Maria da Graça Ventura: “Estou sempre envolvida na investigação e na escrita”
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___________________________________________________________________________________Maria da Graça Ventura foi a vencedora do prémio da Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo com o livro “Por Este Mar Adentro – Êxitos e fracassos de mareantes e emigrantes algarvios na América Hispânica”. A Casa da América Latina conversou com a professora e investigadora.
Acaba de vencer um prémio da Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo com o livro “Por Este Mar Adentro – Êxitos e fracassos de mareantes e emigrantes algarvios na América Hispânica”. Este livro trata da Carreira das Índias Ocidentais entre os séculos XVI e XVII, em que as pessoas do mar do Algarve assumiram um papel importante, sobretudo no porto de Portimão. Que papel foi esse e por que razão ele tem relevância para as relações económicas e estratégicas da região em relação àquela rota?
A rota das Índias de Castela, também designada Carreira das Índias Ocidentais, surgiu na sequência das viagens de descobrimento de Cristóvão Colombo nas quais participaram mareantes algarvios. Com a criação da Casa da Contratação das Índias, entidade organizadora das expedições e do comércio com as Índias, na cidade de Sevilha, em 1503, o litoral algarvio, do Cabo de S. Vicente à foz do Guadiana, inscrevia-se, naturalmente, nessa rota. Apesar da insistência na publicação de legislação restritiva da participação dos portugueses em geral nas atividades comerciais, o saber e a experiência náutica dos algarvios tornou-se indispensável para os espanhóis. A fim de contornar as restrições, muitos mareantes do Algarve instalaram-se em Triana (fronteiro a Sevilha, separado pelo Guadalquivir), bairro de marinheiros, carpinteiros e mestres de navios, onde casaram, por vezes com mulheres naturais de Castela, e, assim, obtinham o estatuto de natural que lhes garantia o livre acesso à navegação e ao comércio. Em Sevilha foram-se instalando mercadores nos bairros mais ricos cuja marca ainda hoje subsiste.
Mas o envolvimento dos algarvios fez-se também por outras vias: viagens clandestinas de mestres de Tavira, arribadas de navios das Índias a Lagos e a Portimão, contrabando nos portos do Algarve alegando fuga aos corsários ou falsos naufrágios. São inúmeros os casos de cumplicidade entre os moradores e os espanhóis que preferiam descarregar as mercadorias no Algarve e, assim, furtar-se ao pagamento dos impostos em Sevilha. Para minimizar este problema, o Estado espanhol, nomeou feitores / fiscais, sedeados em Lagos, para fiscalizar as fraudes cometidas nas enseadas e portos da região.
Por outro lado, face à pressão de corsários turcos, franceses, ingleses e holandeses no mar fronteiro ao Algarve, os espanhóis criaram a Armada da Guarda que se abrigava em Portimão, à espera de aviso, para perseguir os adversários.
Claro que a participação ativa dos algarvios, nesta rota teve um forte impacto na região, não só pelo movimento crescente de emigrantes para a América Hispânica (cujas heranças chegavam aos familiares sob a forma de reales de prata), como também pela intensificação do comércio e da construção naval, nomeadamente de caravelas, sobretudo em Portimão. O comércio inter-regional do Algarve e Andaluzia passou a mobilizar também produtos da terra, além da venda de navios. Podemos afirmar que o Algarve teve um papel fundamental na dinâmica do espaço mediterrâneo-atlântico e na própria globalização.
Houve muitos algarvios que se aventuraram mar adentro rumo à América do Sul e que agora são resgatados da memória através deste livro. Um deles foi Jorge Fernandes Gramaxo, natural de Portimão, que acabaria por se tornar o comerciante mais rico e influente de Cartagena das Índias, atual Colômbia. Pode contar-nos brevemente a história deste homem e como é que isto aconteceu?
Entre os percursos biográficos significantes que constituem o cerne deste livro, o capitão Jorge Fernandes Gramaxo é, sem dúvida, o que mais atrai a atenção dos historiadores e dos leitores. Por duas razões, fundamentalmente. Em primeiro lugar, ele era cristão-novo e, como tal, um putativo alvo da Inquisição. Antes dos inquisidores do Tribunal de Évora chegarem a Portimão e prenderem quase toda a sua família nas décadas de 80 e 90 do século XVI, sob a acusação da prática do judaísmo, ele rumou a Cabo Verde e daí a Porto Rico e Cartagena das Índias onde chegou em 1590. Ligado, como feitor, aos grandes asientistas de Lisboa, rapidamente criou a sua própria rede transatlântica com seu irmão Luís Fernandes Gramaxo, cunhados e sobrinhos. O comércio de negros era o seu principal negócio, embora se dedicasse, com fragata própria, e já com o estatuto de natural, ao comércio de tabaco (que exportava para Lisboa, para o seu cunhado Fernão Soares Ribeiro) e pérolas. Rapidamente acumulou grande fortuna e se integrou na sociedade colonial, através do desempenho de cargos municipais e de uma reconhecida ação benemérita ainda hoje visível no convento de S. Diogo do qual ele foi patrono e onde foi sepultado. Em 1610 era considerado o homem mais poderoso e influente em Cartagena das Índias e o mais perigoso, segundo os espanhóis, pela rede de negócios que montou em articulação com outros negreiros como Manuel Baptista Peres, em Lima, e Simão Vaz de Sevilha, no México. Quando ele faleceu, em 1626, a sua rede de negócios foi assumida pelo seu sobrinho António Nunes Gramaxo que se tornou credor de Filipe IV e se manteve em Castela após a Restauração. No capítulo que lhe dediquei há detalhes muito interessantes sobre a sua vida.
Mas há outros personagens dignos de destaque, como os Barreto de Loulé, nomeadamente D. Isabel Barreto, a primeira mulher almirante do Mar do Sul.
Há também a história curiosa do jovem marinheiro João Fernandes, natural de Vila Nova de Portimão, que acabaria por fixar-se no Porto de Guayaquil, vice-reinado peruano, atual Equador, onde estavam também outros marinheiros portugueses. Qual era a relação dos homens do mar portugueses com este porto e por que razão se fixavam lá?
Este livro contém várias histórias curiosas. Uma delas refere-se ao jovem portimonense João Fernandes que deixou a sua mulher grávida, em meados de 1593, para ir lá para «as bandas do Peru». No seu amplo périplo atravessou o Atlântico rumo a Cartagena e daqui foi para o porto de Santiago de Guayaquil (atual Equador), tal como outros conterrâneos, entre quais seu cunhado Pedro Faleiro. Na verdade entre a sua terra natal e aquela onde ele viveu cerca de 12 anos havia semelhanças – a vida portuária. Ele pertencia àquela categoria de pessoas que, como disse Jorge Luís Borges, não imaginava o mundo sem água. Guayaquil desempenhou um papel importante no comércio da costa do Pacífico, constituindo, com Acapulco (México) um dos mais relevantes segmentos da rota que ligava o Peru às Filipinas. Nos seus estaleiros construíam-se parte dos navios da Armada do Sul que garantia a segurança das frotas de ouro e prata de Lima para Sevilha, através do Panamá. Tal como Portimão era, segundo Pierre Chaunu, «um viveiro de caravelas». A partir do inventário dos seus bens, após a sua morte em 1605, é possível identificar roupa da China e notas de pequenos investimentos no comércio oriental, através de outros portugueses. À viúva e ao filho que nunca conhecera chegou uma herança de mais de 1.000 reales de prata.
A história de vida deste marinheiro é muito interessante e reveladora dos sonhos de riqueza dos que deixaram as suas famílias, atraídos pela prata e pelo ouro que vinha do Peru e enchia os porões dos barcos que passavam pela costa algarvia.
Há muitos anos que se dedica a estudar a presença portuguesa na América Hispânica, e este livro é também o resultado dessa longa investigação. O que significa para si o reconhecimento que este prémio encerra?
De facto, desde 1997 toda a minha investigação tem incidido sobre a presença de portugueses no espaço hispano-americano, sobretudo no vice-reino do Peru. Publiquei vários livros sobre esta temática, com destaque para a minha tese de doutoramento publicada em 2005 pela Imprensa Nacional – Os portugueses no Peru ao tempo da União Ibérica: mobilidade, cumplicidades e vivências (2 volumes, 2 tomos). Este livro, sendo sobre o Algarve integra-se nesse programa mais vasto de investigação. Ele foi concebido porque, na minha longa investigação nos arquivos espanhóis e hispano-americanos, o Algarve se foi destacando como protagonista de um processo de colonização e exploração económica de um território tão vasto quanto diversificado em termos de riquezas naturais quanto era a América Hispânica. Em geral, eram os negros a principal «mercadoria» em troca da tão almejada prata.
Este prémio tem um sabor especial. Foi a primeira vez que concorri a um prémio, embora já o pudesse ter feito com outros livros. Desta vez eu acreditei mesmo que tinha direito a este prémio por, de algum modo, este livro representar toda a minha investigação anterior que continua a ser uma temática muito pouco estudada pelos historiadores portugueses. Fiquei muito, muito feliz e grata à Fundação Calouste Gulbenkian. Espero que este prémio, atribuído a este livro (edição magnífica da Tinta da China), incentive outros historiadores a perspetivar a Expansão Portuguesa para lá dos limites do império colonial e a questionem considerando as interações entre os impérios ibéricos.
É investigadora integrada no Centro de História da Universidade de Lisboa onde integra a coordenação do Grupo de Investigação «Dinâmicas Imperiais», colaboradora do CHAM, membro da Asociación Española de Americanistas (AEA) e da Associação de Historiadores Latino-americanistas Europeus (AHILA), e cofundadora e atual presidente do Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (ICIA), criado em 1995 na cidade de Portimão. Já sabe o que vai estudar a seguir?
No Instituto de Cultura Ibero-Atlântica promovemos, entre 1995 e 2005, onze Jornadas de História Ibero-americana com o objetivo de promover uma visão plural de uma história comum. Publicámos 11 livros de atas onde colaboraram historiadores portugueses, espanhóis, brasileiros, argentinos, uruguaios, peruanos, chilenos, venezuelanos, entre outros. Editámos anualmente, entre 2004 e 2010, a Atlântica, Revista de Cultura Ibero-americana que foi considerada pela OEI como a melhor revista sobre esta temática. A minha participação em congressos internacionais traz sempre esta marca. O Centro de História da UL constitui um espaço privilegiado de reflexão e partilha entre pares o que constitui um desafio permanente, além de apoiar de diferentes formas a investigação e a divulgação, digamos que nos dá uma cobertura institucional muito importante. A AHILA é importante pela possibilidade de internacionalização e trabalho em rede com colegas estrangeiros.
Estou sempre envolvida na investigação e na escrita, pequenas coisas, como artigos, capítulos de livros, apresentações em encontros científicos… O meu projeto, já iniciado há anos com resultados parciais também publicados neste livro Por este mar adentro, é uma biografia da família Gramaxo. Não será uma biografia linear, tradicional, mas uma biografia de contexto que explique as interações sociais, culturais, económicas e até políticas, dos diferentes membros da família começando em Silves com João Gramaxo, almoxarife de Silves, desde 1491. Enfim, apenas posso adiantar o âmbito cronológico – sobretudo a 2ª metade do século XVI e a 1ª metade do século XVII –, e geográfico – Algarve, Lisboa, Cabo Verde, Cartagena das Indias, Sevilha, Madrid. Entrarão inquisidores, mercadores, homens e mulheres de diferentes qualidades.
Entrevista realizada por Raquel Marinho