Entrevista ao Vice-Presidente da CAL
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___________________________________________________________________________________O Embaixador Mário Lino da Silva foi recentemente nomeado Vice-Presidente da Casa da América Latina, em representação do Ministério dos Negócios Estrangeiros. A CAL conversou com ele sobre a realidade económica e política da América Latina. Lino da Silva considera a região “um mosaico” com realidades muito distintas que deve ser estudado, e afirma que as comunidades portuguesas na América Latina deveriam ser mais conhecidas e o seu conhecimento da realidade local mais aproveitado pelas autoridades diplomáticas portuguesas.
Foi escolhido em 2014 para o cargo de Vice-Presidente da Casa da América Latina, em representação do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Como decorreu esse processo de escolha?
Quero antes de mais agradecer a oportunidade desta conversa, dado eu ter assumido estas funções há relativamente pouco tempo. Esta nomeação acontece num período ideal da minha carreira, dado ter terminado recentemente funções de Embaixador na Venezuela e ter atingido o final do ciclo de um diplomata de carreira: os 65 anos, a partir dos quais os diplomatas deixam de exercer funções no exterior. Este regresso à base propiciou que os timings, da CAL e do MNE, coincidissem, na altura em que era necessário preencher a vaga de representante do MNE. Regressado da minha última missão, fui convidado. Conjugaram-se oportunidades e vontades.
Tem revelado interesse em participar na concepção de iniciativas da CAL. Que contributo crê poder dar?
Uma das “condições” que impus para aceitar o lugar foi não ter um papel decorativo, mas sim interventivo. Era isso o que estava, aliás, no espírito do MNE e dos corpos dirigentes da CAL. Quando me colocaram a hipótese de vir a assumir este cargo, a primeira coisa que fiz foi estudar o ‘core business’ da CAL ao longo do ano. Dei-me conta de que, dentro das várias vertentes de actuação da associação, havia uma para a qual eu me sentia mais à vontade: a económico-empresarial. Tenho formação em Finanças e desde sempre, ao longo da minha vida profissional, tive uma apetência particular por esta área, conjugando-se isso com a aposta forte que o MNE introduziu na vertente da diplomacia económica. Não quero menosprezar as outras vertentes da CAL, mas podendo a minha acção ser mais frutuosa na área económica ficou combinado que eu colaboraria estreitamente no planeamento de acções desse cariz.
A aposta da CAL na vertente económica coincide no tempo com a maior aposta do governo português na diplomacia económica. O facto de existirem outras entidades, como a AICEP, com competências e peso institucional nesta área reduz a influência que a CAL poderá ter no estreitamento de laços económicos entre Portugal e a América Latina?
O objectivo de encurtar as “distâncias” entre Portugal e a América Latina é de uma grande magnitude. A divulgação de oportunidades naquela região junto das empresas portuguesas deve ser a maior possível, e para isso, são importantes instituições como a CAL. A CAL tem também uma ligação próxima com as Embaixadas latino-americanas, que procuram investimento para os respectivos países. Todos não somos demais para o objectivo de melhorar as relações económicas com a América Latina. A AICEP e o MNE têm funções definidas, mas há áreas em que outras instituições podem contribuir de forma importante. É aí que se insere a CAL. Não duplicando esforços, pois isso seria ineficiente e oneroso, a CAL e as outras entidades podem trabalhar em conjunto e descobrir oportunidades para o sector empresarial português.
Por outro lado, a CAL tem associados que a financiam. Essa diferença em relação à AICEP e a outras entidades faz com que a CAL deva pensar a diplomacia económica de modo distinto?
A CAL pode exercer muito bem uma acção de proximidade. O facto de ter empresas associadas no seu seio facilita muito o intercâmbio de informação, pode torná-las co-participes permanentes no diálogo com as Embaixadas latino-americanas, também associadas da CAL, e permite uma interacção muito interessante entre todos os sócios da CAL. Isso leva a uma troca de experiências frutuosa e permite um conhecimento mútuo que cria necessariamente cumplicidades que facilitam o alcançar pleno do objectivo fundamental da CAL, que é o de fomentar o entendimento e a cooperação entre os países da América Latina e Portugal. As outras instituições que perseguem este mesmo objectivo genérico da CAL, através das suas próprias competências, acabam certamente por se inserir no quadro de complementaridade desejável entre todos os intervenientes nesta área.
Em que medida as actividades planeadas pela CAL para 2015 encaixarão nesse desígnio?
Estão a ser concebidos projectos para visitas de trabalho, de estudo até, a empresas. O trabalho da CAL de facilitadora de conhecimento sobre a realidade portuguesa e latino-americana continuará a ser desenvolvido através de visitas de representantes diplomáticos a regiões e a empresas portuguesas. A CAL continuará à procura de pontos de interesse comuns entre empresários e representantes diplomáticos latino-americanos.
Foi Embaixador na Venezuela e Peru, e também Embaixador não residente na Bolívia. Viveu vários anos na América Latina. Quais são, no seu entender, os principais eixos que distinguem os países latino-americanos em termos de integração económica e potencial para o investimento externo?
Esta pergunta permite-me abordar uma questão que é muitas vezes menosprezada pelos observadores nacionais. Na análise das questões latino-americanas, é frequente descurar-se a diversidade que existe na América Latina. O padrão histórico-cultural que nos liga a toda a região não justifica que se pense nela como uma realidade uniforme. Os países são muito distintos entre si: a Bolívia nada tem a ver com a Venezuela, nem o Equador com o Chile, por exemplo. A diversidade cultural, étnica e até linguística são grandes dentro dos próprios países e, consequentemente, de país para país. Os vários países devem ser estudados detalhadamente. O Peru, por exemplo, pode ser visto de modo tripartido: o Peru litoral é muito diferente do andino e, estes dois, do amazónico. São três realidades que têm muito a ver com a geografia do país. Por esta razão, as nossas empresas, antes de se lançarem na via da internacionalização em direcção à América Latina, devem fazer muito bem o seu trabalho de casa.
Esse trabalho passa inevitavelmente também pelo estudo da legislação em vigor nos países da América Latina.
Sim. A CAL pode ser importante nesse trabalho, pelo conhecimento acumulado que tem. Outro aspecto que me parece muito importante salientar é o papel que as comunidades portuguesas nestes países podem ter. Há também empresas portuguesas, já instaladas na América Latina, com muito saber acumulado. Não há custos nesta procura de um contacto com quem já vive e trabalha lá. A ajuda dessas pessoas ou entidades pode ser um suporte importante para as empresas que queiram investir nestes países.
A Venezuela é talvez o país onde pode ser mais relevante o contributo das comunidades portuguesas.
Excluindo, claro, o caso do Brasil, a Venezuela é o país onde esse papel pode ser mais importante. A primeira geração chegou no final dos anos 30, há pessoas dessa geração ainda vivas que participam nas actividades da comunidade portuguesa. Já têm filhos e netos, estão completamente integrados na sociedade venezuelana. No conjunto, contando com os luso-descendentes, são cerca de 1,5 milhões de pessoas. É obrigatório que contemos com este activo. Como é apanágio do nosso povo, não é nada difícil encontrar portugueses em qualquer dos quatro cantos do mundo, pelo que não há que menosprezar este importantíssimo activo como fonte de conhecimento e de sabedoria para empresários que queiram investir no exterior.
A entreajuda será grande, mas há certamente o risco de os portugueses ou luso-descendentes que residem e trabalham na América Latina não transmitirem muito do que sabem para não arriscarem perder as suas condições de vida actuais.
Haverá certamente situações criticáveis, até egoístas, na hora de transmitirem conhecimento. Mas mesmo nos sectores em que poderão concorrer com as empresas recém-implantadas, a dimensão das empresas, as características dos produtos e serviços que comercializam, etc., acabam por fazer com que a colaboração possa ser estreita e a ideia de competição menos forte.
Há experiência desse tipo de sinergias entre empresas portuguesas na América Latina?
Sim. Hoje em dia a realidade dos consórcios é permanente. A América Latina é um subcontinente, tem uma dimensão muito diferente da portuguesa e europeia. Daí que a maior parte das empresas portuguesas não tenha dimensão para, isoladamente, concorrer a determinados empreendimentos. É natural e frequente a apresentação a concursos na modalidade de consórcio.
Foi Embaixador na América Latina entre 2003 e 2014. O que destaca dessa experiência?
Antes de mais, quero destacar a mudança de paradigma e de visão das autoridades portuguesas, que passaram a assumir a área económica e empresarial como um dos grandes objectivos da política externa portuguesa. Eu entrei no Ministério em 1973 e nessa altura o conceito de diplomacia económica era desconhecido. Talvez por ter estudado Finanças (o grosso dos meus colegas diplomatas vinha da área do Direito) sempre desenvolvi acções que se integravam numa lógica de diplomacia económica. Não foi necessário investir muitos recursos, apenas e sobretudo reorientar os recursos existentes para outro paradigma. É claro que há casos distintos: na China, por exemplo, Portugal tem hoje um aparelho diplomático muito maior. Fico, então, muito satisfeito por se ter dado em Portugal esta mudança para uma diplomacia mais económica. Por outro lado, na América Latina pude conhecer intimamente as comunidades portuguesas que lá estão. São comunidades valentes, que defendem os seus interesses e têm uma sabedoria adquirida por décadas de vivência nos respectivos países. O valor intrínseco destas comunidades é incalculável, pode ser muito melhor aproveitado do ponto de vista da diplomacia económica portuguesa. Com estas comunidades, tem de haver também um maior envolvimento de toda a malha que a AICEP tem espalhada por todos os países que constituem as prioridades para a nossa diplomacia económica. As autoridades e as comunidades portuguesas devem interagir mais no terreno. Desta maneira e de uma forma cada mais estruturada da nossa diplomacia criar-se-ão certamente crescentes mais-valias que redundarão em benefício de todos.
As dificuldades económicas dos dois maiores países da América Latina, o Brasil e a Argentina, dão fôlego à ideia de que Portugal deveria apostar mais nos países da Aliança do Pacífico, ou vê oportunidades importantes também nos países que pertencem a outros blocos económicos?
Penso que, no conjunto, a realidade latino-americana pode constituir um objectivo global para a nossa actividade diplomática. É evidente que o grau de integração económica que alguns países daquela região procuram cria realidades distintas. Devemos, também por este motivo, ver o sub-continente numa óptica de diversidade e não de uniformidade. O importante é estarmos permanentemente presentes nos fóruns que podem propiciar aproximação às novas realidades integradas, como o Mercosul e a Aliança do Pacífico. É evidente que, dadas as idiossincrasias dos respectivos participantes, a aproximação a uma realidade integrada pode ser mais fácil do que a outra. Onde o grau de integração é menor, o grau de aproximação de terceiros acabará por também ser inferior. Isto é importante para a definição de áreas prioritárias, mas eu acredito que o facto de, por motivos históricos, termos pontos de interesse comuns com toda a América Latina faz com que seja má política colocarmos de parte uma realidade em favor de outra. Todas as realidades têm a sua relevância e não são incompatíveis.
Foi Embaixador plenipotenciário de Portugal na Bolívia, na Venezuela e no Peru…
Sim, e enquanto Embaixador residente na Venezuela fui também Embaixador plenipotenciário em países caribenhos de língua oficial não portuguesa e não castelhana. Por exemplo, a Jamaica e Trinidad e Tobago e, na área continental, o Suriname e a Guiana são realidades muito interessantes. Na Guiana pensei que não encontraria nem um português e fiquei espantado ao encontrar uma comunidade de pessoas originárias da Madeira, já desenraizadas, que são quase desconhecidas até do aparelho diplomático e consular português.
Nos três países latino-americanos em que representou Portugal assistiu a três fenómenos importantes: à ascensão de um político indígena, Evo Morales, a Presidente da Bolívia; ao socialismo populista bastante peculiar de Hugo Chávez, na Venezuela; e, no caso do Peru, à sua procura de maior integração económica, chegando a membro da Aliança do Pacífico. De que modo estas três realidades em países tão próximos denotam a diversidade latino-americana?
Se olharmos para a geografia dos três países que mencionou veremos um factor comum: a Cordilheira dos Andes. Os três têm, no seu território, uma parte da faixa andina. Eu considero a realidade latino-americana um mosaico: há aspectos, como este, que tornam vários países próximos, mas há inúmeros factores que os distinguem. Alguns países quase perderam a sua componente indígena, aquando da colonização espanhola, enquanto outros, como a Bolívia, talvez o mais evidente dos três casos, mantiveram uma importante componente autóctone.
Talvez por serem de mais difícil acesso as povoações indígenas em territórios andinos.
Exactamente e porque esses povos tiveram o engenho de resistirem ao colonizador, mantiveram-se, organizaram-se e hoje são soberanos e conseguem ter representação política ao mais alto nível. Quero frisar outro aspecto: não esqueçamos que a realidade geopolítica da América Latina tem praticamente 200 anos. Esta juventude é uma mais-valia, dá a estes países um tipo de vantagem comparativa em relação a países mais antigos.
Em que medida?
Ultimamente ouvimos falar muito da ‘velha Europa’, zelosa dos seus valores e das suas mordomias. Eu acredito que a evolução política das próximas décadas criará mais oportunidades a países como os da América Latina, mais jovens, não adormecidos.
Por serem mais adaptáveis?
Sim, precisamente. Um pouco por todo o mundo, os países que assumiram recentemente as rédeas da condução dos seus destinos políticos são mais flexíveis. Nós, europeus, devemos, por vezes, ser menos arrogantes na relação com estes países. O nosso modelo político, económico e social não é imaculado nem intocável, não deve ser transposto ipsis verbis para estas realidades tão distintas. Até porque isso leva a fenómenos de reacção negativa da parte de quem tem poder político nestas regiões. A América Latina tem um potencial de crescimento muito grande, com países jovens e muitas riquezas naturais por explorar em favor das populações.