Entrevista Vítor Sousa: “Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia”

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O português Vítor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa destacou-se na categoria de Ciências Sociais e Humanas da 7ª edição do Prémio Científico Mário Quartín Graça, com a tese de douramento “Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia”, realizada na Universidade do Minho.

A Casa da América Latina entrevistou o investigador que analisou de que modo a ‘Portugalidade’ pontua a construção de um conceito pós-colonial – o da lusofonia, e de que modo este tem repercussão nas políticas de globalização atuais.

A sua tese centra-se no estudo de um conceito originado no Estado Novo – a “Portugalidade”, para o confrontar com um outro – o da lusofonia. O que o levou a se interessar pelo assunto e onde iniciou a sua pesquisa?

Como conto na minha tese, a ‘portugalidade’ foi uma palavra que nunca tinha ouvido na minha vida de jornalista e de assessor de Imprensa. Ao ouvir um programa radiofónico, deparei-me com a expressão que, confesso, me provocou algum ruído. Logo que pude, fui pesquisar, na tentativa de esclarecer a minha inquietação. Só que essa tarefa foi problemática, já que havia ‘portugalidades’ para todos os gostos e feitios: desde marcas de eletrodomésticos a ela associados, a textos em blogues relacionados com alegadas marcas identitárias ligadas a Portugal, passando pela afirmação/diferenciação de Portugal quando colocado perante outro país, mormente em relação a territórios de língua oficial portuguesa, que tinham sido colónias portuguesas, ou pela definição dos dicionários online, onde a palavra era traduzida polissemicamente como: “Qualidade própria do que é português”, “Caráter específico da cultura ou da história de Portugal” ou “Sentimento de amor ou de grande afeição por Portugal”. Tudo isso não me satisfez, uma vez que as interpretações eram equívocas remetendo para uma possibilidade interpretativa bastante alargada e com um recorte subjetivo. De resto, a não ser nas edições mais mainstream onde se pode ler o significado de ‘portugalidade’ como “sentido verdadeiramente nacional da cultura portuguesa”, na dicionarização de referência não existe proposta interpretativa para ‘portugalidade’.

Até que, através do ‘Ciberdúvidas da Língua Portuguesa’ encontrei a pista que me permitiu encetar um caminho que me levou à origem da cunhagem da palavra, apontada pelo portal como tendo acontecido no século XX, mais precisamente nas décadas de 50 e 60. Ou seja: em pleno Estado Novo. E avançava com uma justificação: tudo para que as ex-colónias fossem vistas pela ONU não como territórios autónomos, mas como províncias ultramarinas, ou seja, como parte integrante do território português. Toda essa estratégia ia no sentido de combater os movimentos independentistas que emergiam nas antigas colónias, defendendo a pertença desses territórios a Portugal, por via do seu ‘destino histórico’. Esse facto seria sublinhado no discurso político da ‘portugalidade’, com a assunção de Portugal, como um país uno e indivisível: “Portugal do Minho a Timor”.

Da minha investigação constatei que a palavra ‘portugalidade’ foi, de facto, utilizada pela primeira vez pelos deputados da Assembleia Nacional (1935-1974) em 1951, coincidindo com a data da revogação do Ato Colonial.

Ora, a palavra ‘portugalidade’ não estava ligada à lusofonia que, muito embora se presuma tenha emergido na lógica da francofonia – em que, após a II Guerra Mundial, a França deixou as suas colónias, mas manteve a ligação da língua comum -, só em 1969, segundo a minha pesquisa, é que consegui ler pela primeira vez a palavra, num livro intitulado “Ideário de Portugalidade. Consciência da Luso/Tropicalidade”, da autoria de António Ferronha. Trata-se, no entanto, de um termo com uma dinâmica pós-colonial e, dessa forma, longe do quadro da ‘portugalidade’ estadonovista. Associar os termos é, a meu ver, mesmo um contrassenso, uma vez que esta pressupunha uma associação às antigas colónias portuguesas, agora já países independentes.

Mas não se pense que esta lógica é pacífica, uma vez que há quem associe a ’portugalidade’ à lusofonia, realçando serem cumulativas, e localize a ‘portugalidade’ muito antes da ideologia do Estado Novo, ligando-a aos Descobrimentos. A não existência de qualquer referência sobre essa matéria é uma pecha que o autor que referi atrás pretendeu colmatar com o seu livro, à semelhança de António de Spínola, no livro ‘Por uma portugalidade renovada’, que lamenta a não fixação escrita da ‘portugalidade’.

Só para ter uma ideia de como tudo isto não é pacífico, atente-se na criação, em 1996, da CPLP, cujo ‘contrato’ entre os países que integram a estrutura, em que nem uma única vez se refere a palavra lusofonia. Presumo eu, por remeter para ‘luso’, português…
Trata-se de uma dinâmica que, pelos vistos, está a ser seguida na atualidade, nomeadamente por algumas instituições portuguesas de cooperação.

Que importância tem este estudo para o aprofundar de conhecimentos das relações culturais entre Portugal e o Brasil?

Num capítulo de um livro que escrevi e que saiu recentemente no Brasil (“Lusofonia(s) e ‘portugalidade’: uma impossibilidade”), defendo a existência de conflitualidade entre ‘portugalidade’ e lusofonia. Na investigação desenvolvida, foi observado que a temática sobre a qual os deputados da Assembleia Nacional (1935-1974) mais utilizaram a palavra ‘portugalidade’ foi em relação às então colónias e ex-colónias ultramarinas. No caso das ex-colónias, há bastantes discursos de deputados referindo-se à necessidade de levar a ‘portugalidade’ àqueles territórios. Não obstante, mesmo que o Brasil já fosse independente desde o século XIX (1822), não deixa de ser interessante a forma como são feitas referências ao antigo território português.

No livro de António Ferronha que citei atrás, é incluído um capítulo intitulado “Um exemplo de portugalidade: formação e desenvolvimento da sociedade multirracial do Brasil”, em que se refere que o Brasil não existia, tendo sido Portugal o criador dessa realidade política, discorrendo-se sobre o descobrimento do Brasil, dos primeiros ensaios de organização administrativa e colonização do território, bem como da criação do próprio Brasil. Refere-se, a propósito, que não existia nenhuma nação brasileira, mas apenas um vasto território composto por gentes paleolíticas e neolíticas, divididas em tribos independentes que não se compreendiam nem eram animados de nenhum ideal político unitário, capaz de forjar o Brasil, tendo sido a presença efetiva da autoridade governativa portuguesa quem deu unidade política à região. Aborda-se, também, a miscigenação, traçando a história de como o território foi ocupado, começando pelos negros da Guiné, em 1538, e atingindo em três séculos de tráfico cerca de 4.300.000 negros, pelas vias legais e 2 milhões, ilegalmente. Ferronha trata de sublinhar a convivência saudável das raças, promovida pelos portugueses, responsáveis por cimentar o que diz ser a unidade moral e política do território, depois chamado nação, conseguindo forjar na cabeça, no coração e nos músculos de todos eles, a mesma comunhão de ideias e de sentimentos, constituindo-se assim um único povo: o povo luso-tropical da América do Sul ou brasileiro.

Tudo isso levou ao luso-tropicalismo em que, para justificar uma nação com fronteiras extensas, que iam do Minho a Timor, Salazar se socorreu da propaganda, sendo que é nessa altura que a obra e o pensamento de Gilberto Freyre se tornaram instrumentos da máquina de propaganda do regime, situação que não aconteceu à revelia do sociólogo, já que em alguns momentos foi percebido como um dos mais eficientes ‘cães de guarda do Império’.

De resto, e a este propósito, Cláudia Castelo refere que o estudo de receção do luso-tropicalismo em Portugal dá uma ajuda na perceção de como as ideias de Gilberto Freyre ainda ecoam no atual discurso político e cultural. E, muito embora já não estejam ligadas ao colonialismo, servem agora para justificar a criação formal de uma comunidade lusófona com propósitos culturais, económicos e de cooperação em matéria de política externa. Adverte, assim, que o risco atual reside no facto de o conceito continuar a ser usado de forma acrítica e imobilista. Se, no passado, serviu para legitimar o colonialismo português, hoje é utilizado para dar corpo ao mito da tolerância racial dos portugueses e até de um nacionalismo português integrador e universalista, em contraponto aos ‘maus’ nacionalismos, fechados, etnocêntricos e xenófobos.

Em relação à lusofonia e, em resultado da minha investigação, pode concluir-se que, tratando-se de uma construção de difícil concretização, um processo prenhe de clivagens entre os países integrantes da CPLP (o que se pode constatar através da observação do seu histórico relacional), ela pode desembocar numa utopia, caso não se desfaçam os equívocos em que navega, como assinala o meu orientador, Moisés Martins: as narrativas do antigo Império e a sua associação a uma centralidade portuguesa, o luso-tropicalismo associado à ideia de colonização doce e a sua rejeição por parte de quem está ressentido com a colonização dos portugueses, os ‘outros’ das ex-colónias. Desta forma, não poderá existir lusofonia com ‘portugalidade’, sendo mesmo um contrassenso avançar com tal associação.

Os mitos que associa à ideia de “Portugalidade” e que a definem estão em decadência, ou vão se mantendo inalterados, nomeadamente no discurso político atual?

Vão sendo reapropriados, reciclados e criados outros. Alexandre Herculano, por exemplo, deitou por terra os mitos da Batalha de Ourique e das Cortes de Lamego, marcando uma nova ordem na historiografia portuguesa. No entanto, o Estado Novo reabilitou-os. Após o 25 de Abril, a dinâmica libertadora arrasou essas construções. Trata-se de uma questão de memória, que pode ser encarada como uma das palavras-chave da minha investigação.

Eduardo Lourenço sustenta que a existência mítica precede a existência empírica; já Roland Barthes olha para o mito como conversor da história em natureza e o contingente em eternidade; enquanto Pierre Bourdieu sustenta que não é o mito que dá forma à história. Entre a ‘portugalidade’ mítica e a que se encontra no domínio da política, ainda há vários investigadores que reabilitam a lógica da primeira História de Portugal, escrita no século XVI por Fernando Oliveira, abrindo a porta ao que se pode interpretar, nos dias de hoje, como uma dinâmica de ‘regresso de caravelas’. De História de Portugal com ‘portugalidade’, portanto, em que se sublinham as clivagens entre a relação do ‘eu’ com o ‘outro’.

Wittgenstein assinalava que o sentido das palavras seria o seu uso. Eu acrescento que isso deve ser contextualizado, para que não haja equívocos e se passe por cima da memória, como se tudo começasse de súbito e não tenha um histórico para trás. Para observar de que forma toda esta ladainha em torno da ‘portugalidade’ é ridícula, atente-se no seguinte exemplo, assente na dinâmica da campanha ‘Portugal sou eu’: a propósito de uma empresa de enchidos de Bragança, o seu dono afiançava que os produtos tinham 97% de ‘portugalidade’, uma vez que apenas 3% eram de Espanha, já que era lá que comprava as especiarias…

E, quando sublinhamos expressões como a ‘Marca Portugal’, apenas me serve enquanto investigador o olhar crítico dessa dinâmica, já que isso mais não faz do que traduzir o vazio de uma certa visão do que o posicionamento cultural de um país deve ser hoje em dia. Ou seja: uma marca no domínio da cultura mais não é do que simplificar o que não é simplificável, sendo que a cultura de um país e os seus protagonistas não cabem dentro de qualquer marca.

O que é que este prémio representa para si?

É um prémio importante para mim, porque tem um espectro internacional (América Latina e Portugal) e porque reitera o trabalho que desenvolvi ao longo de vários anos sobre a ‘portugalidade’, numa verdadeira obsessão. É um tema polémico, assente na desconstrução dos essencialismos que estiveram na base da criação da palavra, já que mexe com a problemática da identidade. O galardão é um incentivo para a área das Ciências Sociais e Humanas, evidenciando a necessidade de promover o espírito crítico e a desconstrução, numa altura em que a sociedade privilegia os consensos. E para a própria lusofonia que, desta forma, atinge um patamar de atenção raramente observado.

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