muito forte no feminino.
Esta exposição sobre as molas do Panamá vai mostrar o quê a quem a vier conhecer?
Vai mostrar essa criatividade, essa arte. Para quem vê pode ser considerado artesanato mas, no fundo, o artesanato é arte. É arte porque é uma forma de transmitir o mundo através da arte têxtil. E, simultaneamente, agora que temos um mundo globalizado e com mercados, a mola é uma mercadoria do Panamá. Porque a mulher kuna vende as molas, e isso também lhe deu poder. Agora, em muitas comunidades, a mulher kuna tem dinheiro efetivo porque é ela que desenha e vende. Porque hoje em dia os turistas que visitam o Panamá não podem ir embora sem levar pelo menos uma mola, ou o desenho de uma mola.
Ou seja, o que é uma tradição já com muitos anos de um povo indígena, é atualmente uma atração turística do Panamá?
E não só. Imagine que faz três anos agora que o Papa Francisco fez as Jornadas Mundiais da Juventude no Panamá, as que agora vão ser em Lisboa. Uma das prendas que ele mais apreciou foi oferecida pelos católicos kuna. Era uma estola lindíssima. Quando vai a algum lado, o Presidente do Panamá, ou ministros, ou os empresários, para além do café ou do rum, o que levam é sempre uma peça de mola.
Não é só turístico, é uma identidade.
Isso. Sobretudo, é uma identidade kuna. O povo kuna identifica-se através de duas coisas básica: a forma de governo – porque os kunas são os únicos que têm uma autonomia real na América Latina, devido a muitas negociações e a uma luta que aconteceu há 100 anos – e as molas. Ou seja, são duas coisas que mostram como está organizada a comunidade e o mundo das molas.
Quando diz que tem um sistema político autónomo e único, o que é que quer dizer?
Quero dizer que é a única comunidade indígena em toda a América Central, e possivelmente em toda a América Latina, que tem a sua própria administração de recursos, por exemplo. Ninguém que não seja kuna pode ter negócios nessas 400 ilhas. Todo o produto turístico é kuna, e é familiar ou comunitário. Todas as propostas que existem de grande envergadura são kunas.
Ou seja, é um povo que tem as suas próprias regras para viver em sociedade que foram reconhecidas pelo governo do Panamá?
Sim. E isso conseguiu-se com muita luta, e também porque o Panamá percebeu que tinha de negociar e assim foi possível.
A língua, por exemplo, é língua oficial. Por isso, a constituição do Panamá não fala de dialetos, fala de língua oficial. A língua oficial do Panamá é o espanhol e as línguas indígenas. Uma das grandes conquistas do mundo kuna é a língua nas escolas, porque antigamente era só o espanhol. E é certo que se utilizava como uma ferramenta de conhecimento de luta, mas as crianças saíam da 4ª classe a falar mal espanhol e falar mal kuna. Agora, com o sistema intercultural dirigido pelo próprio congresso kuna e pelos linguistas kunas, e também com o apoio do mundo ocidental, as crianças já dominam duas línguas, até três: o espanhol, o kuna e o inglês.
Se tivesse de convidar as pessoas para virem ver esta exposição, sobre as molas e a arte têxtil do Panamá, a partir de 21 de junho na Casa da América Latina, o que lhes diria?
Que venham, apareçam. Para que vejam quais os instrumentos, o que utilizou uma comunidade para viver e sobreviver neste mundo complexo. E como é possível que, através destas telas, tenham ganho identidade com mais força, mais autonomia. E para que vejam que arte é viver, é vida. A arte não está separada nem do lado espiritual nem da ciência, é uma só forma. E, através das molas, uma comunidade tem uma forma de contar essa história que não é do passado, é do presente.
Entrevista realizada por Raquel Marinho