Nina Rizzi: “Acho que a minha escrita, a minha poesia, como a de qualquer outra pessoa, é política”
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___________________________________________________________________________________Nina Rizzi, (n. 1983), historiadora, tradutora, poeta, vive atualmente em Fortaleza, no Ceará, Brasil.
Para quem não conhece o seu trabalho cá em Portugal, pode ser oportuno darmos uma ideia recorrendo às suas palavras. Numa entrevista de há uns tempos, perguntaram-lhe o que encontramos quando entramos na sua produção literária e a Nina respondeu “na linguagem, na poesia, no corpo, no desejo, no feminino e no feminismo, na política, no anti poder, no selvagem, é algo que se quer destruir”. Parece-me uma ótima apresentação! Mas vamos tentar esmiuçar estes conceitos. A sua poesia é, então, política e feminina e feminista? Poderíamos realçar estas ideias?
Acho que toda a escrita, independente do tema, se escrever um poema de amor, se falar sobre a paisagem, se fizer um autorretrato, é um poema definitivamente político. O gesto da escrita é político. E, sobretudo pelo facto de eu ser mulher, uma mulher negra, uma mulher de um país latino-americano, isso torna a minha escrita ainda mais política. Então, antes de tudo, acho que a minha escrita, a minha poesia, como a de qualquer outra pessoa, é política, e o facto de estar nesses lugares, nesses meus lugares de mundo, tornam-na com uma força especial de política feminista, porque sou eu que escrevo, a mão da poesia é minha, e eu sou uma mulher feminista. Então, mesmo que eu não quisesse colocar a política na poesia, ela acaba por aparecer de alguma maneira. Mas, muitas vezes eu quero colocar, então isso aparece evidentemente em muito do que eu tenho escrito. No meu livro mais recente, que é “A sereia no copo de água”, todas as personagens são mulheres, e essas personagens vão-se cruzando de alguma maneira. Embora seja um livro de poemas, esses poemas formam uma espécie de narrativa. Então, podemos dizer que sim: é um livro que tem uma abordagem feminista.
E nesse sentido, é político?
Nesse sentido, também é político.
Mas quando escreve um poema de amor, um poema que está a descrever uma paisagem, um poema que está a descrever uma atmosfera mais campestre, por exemplo, como a que teve na sua infância, também aí é político?
Eu acredito que é político. Por esse gesto, sabe, do meu lugar de mulher, do meu lugar de mulher latino-americana, do meu lugar de mulher negra latino-americana periférica, de pegar na caneta e escrever quando preciso de fazer tantas outras coisas (também sou mãe, também sou professora), esse gesto de furar esse bloqueio hegemónico, canónico, branco, homem, hétero-normativo, é um gesto essencialmente político eu fazê-lo.
Mesmo que não o faça intencionalmente?
Mesmo que não seja intencionalmente, no caso de poemas como este. Agora, tem algo fundamental que é a maneira como vou olhar para essas paisagens. Então, por exemplo, se vou escrever sobre uma paisagem bucólica, o meu olhar é dessa mulher que vê as relações de poder, que vê as relações políticas dessa maneira. Então, não tem como não ser um poema político, porque o meu olhar é esse.
E quando é um poema de amor?
Da mesma maneira (risos). Porque, como é o meu corpo, o corpo dessa mulher que ama, o corpo de uma mulher que, diferente de outras pessoas, diferente sobretudo dos homens, experimenta a solidão de uma maneira muito particular. Portanto, experimento o amor de uma maneira muito particular. Fomos, por séculos, proibidas de escrever, mas não significa que não escrevêssemos; estávamos a escrever às escondidas, no meio dos diários, dos cadernos de receitas, e a conversar entre nós, fazendo círculos escondidos de bruxaria poética e compartilhando entre nós mulheres. Então, esta escrita passa por isso também, eu sinto o amor de maneira diferente. E essa proibição, esse impedimento, que não impediu na verdade, quando hoje eu e milhares de outras mulheres fazemos isso, é também um ato extremamente politico. A minha avó, por exemplo, foi proibida de ler, de escrever, possivelmente para não trocar cartas de amor com homens, e hoje eu escrevo poemas eróticos. Olha a força poética disto!
Duas gerações e o que mudou.
Exato! É a vingança pela poesia.
Por falar na sua avó, disse numa entrevista que o único livro que tinha em casa era a bíblia, e que a bíblia foi um material muito profícuo, muito bom para a sua imaginação enquanto leitora. E também que, o ato de revelação para a poesia foi quando leu Manuel Bandeira porque percebeu que a poesia podia ser tudo. Então, a partir daí começou a escrever? Foi depois do Manuel Bandeira que começou a escrever poemas ou já escrevia antes, nos diários e essas coisas?
Sim, eu já escrevia. Eu morava na zona rural e não tinha vizinhos, colegas, então a escrita para mim era uma espécie de amiga imaginária. Eu escrevia contando como se fosse mesmo um colega, “oi”, qualquer coisa assim. E tudo o que eu lia até então – lia Fernando Pessoa, que havia na biblioteca da escola, lembro-me que havia também Mário de Sá Carneiro, e muito de poesia brasileira -, mas um muito que é pouco lá, muito pouca poesia, na verdade. Mas a maioria da poesia que eu lia estava muito longe da minha realidade, e estou falando de mim enquanto pessoa criança. Eu não entendia aquilo que estava a ler, não havia uma mediação de leitura, essa leitura que eu fazia era por conta própria, então eu ia para a biblioteca porque eu queria, não era no momento das aulas de literatura, das aulas de língua portuguesa. E eu lia mas, mesmo sem entender, com 9 ou 10 anos lendo Fernando Pessoa e não entendendo nada, me agradava, me agradava profundamente. E lendo outros poetas também. E poetas mulheres, do que me lembro só havia uma, que era Cecília Meireles, era a única poeta que havia na biblioteca da minha escola e isso é uma tragédia. E, mesmo não entendendo, aquilo era fantástico para mim, era como se fosse uma música num idioma troglodita que eu não entendia mas que eu gostava, como uma música turca, que não entendes turco mas que te agrada o som. Só que, quando eu encontrei na biblioteca esse livro, era uma antologia, de Manuel Bandeira e esses poemas eram muito prosaicos, os temas eram sobre a vida, o quotidiano, não eram sobre a vida eterna e não eram escritos com palavras que estavam fora do meu reportório infantil, fora do meu reportório doméstico, era muito próximo de mim. E é incrível pensar também que Manuel Bandeira morreu mais de 60 anos antes de eu nascer, e ele era a pessoa mais contemporânea que eu conhecia. Então, quando eu li essa poesia, entendi. Além de ser bela, eu entendia. Aquilo abriu a minha cabeça e eu pensei, “caramba!”. Aquilo que eu escrevo enquanto amizade imaginária talvez caiba neste universo, talvez aquilo seja poesia. Será que eu sou poeta? (risos). E aí comecei a pensar sobre isso, mas isso já foi um pouco mais tarde, acho que tinha uns 13 anos talvez, e comecei a escrever já a pensar naquele arranjo das palavras, e isso converte poesia.
Há uma particularidade da sua poesia que tem a ver com uma expressão muito original que é “as poemas”. Vamos lá falar disto.
Vamos. A poema, as poemas, essa partícula feminina às vezes incomoda algumas pessoas, principalmente os homens, porque o poema não teria género mas “o” é um género masculino, neutralizamos e generalizamos a partir do masculino. E o masculino, para mim, ao longo de toda a minha história, sempre foi uma partícula de poder, de poder patriarcal, de poder opressor, de poder colonial, de poder estatal, de poder de polícia, enfim, todo o tipo de poder que nos oprime. E se a poesia para mim é um espaço de liberdade, um espaço onde posso ser o que eu quiser, onde conjuro palavras e elas fazem amor, tornam-me livre, e onde outras pessoas vão ler e também poderão sentir-se livres, quer dizer, pela linguagem operamos mudanças, eu acredito nisso. Paulo Freire dizia que é através da linguagem que as opressões e os preconceitos se naturalizam, se cristalizam. Então, quando eu faço esta simples operação de trocar o género do poema que é neutro, mas isso é uma falácia, não é neutro, eu troco pelo “a” na verdade esse “a” também não é feminino, aqui eu estou a neutralizar para um feminino que na verdade é muito múltiplo, é um “a” que é travesti, que é “bicha”, que é “veado”, que é gordo, que é preto, que são todas as “gentes”, é criança, é bicho, é animal.
A respeito disso, eu escrevi um ensaio que foi publicado no suplemento de Pernambuco, então se pesquisarem no Google “Nina Rizzi, a poema suplemento Pernambuco”, podem ler esse ensaio onde falo mais sobre isso, e como se cruza com colonização, escravidão, tradução e várias coisas.
Fica aqui a dica para as pessoas procurarem na internet. Tive também a oportunidade de ler que o seu processo criativo passa por escrever todos os dias, mesmo que não seja com papel e caneta, porque está sempre a escrever na cabeça. Portanto, digamos que a sua produção é profícua. Mais, que depois quando escreve o poema, deixa o poema vir como vem, deixa a roda livre digamos assim, e que só mais à frente é que vai cortar e editar, se for caso de fazer isso. Mas interessou-me particularmente a ideia de escrever todos os dias, não necessariamente com papel e caneta. Quer dizer que é poeta a tempo inteiro Nina?
Sou, estou a ser poeta aqui, agora (risos). Acredito muito nisso. Acredito que a poesia não precisa de “ISBN”, não precisa de papel, não precisa de caneta. Eu acredito que as pichações que vemos nos muros são poesia, eu acredito que as obras que vimos ali fora com as mãos das crianças e os nomes das crianças aqui, na Casa da América Latina, que aquilo é poesia, uma poesia coletiva feita por centenas de crianças, que eu inclusive gostaria de conhecer e de pedir autógrafos (risos).
No ensaio “Em busca dos jardins das nossas mães” Alice Walker diz que nem todas as pessoas querem escrever e que, às vezes, quando temos uma vida muito difícil e urgências na vida, por exemplo, preciso de comer, preciso de trabalhar, eu não tenho tempo para ir atrás da arte. Mas será que a arte é mesmo só livros? Será que a arte é mesmo só as artes visuais, só a música? E aí ela reflete, ela lembra-se da mãe a tratar dos jardins na casa dela e ela pensa que aquilo era a forma de a mãe dela também fazer arte. Da mesma maneira, eu vejo poesia a passar, ela é a beleza na vida das pessoas, ela é aquilo que fazemos de criativo, enquanto tens um trabalho que te massacra, que te obriga a estares ali 12 horas. O momento que tens para fazer algo criativo na tua vida, algo por ti mesma, e que também é algo pelo coletivo porque eu não vejo a poesia como algo individual, ela não é minha.
Está em relação com o outro?
Está em relação com o outro, então isso que eu faço também é poesia. E esse pensar o tempo inteiro, o meu pensamento também vai estar em relação com o outro, porque eu vou colocar esse pensamento em ação, não vou ficar trancada dentro de casa. Mesmo que o meu corpo fique numa situação destas de pandemia, por exemplo, eu vou de alguma maneira estar em relação com o mundo. E mesmo fazendo um trabalho mecânico, esse pensamento criativo que é meu, ele vai sair para fora e entrar em relação com as outras pessoas, enfim, sendo poeta o tempo todo.
A poesia serve para quê?
Essa é uma pergunta difícil (risos). A poesia serve para tudo. Eu tenho uma estante de livros na minha casa mas houve uma altura que não tinha. Quando eu não tinha, por exemplo, aquela menina da escola, aquela menina que eu fui, que era diferente da maioria das outras crianças, porque eu morava na zona rural e não havia uma escola no campo, então eu tinha que estudar na cidade. Então, aquela menina que não se identificava com a escola, que não pertencia àquele espaço, e pertencer é uma palavra muito importante, que não pertencia àquele lugar, foi de alguma maneira salva pela poesia. Acho que a poesia nos salva. Pode não nos salvar da morte, pode não nos salvar da pobreza, pode não nos salvar da miséria, mas ela é uma trégua no meio da tristeza, ela é uma trégua inclusive no meio da pobreza, ela é uma trégua inclusive no meio da guerra, ela é aquele segundo onde deixas de respirar sofrido. E para quem faz poesia, ela também é esse momento de deixar de respirar sofrido, e isso não é apenas curativo, é uma forma de estar no mundo também, de interferir no mundo, de conjurar outras realidades. O quanto de mim não mudou por causa de poemas que eu li, penso que sou uma pessoa muito melhor por causa da poesia.
E isso que acaba de dizer desemboca perfeitamente na última pergunta que lhe quero fazer. A Nina deve saber, claro, enquanto leitora, muitos versos de cor, não sei se poemas, mas pelo menos versos, um verso deve saber. Qual é o primeiro que lhe vem à cabeça?
Sempre Manuel Bandeira, claro.
“Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .
— O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.”
Entrevista realizada por Raquel Marinho