Francisco Javier Morales Aguilera: “Aspiro a que a minha tese seja uma contribuição para o mundo historiográfico”

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Entrevista com Francisco Javier Morales Aguilera, vencedor do Prémio Científico Mário Quartin Graça 2023, atribuído pela Casa da América Latina com o apoio e o patrocínio da Cunha Vaz & Associados.

Antes de mais, parabéns por este prémio. Para aqueles que não estão familiarizados com a história do Chile, especialmente com o período anterior ao golpe de Estado que é o tema da sua tese, gostaria que nos desse uma breve ideia do que podemos esperar deste trabalho académico que escreveu.

Muito obrigado, em primeiro lugar, pelo anúncio geral do concurso e, depois, por me terem atribuído o prémio, é uma grande honra para mim. Relativamente à tese em particular, debrucei-me primeiro sobre Portugal porque havia poucos estudos sobre as relações entre Portugal e a América Latina. Talvez a exceção seja o Brasil, por uma razão óbvia, mas com o resto dos países havia muito pouco. E o que faço na minha tese é basicamente investigar as visões e perceções de Portugal e Espanha. É uma análise comparativa sobre o governo de Salvador Allende, sobre a Unidade Popular.

Então, o que é que podemos dizer sobre esta relação entre Portugal e o governo de Salvador Allende?

Bem, isso é muito interessante porque, antes de mais, há que fazer uma distinção entre Espanha e Portugal. A Espanha olhou de forma muito pragmática para o caso do Chile, para o governo de Salvador Allende. Apesar de ainda estarem sob a ditadura de Franco, a Espanha foi muito pragmática porque sabia que os Estados Unidos iam ter uma relação tensa com o Chile, iam retirar-se, provavelmente não iam dar ajuda económica suficiente, e a Espanha considerou que poderia ser um ator relevante, tanto para apoiar o Chile, mas sobretudo para tentar garantir que o processo político chileno se moderasse, não fosse tão extremista, tão de extrema-esquerda. Portanto, segundo esse critério, a Espanha encarou a situação de uma forma muito pragmática.

Portugal, por seu lado, não encarou a situação de forma pragmática, mas a análise política feita pelo embaixador português em Santiago do Chile, Armando de Castro E. Abreu, acreditado desde 1968 e que permaneceu até 1974, foi desde o início muito crítica em relação ao governo da Unidade Popular. Ele sabia que não ia ter grandes relações com o governo, para além das formalidades do cargo diplomático. Por isso, teve uma visão muito crítica em todos os momentos, desde o início. O ponto que mais preocupava o embaixador português, e falámos disso no encontro desta manhã, era o facto de o Chile prestar ajuda internacional e solidariedade em fóruns e assembleias internacionais para as causas de libertação dos países do Terceiro Mundo. O embaixador português ficou muito preocupado e deu conhecimento deste facto às autoridades chilenas, na esperança de que o Chile se abstivesse ou assumisse uma posição mais neutra. Mas isso foi muito difícil porque estava no programa de governo da Unidade Popular. E Salvador Allende tinha dito muitas vezes que o seu projeto e a causa da esquerda chilena só podiam ser solidários com as lutas dos povos colonizados. Por isso, o Chile, em todos os fóruns internacionais e nas votações de condenação de Portugal na altura, votou a favor dessas condenações. As instruções eram muito precisas a este respeito. E esse ponto, na minha opinião, sensibilizou o embaixador português e levou-o a reagir mais fortemente contra o governo de Allende, evidentemente.

Para levar a cabo esta investigação acedeu muitos documentos, incluindo cartas do embaixador português a outros embaixadores que estavam no Chile.

Sim, sim. Devo dizer que os arquivos portugueses são magníficos. Digo-o como investigador e não apenas porque fui o vencedor. Em geral, onde posso comentar digo-o porque o acesso foi muito rápido, um acesso aberto. Foi-me mostrada, em geral, toda a documentação que solicitei. O atendimento tem sido muito bom e não só no Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que fica em Lisboa e que me deu acesso a todos esses documentos secretos, confidenciais, reservados, etc., que além disso, estão bem catalogados e ordenados, mas também noutros documentos, outros arquivos que consultei. O arquivo do Museu do Aljube, o Arquivo Militar da Defesa Nacional, e consultei também o arquivo da Torre do Tombo, com algumas referências muito específicas. O percurso de investigação tem por base o Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

E é a partir destes documentos que a investigação começa, ou simultaneamente começa a cruzar informação de diferentes arquivos para chegar a alguma conclusão?

Basicamente, retirei a maior parte da informação do Arquivo Diplomático, mas por vezes verifiquei que certas referências remetiam-me para outros arquivos. Por exemplo, o Arquivo da Defesa Nacional. Lá encontrei documentação de inteligência que falava sobretudo do ano de 1973, como o caso chileno e depois o golpe militar, tinha muita repercussão nas notícias internacionais. De facto, no Arquivo da Defesa Nacional os relatórios dos serviços secretos fazem um resumo mensal das informações sobre os diferentes países do mundo. Obviamente, a preocupação era com a guerra colonial, mas em setembro o Chile começou a aparecer repetidamente nas notícias internacionais. Portanto, uma informação levava-me a outra, mas a maior parte estava concentrada no Arquivo Diplomático, que foi de onde extraí mais informação.

Quantos anos tem?

Tenho 41 anos.

Porque é que decidiu estudar algo que tem mais de 50 anos?

Antes de mais, por interesse pessoal, pois há muitos anos que estudo o processo da Unidade Popular.

Porquê?

Bem, suponho que há uma história familiar, uma história de vida também. Sou chileno, se calhar não parece, mas é verdade.

Há alguém na sua família que tenha testemunhado ou que tenha tido alguma ligação com o golpe de Estado que aconteceu?

Sim, sim, claro. O meu pai era militante do Partido Socialista. Foi provavelmente através dele que ouvi as primeiras referências ao governo de Salvador Allende, à Unidade Popular, do que foram aqueles anos. Em minha casa falávamos sempre de política. E falámos sempre da política chilena, da política latino-americana e da política mundial em geral. Era um tema recorrente. Portanto, foi uma iniciação quase natural a esses temas. E comecei a interessar-me um pouco pelo tema da Unidade Popular porque queria esclarecer certos aspetos, certas coisas que não estavam muito claras. Uma delas, por exemplo, foi toda a questão da violência política nesse período, que é um assunto complexo de abordar. Abordo-a na tese e explico também como é que este fenómeno é visto a partir de Espanha e de Portugal. Portanto, já ando a fazer investigação há muito tempo e, neste caso, no meu doutoramento, foi quase como um passo natural investigar as perceções espanholas e portuguesas deste período.

Mas está a falar de violência política antes do golpe. Pode dar-nos uma ideia, um exemplo?

Sim, claro. Esta é uma questão muito complexa de se debater no Chile. O debate está muito ideologizado, muito polarizado. Portanto, levantar uma questão com estas características implica entrar num debate deste tipo, um debate polarizado. O meu interesse era fazer uma investigação histórica: porque é que encontramos situações recorrentes de violência política no período anterior ao golpe militar? Porque é uma questão que é discutida abertamente na imprensa e está presente em muitos discursos públicos desse período. Alguns autores minimizaram este facto, disseram que não, que eram situações pontuais, etc. Mas isso não se coadunava com os dados que eu estava a investigar, com o que eu estava a encontrar. E eu só posso dar um número. Mais de 100 pessoas morreram durante a Unidade Popular em acontecimentos e em contextos de violência política, de diferentes formas.

Por decisões políticas, é isso?

Em contextos de polarização, de confronto político. Claro que isto não significa justificar o golpe militar, nem significa equiparar aqueles episódios de violência, esse fenómeno de violência durante a Unidade Popular com o que aconteceu depois do golpe militar. Porque são dois tipos de violência muito diferentes. De facto, o que aconteceu durante a Unidade Popular, em rigor, foi a violência materializada entre civis, basicamente, grupos organizados ou particulares.

Não decisões do Estado.

Não foram decisões do Estado. Isso aconteceu depois do golpe militar. Depois houve uma política de repressão e de violência estatal.

Também aborda na sua tese esta questão da violência entre civis?

Exatamente. É isso que abordo e mostro um pouco as perceções que existem sobre o assunto.

Quem queira ler a sua tese, aceder à sua investigação, o que pode fazer?

Fundamentalmente, escrevi-a a pensar um pouco nos investigadores que se interessam pelo tema das relações entre a Península Ibérica e a América Latina, sobretudo para ver se conseguimos abrir um espaço no que diz respeito a Portugal, que tem sido muito pouco investigado no que diz respeito à relação entre Portugal e a América Latina. E não sei porque é que ainda se faz pouca investigação em Portugal, porque o nível de informação tratado pelos diplomatas portugueses era muito elevado e os serviços secretos portugueses também. E isso é muito marcante. Sabiam muitas coisas que os restantes embaixadores não sabiam.

Isso é muito interessante e é um trabalho que continuará a ser feito no futuro. Portanto, estou a pensar um pouco naqueles investigadores que se dedicam às relações internacionais, nos historiadores que se dedicam às questões da transnacionalidade entre países nos anos 60 e 70. E pensei também no caso particular da violência política no Chile, em investigadores chilenos, com nacionais. Aspiro a que a minha tese seja uma contribuição para o mundo historiográfico, baseada numa análise rigorosa das fontes, tendo em conta que passaram 50 anos, o que me permite contribuir para o conhecimento histórico. Não para estabelecer uma verdade, mas simplesmente para contribuir um pouco mais para esta investigação.

Contribuir com mais informação, porque decorre de um estudo universitário, de uma investigação que obedece a regras. Não está aqui para defender a sua tese, é a história.

Exatamente. De facto, essa parte específica sobre a violência política no Chile acaba de ser publicada no Chile em livro pelo Fundo de Cultura Económica, pelo Centro de Investigação Diego Barrosarana e pelo Instituto de História da Universidade Católica. É um livro que acaba de sair e que corresponde a toda essa parte e eu quis publicar no Chile precisamente para contribuir desde do ponto de vista historiográfico, das regras do método historiográfico.

O seu trabalho debruça-se sobre acontecimentos que têm mais de 50 anos. Queria perguntar-lhe, na sua opinião, uma vez que também é investigador, qual é a importância da memória para o mundo de hoje?

É uma pergunta muito vasta. O que eu poderia dizer é que existe uma memória coletiva que está indubitavelmente ligada ao passado e, no caso dos países latino-americanos, que tiveram passados muito traumáticos de violência na América Central, na América do Sul, com as ditaduras latino-americanas, estes acontecimentos são acontecimentos fundadores de uma certa memória coletiva. E, por vezes, tenho tendência para pensar nisto como um problema do qual certas sociedades latino-americanas, e particularmente a sociedade chilena, não conseguiram libertar-se completamente. Se analisarmos, por exemplo, a explosão social no Chile em 2019, as referências na imprensa, por exemplo, as mensagens, os slogans que foram pintados nas paredes, referiam-se ao período ditatorial. Por exemplo, equiparou a figura do Presidente Sebastián Piñera ao ditador Augusto Pinochet, e os gráficos, e os slogans, e os cartazes, e as manifestações e gritos de protesto apontavam para isso. Isto acontece porque são aqueles passados traumáticos que não desaparecem, como dizem alguns autores. E, portanto, nessas sociedades, essas memórias tendem a ficar perturbadas. Acho que o desafio dos historiadores é problematizar essa memória e também abrir-se a outras memórias. Hoje de manhã, Álvaro Soto estava a falar de como ele também se interessava pelas memórias de outros atores e eu acho que isso também é relevante. O que é que acham deste mesmo processo? Outros atores que estão em outras posições ideológicas e que poderíamos entender que também fazem parte de uma memória coletiva.

Uma última pergunta: temos esta tese que está concluída, inclusive uma parte dela foi publicada no Chile. O que é que vai estudar agora ou o que está a estudar agora?

Em particular, conecto-me com a resposta anterior. Estou a fazer uma investigação sobre questões de memória política no Chile, no contexto da explosão. E é mais ou menos a mesma questão que já disse. Porque o tema da ditadura continua presente. E porque também abriu um novo processo político no Chile, um novo rumo com um projeto de constituição, que ainda está em transição. É isso que estou a investigar atualmente no meu projeto de pós-doutoramento na Universidade Autónoma de Madrid. E, no futuro, tenciono continuar a investigar o tema de Portugal e Espanha em relação às ditaduras latino-americanas. Já estou a dar forma a algumas ideias que tenho em mente.


Entrevista feita por Raquel Marinho

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