Carmen Yáñez: “Quando a minha mãe morreu eu resgatei todas as suas cartas, por isso tenho-as. Estão cheias de lágrimas.”

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Entrevista com a poeta chilena Carmen Yañez, no âmbito do ciclo dedicado a assinalar os 50 anos do golpe militar do Chile em Loulé

Estamos aqui no Algarve devido a um ciclo dedicado aos 50 anos do golpe militar no Chile. A Carmen começou a sua intervenção na mesa redonda onde estava com a leitura de um poema. Queria pedir-lhe para nos recordar esse poema e depois falarmos um pouco sobre ele.

Pode ser. Acima de tudo, é um poema para me apresentar, para dar o meu ponto de vista e para tentar ter um pouco de coragem para poder contar a minha história depois.

Interpretación

Un ojo observa. Interpreta.
 Dos ojos observan, analizan e interpretan.
Y los ojos que no miran; la apatía.
 ¿Cuál es la verdad?
¿o hay muchas verdades según de quien es la mirada?
la verdad sesgada del primer ojo.
La verdad dulcificada,
 La no verdad; El engaño
Los dos ojos de sangre,
la verdad que muerde
y salta a la palestra.
Un riel oxidado en el fondo del mar,
o un botón olvidado,
o un pedazo de raída tela en una mina abandonada.
o un pedazo de fémur
donde hoy la silente muerte,
rompe su voto.

Depois de ler este poema a Carmen disse “esta é a minha história”.

Sim, foi aí que comecei a falar de tudo o que aconteceu, de tudo o que passámos. A partir de 1970, começámos o compromisso que tínhamos, a que nos tínhamos proposto como jovens, uma geração jovem, de participar ativamente no governo de Allende com a nossa militância, com o nosso trabalho, com o tempo que tínhamos disponível para poder colaborar com todo o trabalho que estava a ser feito. Trabalhar para as populações marginalizadas, para a alfabetização, para levar a cultura a esses lugares, para levar canções, música, tudo. Levar a poesia para esses lugares, cobrir as necessidades de todas as pessoas, as crianças, a distribuição de alimentos e tudo o que era necessário no Chile naquela altura.

Depois disso, foi obrigada a ir-se embora?

Depois veio o golpe. Estive lá durante oito anos, estive sob a ditadura. Os membros da minha família tinham sido presos. Primeiro foi o meu pai, depois foi o meu marido, Luís Sepúlveda. Depois um primo, outro primo, que estavam lá. Depois fui raptada e levada para uma das casas de tortura que havia naquele país, no ano de 1975.

Disse que não gosta de falar sobre essa experiência?

Não, não muito. A partir de 75 quase não falei. Tentei sobreviver na mesma, mas também não se podia falar sobre isso. No Chile não se podia falar disso. Em 1980, o meu partido caiu e fui colocada em prisão domiciliária. Decidi então que tinha de sair daquele país.

Porquê?

Porque estávamos a ser perseguidos. Avisaram-nos que no sul estavam a falar de nós outra vez, estavam a falar do partido, por isso estávamos em perigo. E em vez de esconder-me como de costume, porque andávamos sempre de um lado para o outro, de um lado para o outro, em vez disso, o que fiz foi tomar uma decisão, fui ao Alto Comissariado das Nações Unidas. Sabia disso porque o “Vicaría de la Solidaridad” tinha essa morada, encaminhou-me para lá e pedi asilo algures. Não sabia para onde ia, não conhecia a Europa, e a 6 de março de 1981 parti para a Argentina. Fiquei lá seis meses à espera de saber qual dos países de opção tinha, a Bélgica, a França ou a Suécia. E ao fim de seis meses a Suécia deu-me asilo.

Então, parti com o meu filho da Argentina, Buenos Aires, para a Suécia. As autoridades disseram-me que não podia regressar porque tinha sido expulsa do país, não podia voltar a esse país. Bem, também não podia regressar ao Chile. Assim, vivi durante 16 anos, na Suécia, como refugiada.

Entretanto, as coisas estavam a acontecer no Chile. O plebiscito ganhou. E, pouco depois, Pinochet decidiu demitir-se e entregar-se às forças democráticas dos partidos democráticos. Mas ficou como senador vitalício como se nada tivesse acontecido. E finalmente regresso ao Chile, depois de tanto tempo, reencontro a minha mãe e o meu pai já idosos. Tinham perdido tudo o que lhes restava de juventude. E foi um momento maravilhoso, muito bonito. O meu pai disse: “Isto parece-me um sonho”. Porque o exílio também faz parte, não se conta, mas éramos cerca de, acho que não tenho a certeza do número, não sou matemática, mas acho que éramos cerca de dois milhões e meio de pessoas que deixaram o Chile. E ninguém, ninguém deve dar esse passo. Quem sai deve fazê-lo de livre vontade e não ser forçado a sair, porque perde-se muito e ainda por cima, se nos dizem que não podemos voltar, que nunca mais podemos voltar. Foi isso que me aconteceu. Acabei por nunca poder regressar ao meu país porque estava marcada por outras coisas. O amor pelos meus filhos, o amor pelos meus netos, o que construí aqui no exílio. Mas o que eu perdi foi muito, porque eu perdi o direito de viver no meu país. É mais uma condenação, é também um efeito colateral da ditadura.

Claro, muito pesado.

Era muito difícil, claro, porque eu já não tinha contacto com os meus pais, os meus pais também não tinham a possibilidade de viajar e de me ver. Era muito difícil, escrevíamo-nos por carta.

Guarda essas cartas?

Sim, e da minha mãe também. Quando a minha mãe morreu eu resgatei todas as suas cartas, por isso tenho-as. Estão cheias de lágrimas.

Sei que vai finalmente ter um livro traduzido para português e publicado em Portugal. Gostaria de nos falar sobre esse projeto?

Sim. Neste momento chama-se “Un Amor Fuera del Tiempo”. Não sei como se vai chamar, imagino que será exatamente o mesmo na tradução.

“Um Amor Fora do Tempo”

Isso. E já foi publicado em Itália, em França e agora vai ser publicado em Portugal e também na Grécia.

Então sobre o que é o livro?

É sobre a minha vida, é sobre toda a nossa vida, desde que conheci o Luís Sepúlveda quando tinha 15 anos, ele era mais velho, três anos mais velho do que eu. Quis mostrar o período em que ele começou a escrever, ele começou a escrever muito novo, tinha 12 anos, eu tinha 13, quando começámos a escrever, mas ele tinha 12 anos quando começou a escrever na escola, e escrevia poesia e lia muita poesia e foi, como eu digo a certa altura no livro, foi a primeira vez que conheci um poeta a sério porque não conhecia, não conhecia nenhum poeta. Em 1968 ficámos noivos, começámos uma história de amor que durou cerca de dois anos e meio, três anos, e casámos em 1971 e tivemos um filho. É essa a história, é aí que começa toda a história do que nos aconteceu depois, a separação, e também o exílio de cada um de nós.

Porque a Carmen foi para a Suécia e o Luís Sepúlveda para a Alemanha.

Finalmente na Alemanha, mas ele esteve em muitos países antes, ele viveu em muitos países antes.

Mas estabeleceu-se na Alemanha.

Sim, sim.

Então estavam separados?

Sim, claro, ficámos separados, cada um vivia a sua vida, cada um tinha um parceiro. Depois separámo-nos ao longo dos anos, dos nossos respetivos parceiros, e voltámos a encontrar-nos.

Como foi esse reencontro?

Lindíssimo, lindíssimo.

Onde foi?

Foi em Paris. Encontrámo-nos na Alemanha, mas na realidade fomos a Paris e reconciliámo-nos.

Quantos anos após a separação?

Vinte anos.

Depois ficaram juntos?

E depois ficámos juntos até ao final da vida dele, que foi a 16 de abril de 2020.

2020, com a covid.

Com a covid.

Mas sobre este reencontro, o facto de terem ficado juntos ao fim de 20 anos, a Carmen referiu uma ideia que me pareceu interessante que é o facto de o Luis Sepulveda estar a viver na Alemanha e a Carmen na Suécia. Portanto, queriam estar juntos, mas não sabiam onde.

Sim, no início não sabíamos onde. No dia seguinte, depois de voltar para mim, disse-me que íamos para Espanha. Mas que sítio de Espanha? Eu não conhecia Espanha. Tinha viajado muito pouco. Ele tinha viajado muito. Já era um best seller, muito conhecido.

Escritor que viajava pelos seus livros.

Eu não conhecia este conhecido “Lucho”. Tive de habituar-me de novo.

Ele não queria ir para a Suécia porque não falava sueco, é isso?

E eu não queria ir para a Alemanha porque não falava alemão. Por isso, decidimos ficar e escolher realmente a língua, que era Espanha. E escolhemos um sítio de que ele gostava muito, muito, e que conhecia bem. Era Gijón.

Que é onde a Carmen vive até hoje.

Sim.

Porque é que decidiu escrever um livro sobre a sua vida, partilhar connosco a sua vida com Luís Sepúlveda?

Porque, antes de mais, escrever é um conforto para mim. Estou no meio da pandemia. Estou sozinha. Preciso lembrar-me. Para mim é muito importante. A minha memória está a desvanecer-se, mas isso é uma coisa da idade. A verdade é que eu preciso de recordar, preciso de ter memória, e também preciso de falar do que vivemos, dos jovens militantes que viveram a experiência da Unidade Popular, depois o golpe e os nossos respetivos raptos e prisões. Ou seja, achei que me faria bem recordar isso. Quando contei ao meu editor e amigo Luigi Brioschi de Itália, da Wanda, a editora, contei-lhe e ele disse: “Mas eu quero o livro, eu quero-o”. Foi assim que se editou na Itália.

Portanto, é um livro que ao mesmo tempo nos dá uma ideia da história, porque é um testemunho pessoal do governo de Salvador Allende da Unidade Popular, e depois do golpe e da experiência pessoal resultante do golpe, de tudo o que aconteceu, mas é também uma história pessoal de amor.

Claro que sim, também é uma história de amor que valia a pena contar.

Porquê, Carmen?

Porque é única. Sei que há muitos casais que regressaram, conheci vários. Há pouco tempo conheci dois chilenos que também se encontraram, separaram-se no golpe, 40 anos depois voltaram. Sim, não sou a única, mas são histórias de amor especiais.

Porque acha que a Carmen e o Luis voltaram a juntar-se 20 anos depois? O que é que aconteceu? Como é que explica isso?

Em primeiro lugar, porque alguma coisa ficou pendente. Ficou sempre algo pendente. Nunca nos separámos mal, não nos separámos com raiva nem nada disso. Portanto, não havia nenhuma razão, exceto a imaturidade, porque éramos muito novos quando nos conhecemos. E foi para resgatar um pouco o que tínhamos perdido. Nós perdemos tudo. Como éramos ambos exilados, perdemos tudo. Sentimo-nos perdedores. Então resgatámos algo que tinha ficado. Como a música, por exemplo, e a ideia do nosso conceito de vida, que nos unia; há muitas coisas que nos uniam mais, mesmo nesta idade, do que antes. Os caminhos que tínhamos feito estavam a convergir para o mesmo caminho.

Está a falar com um sorriso.

(Risos) Sim, sim.

Há alguma informação mais concreta sobre o livro que nos possa dizer? ? Quando sai em Portugal, por exemplo?

Sairá numa editora chamada Exclamação, do editor Nuno Gomes. Não sei se vai ser lançado no próximo ano, não sei em que mês. Ainda não sei. Mas sei que vai ser lançado em breve. Está pronto, já foi discutido, já existe contrato, portanto, tem de sair. E em relação à minha outra obra, “La Poesía”, também há uma promessa de sair, que não está fechada. Mas “La Poesía” também vai sair.

Gosta da ideia de publicar o seu livro, e talvez a sua poesia em Portugal?

Sim, porque sempre gostei de Portugal. Sempre gostei muito das pessoas. São pessoas com as quais é fácil entrar. Entrar com elas e conversar. Sinto-me muito familiarizada com Portugal. Sempre me receberam muito bem neste país. E devo-lhes muito porque trataram muito, muito bem o Luis Sepúlveda. Por isso, para mim é muito gratificante, muito gratificante dar a conhecer este livro.

Para terminar, este livro que vai publicar em Portugal é prosa mas a Carmen é poeta. Queria perguntar-lhe o que é para si um bom poema, como é que sabe o que é um bom poema?

Independentemente das palavras utilizadas, para mim um bom poema desperta, resume o sentimento. Isso é muito importante. Nalguma palavra, mesmo que seja no fim ou no início ou no meio do poema, não importa. Algures o sentimento da poesia tem de sair. E a poesia tem de falar. A própria poesia tem de falar.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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