Margarida Lages: “O arquivo no fundo são milhares de vozes a gritar”
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___________________________________________________________________________________Margarida Lages é diretora do Arquivo e Biblioteca do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, uma organização que integra a RADI, a Rede de Arquivos Diplomáticos Ibero-Americanos. Margarida Lages assume nos próximos dois anos a presidência desta rede que acaba de se reunir em Santo Domingo, na República Dominicana.
Acaba de chegar da reunião da Rede de Arquivos Diplomáticos que decorreu em Santo Domingo, na República Dominicana, onde se tomaram algumas decisões de mudança. Quer partilhá-las connosco?
– A reunião na RADI é anual, e estiveram presentes a maior parte dos países que fazem parte da rede. Não esteve o Panamá, mas esteve a Bolívia, Cuba, Chile, El Salvador, Espanha, México, Paraguai, Peru, Portugal, República Dominicana e Uruguai, e ainda foi um representante do Brasil. Eu pensei, quando fui para lá, que era interessante fazer outras coisas. E uma das ideias foi criar uma partilha, em forma de publicação online, dos desenvolvimentos de cada um dos arquivos: o que é que se fez neste ano, as novidades, como é que o arquivo está, eventualmente a identificação de um ou outro documento que seja interessante para partilhar.
E foi isso que propôs agora na reunião?
Eu propus isto e foi aprovado, e propus mais. À semelhança da EUDiA, que é a Rede Europeia de Arquivos Diplomáticos, uma rede informal no âmbito da União Europeia, eu propus fazer uma publicação comum a todos sobre um tema comum. Por exemplo: o 25 de Abril visto em todos os arquivos da América Latina, a Guerra Civil Espanhola, ou a queda de Franco, a mudança para a Monarquia Constitucional, o Golpe de Estado no Chile. Enfim, há toda uma série de temas que têm uma dimensão local mas têm, ao mesmo tempo, uma dimensão mundial, e sobretudo são importantes para a história das relações externas e para a história mundial porque são marcos que saem das fronteiras de cada um dos países. Eles concordaram, embora eu considere que isto vá por problemas de prazos porque os arquivos têm todos dimensões muito diferentes. Para lhe dar uma ideia, o arquivo do Uruguai tem 2 pessoas, e o arquivo do México tem 90.
Chegaram à conclusão de algum tema comum para iniciar esse projeto?
– Não, ainda não mas eu fiquei de pedir contributos e propor uma série de temas.
Portanto, para esta reunião agora recente, a Margarida Lages levou algumas ideias novas que foram aprovadas. Uma delas é este tratamento online de um tema comum aos arquivos que fazem parte da rede.
– E a outra é uma espécie de newsletter dos arquivos. Dizer o que se fez durante um ano, identificar ou destacar algumas das atividades mais importantes.
Sendo a Margarida Lages portuguesa e este ano presidente da RADI, o que é que sai desta reunião no que diz respeito à relação de Portugal com os países da América Latina?
– O que sai já saiu o ano passado e já saiu antes. Eu sempre achei que era importante dar um salto para outras coisas diferentes. Modificar algumas coisas para se alcançar outro público. Por exemplo: não é só na questão de fazer uma newsletter ou uma publicação para partilhar com o grupo europeu dos arquivos diplomáticos, mas também para termos entre nós um elemento comum de trabalho e de pensar em comum os arquivos todos. E não ser só a questão dos riscos, ou das inundações, ou do fogo. Não ser só uma questão meramente técnica, mas ser também uma questão de mostrar a vida que o arquivo tem.
O conteúdo.
– Exatamente. Porque o arquivo no fundo são milhares de vozes a gritar e as pessoas não ouvem.
Portanto, propôs uma uniformização ao nível dos conteúdos.
– Exatamente, e também fazermos em conjunto, que é uma coisa importante. É sentirmo-nos parte. Não é só apresentar um projeto, não é só ler umas circulares e umas notificações que se mandam e pagar uma quota, mas é também fazer parte de um projeto, partilhar um projeto. E só se partilha um projeto se se fizer em conjunto.
E essa partilha depois, imagino, permite também contactos mais regulares que não sejam apenas as reuniões anuais.
– Claro. Outra das coisas que também fizemos, relativamente à forma como se apresentam os projetos e à forma como vão ser avaliados, foi criar umas regras diferentes. Porque a forma como os projetos são apresentados permite que eu possa apresentar o mesmo projeto com a fase 1,2,3,4 até ao infinito, sempre, e isso é um trabalho de arquivo normal. E aquilo que eu defendi e que está mais ou menos assente é que os projetos têm de ser uma coisa que caia fora do âmbito de trabalho estrutural de um arquivo ou de um ministério.
E chegaram a alguma conclusão?
– Chegámos à conclusão de que sim, mas por enquanto ainda não, mas talvez. E outra das coisas que foi muito importante foram as linhas estratégicas, e agora vou repetir-me, da planificação estratégica, que tem de ser feita de acordo com a SEGIB (Secretaria Geral Ibero-Americana), posto que a rede pertence à SEGIB, de 2020 a 2023. Aprovámos as 4 grandes áreas que são a “formação e capacitação”, “o fomento à investigação”, “o apoio aos arquivos diplomáticos” e “publicações”, que também implica o site, porque o site tem de ser mudado e tem de ser segundo as normas da SEGIB.
Um dos 4 pontos dessas linhas de orientação, que tem precisamente a ver com o apoio aos arquivos, está relacionado com os projetos que a RADI apoia anualmente que são projetos de investigação. Nesta reunião que acaba de acontecer em Santo Domingo esses apoios foram discutidos e votados. Quais foram as conclusões?
– Nós tínhamos 11 projetos candidatos a receber financiamento. 3 do Chile, 1 do Equador, 3 do México, 1 do Peru, 1 de Portugal e 2 da República Dominicana. O facto de serem 11 projetos que, multiplicados por 10 000 mil euros, perfaz 110 000 euros. Isso é absolutamente impossível para uma rede pequena como a RADI. Também verifiquei que eram sempre os mesmos países a concorrer e a ganhar. Então, eu achei que só devia ser 1 de cada país, e houve uma discussão violenta. Chegámos a várias conclusões. Primeiro, que só 6 projetos eram passíveis de ser apoiados, porque tem de se ter um montante definido. Além disso, aquilo que ficou mais ou menos assente, é que um projeto é único, não há primeira, segunda e terceira fase do mesmo projeto para os anos a seguir. O projeto quando é apresentado é um todo e depois logo se vê se continua ou não.
Então até agora não havia limite para as candidaturas?
Não. Daí termos definido um limite. Eu disse que mais do que 2 projetos por país não podia ser.
E este ano ficaram quantos?
Foram aprovados 6 projetos. 1 do Chile, 2 do México, 1 do Peru, da República Dominicana e de Portugal. O projeto de Portugal que foi apoiado consiste na descrição e colocação em catálogo e na web da parte que falta do fundo do arquivo da antiga Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Assim vai ficar todo disponível na internet.
O júri destes projetos de investigação apoiados pela RADI é composto por pessoas da RADI ou de fora?
– São pessoas de fora. Pessoas que ou estiveram ligadas a arquivos, ou estão, ou estão ligadas a questões ibero-americanas.
E o júri decide a cada ano qual o valor dado a cada projeto?
– Não. O valor é sempre o mesmo. São 10 mil. Pode ser menos, por exemplo, o Peru pediu menos, mas o máximo é 10 mil. E uma novidade em relação a estes apoios é que vou propor a apresentação de relatórios, que ninguém apresenta. Relatórios finais e relatórios a meio tempo da concretização dos projetos.
Há uma outra valência da RADI que tem a ver com um prémio para trabalhos académicos. Este ano o Prémio RADI foi para uma investigadora chamada Heloísa Paulo com um trabalho chamado “Os Exilados de Salazar”. Fale-nos deste trabalho.
– A Heloísa Paulo é uma investigadora de origem brasileira que está em Portugal há muitos anos e trabalhava na Universidade de Coimbra. É um trabalho pós-doc sobre as pessoas que obrigatoriamente foram exiladas por razões políticas no tempo de Salazar, e quase todas foram para o Brasil. E portanto esse é um trabalho muito importante, e foi muito difícil que ganhasse porque há outro em igualdade de circunstâncias do México chamado “O México na União das Repúblicas Americanas. O Pan-Americanismo e a Política Exterior Mexicana de 1889-1942”. É uma tese de doutoramento em História e de facto é um trabalho muito bem feito, muito bem escrito e bastante importante. Não há muitos concorrentes a este prémio porque o coração da investigação tem de ser feito em arquivos diplomáticos, portanto, nem sempre os trabalhos estão prontos a tempo e nem sempre as pessoas concorrem.
Qual é o valor do prémio?
– São 2.500. dólares. Não é muito, no fundo é simbólico, mas também inclui a publicação do livro.
O prémio distingue trabalhos que já estão concluídos ou é um prémio de apoio à investigação de uma ideia?
– Não. É um prémio para um trabalho que está concluído. Pode ser um artigo, uma tese, um livro, o que quiser.
No âmbito dos arquivos ou no âmbito do universo latino-americano?
– No âmbito da história das relações internacionais do direito do que entender latino-americano. O propósito é incentivar a investigação das relações diplomáticas na ibero-américa, através da consulta e do estudo da documentação diplomática que está nos arquivos diplomáticos. Podem participar todas as investigações cujo tema verse sobre a história das relações diplomáticas internacionais na ibero-américa.
Quem foi o júri este ano?
– Este ano foram 3 professores, dois mexicanos e um português. Eu sugeri que para o ano 3 países indicassem 3 pessoas diferentes para cumprir essa função. Este ano, foram escolhidos 2 pelo México e 1 por mim, porque o Chile não conseguia encontrar pessoas para a função.
Para quem não conhece a Rede dos Arquivos Diplomáticos Ibero-americanos da qual Portugal faz parte, porque temos de partir deste princípio, como nos falaria do que existe neste arquivo diplomático português?
– Então, para já e segundo a lei, a parte diplomática, ou seja aquela que resulta do trabalho do Ministério dos Negócios Estrangeiros naquilo que é a sua especialidade, é um arquivo diplomático e está excecionado por lei; é um arquivo que não pode ter um acesso como os outros. Também temos toda a parte administrativa. Os funcionários, os orçamentos, as compras de imobiliário, mobiliário e o que quiser. O Arquivo Diplomático na sua especificidade é um arquivo que é composto por outros tantos arquivos, porque são todos os países com quem nos damos. Porque ao ter relações com outro país, isso implica ter lá uma embaixada ou uma representação, existe documentação do país em que nós estamos que entra no nosso arquivo. E portanto nós somos um arquivo composto por outros arquivos. Temos arquivo das Nações Unidas e as Nações Unidas têm nosso, por exemplo. Este arquivo tem uma particularidade especial que é o facto de estar sujeito a classificação, e portanto há documentos que só podem ser comunicáveis, o que não quer dizer que sejam, depois de passar um prazo. Está comummente aceite que, para a documentação diplomática, o prazo é de 30 anos. No entanto, dada a sua sensibilidade, há a questão da segurança e da defesa das relações do Estado e do próprio Estado.
E essas questões de segurança têm primazia sobre tudo o resto?
– Temos uma comissão de seleção e desclassificação que dá pareceres sobre a classificação ou não dos documentos. Em lugar de fazermos como nos Estados Unidos que vamos de organismo em organismo a pedir a desclassificação e a explicar porquê, e aparecem-nos documentos que estão todos riscados exceto o “just” e o “and” ou coisas do género, nós aqui decidimos que ou se desclassifica ou não se desclassifica.
Mas o ponto prévio é sempre esses 30 anos?
– Há exceções. Por exemplo, a presença de Portugal na Bienal de 2015. Acabou, está fechada. Não há nada que justifique que não possa ser apreciada a possibilidade de ir a consulta, porque aquilo acabou. Outro exemplo: Macau. A questão de Macau acabou, fez 20 anos agora e já há gente a escrever sobre ela. Não se podem é consultar todos os documentos, porque ainda há coisas que podem ser complicadas com pessoas que estão vivas por exemplo.
Fala disto com muita paixão.
Eu adoro este arquivo. Adoro!
Porquê?
Porque gosto imenso. Gosto muito do tipo de trabalho que faço, gosto muito do tipo de documentos. Eu estudei História, e trabalhei na Torre do Tombo e na Biblioteca Nacional, mas nos outros sítios eu não tinha a noção da quantidade de vozes. Por exemplo, eu não tinha a noção do quão importante é a documentação que nós temos da Segunda Guerra Mundial. Nós achamos que fomos um país neutral. Não é verdade, nós fomos neutrais efetivamente porque não entrámos na guerra, mas por aqui passou imensa gente. A questão do Aristides Sousa Mendes neste Ministério é magna, não há quem não pergunte onde está o livro, que aliás é registo de Memória do Mundo. E há uma série de outros assuntos como as relações entre os países, as questões da defesa da nacionalidade portuguesa, o direito internacional, o nós sermos o depositário legal de todos os acordos e memorandos e protocolos que nós firmámos com o estrangeiro. Por exemplo, o Tratado da União Europeia está cá, o Ultimatum está cá. Há uma série de documentação muitíssimo interessante e que permite ter uma visão do país diferente, que não se tem muito quando não se estuda esta documentação. E há um imenso mundo por ler e por estudar.
E a Margarida gosta de fazer parte dessa forma de olhar para o arquivo.
– Sim, porque o arquivo aqui dentro era arquivo morto, quando o arquivo morto é o que nós fazemos, aquele que deitamos fora. O arquivo histórico é sempre vivo porque está sempre a ser alimentado. E as pessoas achavam que o arquivo era uma porcaria até ao dia em que perceberam que o arquivo é prova. É prova de que eu existo, de que a Raquel existe, de que nos pagam o ordenado, e de que vamos ter uma reforma, Deus queira. E como é de prova que falamos também temos cada vez mais investigação histórica. Há cada vez mais historiadores e investigadores estrangeiros porque conseguimos pôr o catálogo online.
Algum tema que considere que poderia ou deveria ser estudado no qual ainda ninguém pegou?
– Por exemplo, todo o arquivo sobre trabalho forçado e escravatura que existe aqui no Ministério não está estudado.
É uma boa dica para fecharmos a entrevista. Pode ser que algum investigador nos leia.
– Exatamente. Eu ando a fazer publicidade mas eles nada.
Entrevista por: Raquel Marinho