José Carlos Vasconcelos: “Ele criou uma nova linha na literatura brasileira (…) Era uma figura extraordinária e que conseguiu manter-se jovem e vivo até ao fim”

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– Recorda-se de quando conheceu pessoalmente Rubem Fonseca. 

Recordo, recordo bem. Porque eu tenho uma grande ligação ao Brasil, ao Brasil antes de Bolsonaro, era amigo de muitos escritores, aliás o Jornal de Letras tem presença no Brasil, e o Rubem Fonseca, de quem eu já era amigo e que muito admirava, nunca tinha conhecido porque ele vivia muito à margem desses círculos literários, e não dava entrevistas, etc. E, por acaso ou não por acaso porque ele era também muito do género do meu querido amigo João Ubaldo Ribeiro, que era amigo do Rubem, e que também não era frequentador desses meios, e estava com ele com regularidade nomeadamente para ir almoçar a um dos botecos que eles frequentavam, e foi assim que eu um dia fui almoçar com o João Ubaldo e com o Rubem. E conheci-o e ele de facto era uma figura interessantíssima, impressionante. Um homem com uma linguagem muito, como se diz em português, desbragada, como aliás acontece nos livros dele. O contrário daquela figura mito intelectual, interessante, a falar muito de literatura ou de coisas muito intelectuais, que ele aliás mais ou menos detestava, o que dizia nessa sua linguagem muitas vezes vicentina.

– O facto de o Rubem Fonseca ter sido uma pessoa avessa a esses meios e a essa exposição pública que comporta entrevistas, por exemplo, fazia também dele uma pessoa avessa a conhecer pessoas novas, ou uma coisa não tem nada a ver com a outra? Ou seja, ele foi simpático consigo? Como é que ele foi? 

Sim, sim, muito. E, de facto, hoje eu penso que se calhar uma das razões pelas quais ele pouco aparecia lá no Brasil, a não ser em encontros literários ou assim, é porque de facto ele era um extraordinário performer. Era um homem que se se visse num palco tinha uma conversa fantástica, e isso aconteceu quando ele vinha às Correntes d´Escritas. Quando as Correntes o convidaram para vir cá a Portugal eu nunca pensei que ele aceitasse. Mas ele aceitou, veio logo e foi uma das coisas inesquecíveis das Correntes foi essa intervenção dele. Aliás mais do que uma porque como disse ele era um grande performer, um grande contador de histórias, com um ritmo e uma presença no palco fantásticos. Portanto, no Brasil se ele fizesse isso não o largavam. Bom, nem teria tempo para escrever, passaria a vida a fazer isso. Era um homem, de facto, muito simpático, afável, embora quem o conhecia melhor diga que teria momentos melhores e momentos em que seria menos comunicativo. Aliás, uma das pessoas que diz isso, e até no último Jornal de Letras, disse qualquer coisas nesse género, é outro grande escritor brasileiro que também é um extraordinário performer, aliás esse até faz espetáculos com a filha, que é o Ignácio Loyola Brandão. São os dois, de certa forma, do mesmo género. O Ignácio também não é dado assim às grandes divagações intelectuais.

– Lembra-se de que é que conversaram nesse almoço quando se conheceram?

Desse já não me lembro bem, mas lembro-me de outro. Agora dentro dessas matérias houve um almoço para mim inesquecível, interessantíssimo, eu até na altura penso que tomei umas notas mas não sei onde estão, que foi exatamente na Póvoa com ele e com o Eduardo Lourenço. Aliás os dois deram-se muito. E lembro-me que foi num restaurantezinho na Póvoa que tem um óptimo peixe e tal, e de estarmos os três, e então os três somávamos 250 anos (risos). Eu era o mais novo, somávamos juntos 250 anos e a conversa foi formidável. O Rubem gostou muito do Eduardo e o Eduardo do Rubem, sendo de certa forma contrários, embora o Eduardo Lourenço também seja um homem com muito espírito e até muito sentido de humor, e nada académico num sentido pretensioso ou de ter uma conversa para assumir alguns ares e utilizar certas expressões mais difíceis, entre aspas. Mas esse almoço foi fantástico porque quase que se completavam, cada um no seu género.

– O facto de estar na presença do Eduardo Lourenço não demoveu o Rubem Fonseca de usar a dita linguagem vicentina, para o citar?

Não, não. Ele fazia isso mais ou menos em toda a parte, aliás começa por o fazer também nos livros. Ele na sua conversa e no contacto, a linguagem que utiliza nos livros e que é uma das coisas que de facto também mostra a forma como ele corta com certos padrões da literatura brasileira, na conversa era uma presença constante, E noutras coisas. Foi acusado algumas vezes de pornografia quando a ditadura proibiu um dos seus livros a acusação foi essa, de ser pornográfico. Ele aliás quando começou a escrever já tinha 38 anos, não é? Era um homem que tinha começado como inspector na polícia, não a polícia política obviamente, a polícia normal, depois foi quadro de uma empresa normal, e só publicou o primeiro livro com 38 anos, no início não foi alguém que se tivesse oposto à ditadura, ao golpe de 64, mas depois teve esse livro proibido e uma das acusações era essa.

– Como é que o José Carlos Vasconcelos falaria dos livros do Rubem Fonseca a quem ainda não o leu? Por que razão vale a pena lê-lo?

Bom, é um grande escritor. É um grande escritor e um grande contador de histórias. Foi perfeitamente inovador no tratamento de certos meios sobretudo urbanos do Brasil, e de meios marginais, e de nos seus livros estar presente a violência urbana. Ele criou, digamos, uma nova linha na literatura brasileira que, até ele, tinha entre os mais famosos pessoas quer mais ligadas ao mundo rural, quer ao nordeste, o Jorge Amado, mesmo o Graciliano, embora sejam linguagens e escritores totalmente diferentes ou, embora isso noutra zona, o Érico Veríssimo e o Guimarães Rosa mas mais como um grande clássico da literatura e de um estilo completamente inconfundível, o Rubem vem dar um novo Brasil, um Brasil de agora. Aliás há um texto do Miguel Sanches Neto em que diz que de certa forma o considera uma espécie de Machado de Assis de agora pelo que ele revela do Brasil atual, este Brasil urbano, o Brasil da violência, o Brasil pós moderno. Por outro lado, acho que ele aproveita no melhor sentido o que vem da literatura policial, tem alguma técnica e alguns truques do chamado best seller americano, mas fazendo-o de uma forma que é única. Tem de facto um estilo único e grandes livros. Para mim “A Grande Arte” e sobretudo talvez o “Agosto”, porque tem uma vertente política. É um grande livro e ao mesmo tempo documenta excecionalmente uma certa época do Brasil.

– Seriam então essas as suas sugestões. Quem ainda não o leu, começar ou por “A Grande Arte” ou pelo “Agosto”.

Sim. Seriam essas duas sugestões. Estou agora a lembrar-me da intervenção dele nas Correntes d´Escritas, e felizmente está gravado o essencial dessa intervenção, que é o exemplo dessa criatividade na linguagem, em que ele desenvolveu aquilo que ele acha que os escritores têm de ser. Ele disse loucos, alfabetizados, motivados, pacientes e com imaginação. E a partir dessa fórmula ele desenvolveu cada atividade.

– E esse registo está gravado?

Está, está. 

– É dessa forma, se calhar, que o vai recordar. Nessa intervenção.

Sim, sim. Com a figura humana eu, como digo, não tive muitos contactos, como tive com o João Ubaldo, querido amigo, Jorge Amado, amigo, e tantos outros, mas ele é diferente dos outros. Ele de facto foi um homem que cortou e traz alguma coisa de novo em muitos aspetos, e até no aspeto humano, e na forma de relacionamento era uma figura extraordinária e que conseguiu manter-se jovem e vivo até ao fim. 


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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