Saudade é o nome do disco que reúne a guitarra portuguesa de Miguel Amaral e o violão de 7 cordas de Yuri Reis. Choros, valsas e guitarradas formam um só país musical que retrata 500 anos de história e uma profunda afinidade. Como as palavras, também as notas foram escritas na mesma língua.
Miguel
Amaral e Yuri Reis, Saudade de quê?
Yuri Reis – Bom, saudade é o nome de uma das músicas que
está no nosso cd, que é uma valsa de Ernesto Nazareth, um compositor muito
importante para a música do Brasil, e essa música em especial inspirou esse projeto.
Inicialmente nós íamos fazer um disco só com músicas brasileiras, mas tocando
essa música percebemos algumas semelhanças com outra música que também está no
nosso cd, que é da autoria do José Fontes Rocha, um importante guitarrista aqui
em Portugal. E a partir dessas coincidências, entre aspas, é que resolvemos
abarcar esses dois universos musicais.
Então
o nome Saudade, como título deste projeto, não se refere a alguma saudade em
especial, é só uma inspiração de uma música.
Yuri Reis – É uma inspiração de uma música e também esse
pormenor linguístico, porque saudade toda a gente sente mas é uma palavra da
nossa língua, da nossa língua em comum também.
Tem
essa particularidade de juntar dois países.
Yuri Reis – Exatamente. Então, não só o disco é um encontro musical como o título brinda esse encontro musical com esse encontro linguístico.

E
esse encontro musical, Miguel, para quem não conhece ainda o disco, como é que
resulta?
Miguel Amaral – Aquilo que eu acho que é muito importante neste disco, e é uma das coisas que me faz muito feliz, é que se sente claramente que estas duas músicas foram duas músicas que cresceram juntas. Ou seja, nós não conseguimos perceber o que é que influenciou o quê. E, à medida que fomos tocando e que fomos fazendo isto, chegámos a um ponto em que algumas músicas portuguesas podiam ser brasileiras e algumas músicas brasileiras podiam ser portuguesas. E então criou-se aqui um universo em que no fundo conseguimos ir à raiz e voltar a fazer com que estes universos fossem um só. Porque as semelhanças são muito muito claras, mesmo a própria estrutura dos temas é muito parecida, e conseguimos isto de uma forma que eu acho que ainda é mais interessante porque não fizemos grandes arranjos para isto. É quase como se estivéssemos a falar ao mesmo tempo, cada um com o seu sotaque. E então este simples encontro fez com que se chegasse a este universo homogéneo musical.
A
guitarra portuguesa tem uma identidade muito marcada e o violão também. Essa
junção é surpreendente.
Miguel Amaral – Eu acho que é surpreendente sobretudo no
que acrescenta a cada uma das músicas. Nas músicas portuguesas o papel do Yuri
é o mais saliente, traz mais novidade. Na música brasileira sou eu. É o tal
sotaque, o sotaque dele dentro da nossa música e o meu sotaque dentro da música
dele. É esse sotaque o resultado principal.
Agrada-vos
esta ideia de juntar dois universos musicais e simultaneamente juntar também
dois países?
Yuri Reis – Absolutamente. Inclusive porque tanto eu como o Miguel acreditamos que a música é uma linguagem universal. Isto é um velho cliché mas não é um cliché à toa. A música realmente é música, aqui não cabem muros ou barreiras.
Não
é suposto entrarem outros assuntos, é isso? Ou é suposto?
Miguel Amaral – Eu acho que é suposto. Toda a arte tem que ter outros assuntos dentro. Acho que só se pode fazer alguma coisa que seja verdadeiramente artística se tivermos sempre outros assuntos, sempre outras intenções, e sempre outras influências que não as propriamente musicais.

É o
caso deste disco?
Miguel Amaral – Acho que sim. Primeiro estamos sempre a
falar de globalização e de internet mas acho que as pessoas cada vez se estão a
fechar mais, a encolher mais, os países cada vez estão mais assustados. E
portanto eu acho que tudo o que seja fundir, tudo o que seja abrir e aproximar
os povos é muito importante.
E é
essa então a mensagem deste disco? A ideia de aproximação?
Miguel Amaral – Sim. Não só de aproximação mas de
entrosamento. De cruzamento de culturas, de junção, quase de qualquer coisa que
devia ser natural e que no nosso caso foi muito natural. Porque eu acho que quando
os povos se encontram devia ser natural que as pessoas se relacionassem bem e
que houvesse menos desconfiança e menos medo. Acho que estamos a voltar outra
vez a um tempo de muito medo.
Podemos
falar agora do vosso processo de trabalho. Há pouco dizia que fizeram poucos
arranjos. Significa que, partindo de uma e de outra música, quando se juntaram
o encontro musical surgiu sem grandes acrescentos da vossa parte?
Miguel Amaral – Quase. Há sempre algum trabalho mas
quando eu falo em arranjos, quero dizer que às vezes se pega numa peça de
música e faz-se de facto um arranjo, muda-se muita coisa, mudam-se os acordes
ou muda-se a melodia. Aqui, esse trabalho não existiu. Nós tocámos as coisas
como elas foram feitas só que com esta forma de falar, digamos assim. E
portanto fomos começando a tocar juntos, primeiro música brasileira, depois
começámos a achar que podia ser interessante tocar algumas peças portuguesas. E
foi uma coisa de ir tocando mais do que fazer arranjos em abstrato. Quando se
pensa em fazer arranjos pensa-se num conceito, aqui não foi tanto isso, foi
mesmo uma junção, mesmo um encontro.
Yuri Reis – A nossa música realmente teve um nascimento
muito espontâneo. Nos não sentámos para montar uma grade e fazer. Não, tocámos
a música como ela já estava. Há apenas essa diferença de sotaque que
proporcionou esse som.
Miguel Amaral – Eu também acho que se fossem universos
musicais e até históricos mais distantes não era possível ter acontecido assim.
Ou
seja, a proximidade já existia de alguma maneira, já lá estava.
Miguel Amaral – Claro que sim, absolutamente.
Yuri Reis – A nossa música tem muitas semelhanças harmónicas, estruturais, então isso claro que foi facilitado.

Uma
vez que estamos na Casa da América Latina, queria falar com o Miguel Amaral
sobre a sua passagem pelo México. Há dois anos esteve na Feira do Livro de
Guadalajara aquando da passagem de testemunho em que Portugal foi nomeado país
convidado de honra da FIL. O que guarda dessa experiência?
Miguel Amaral – Em primeiro lugar alguma coisa que não
tem a ver com a música mas tem a ver com cultura: eu nunca tinha visto uma
feira do livro que movimentasse tanta gente à volta dos livros, e quando eu
digo gente não são editores nem profissionais, são as pessoas. Há um trânsito
enorme que se forma e foi muito importante ter contacto com essa realidade que
eu, de facto, não conhecia porque é mesmo uma coisa impactante, é muito
impactante. Depois, foi uma cerimónia muito importante, de uma passagem de
testemunho de um ano espanhol para o ano português, e foi muito comovente.
Havia um vídeo que passava sobre Portugal, e eu lembro-me de estar a ver o
vídeo com a Dra. Manuela Júdice no dia antes de tocar, e aquilo foi qualquer
coisa mesmo muito comovente. Mesmo para nós que somos portugueses, estávamos a
ver aquilo pela primeira vez ali tão longe foi… foi mesmo especial. Portanto,
guardo essas duas memórias.
Enquanto
português, não é? Portanto houve ali algo de identificação também.
Miguel Amaral – Sim, mas ao mesmo tempo ligado à
literatura, ligado à nossa cultura… Porque Portugal é um país muito importante.
Somos tão pequenos e temos uma quantidade tão grande de escritores e de
artistas, não é? E acho que isso às vezes passa um bocadinho ao lado das
pessoas.
E é
bom lembrar.
Miguel Amaral – Sim, lembrar, e sobretudo estar naquele contexto de uma Feira do Livro em que Portugal ia ter um ano dedicado aos seus escritores. Acho que isso foi muito importante.

Para
terminar, têm algum projeto juntos para depois deste projeto Saudade?
Miguel Amaral – O projeto Saudade é um projeto que acabou de nascer e que há-de continuar.
Temos agora vontade de fazer um outro disco aproveitando este universo que se
criou, e introduzindo músicas nossas e de outras pessoas também. O repertório
deste disco é todo antigo, tirando duas músicas que são uma música do Mário
Laginha e outra de um amigo do Yuri, João Camarero, que é um grande violonista
brasileiro também muito jovem. E isso foi uma forma de dizer que há uma parte
que é um documento e que são recolhas, digamos assim, e há outra parte que
deixa uma porta aberta para continuarmos este projeto.
Portanto,
a ideia é continuarem juntos a partir deste projeto?
Yuri Reis – Sim, eu acho que o Miguel é um dos meus amigos aqui de Portugal, eu tenho muito gosto nesta proximidade, e é uma pessoa que me permite muitas vezes compartilhar coisas para além da música como poesia, como cultura de uma maneira geral. E nas nossas composições estamos sempre mostrando coisas um para o outro, compartilhando essas coisas, então eu acho que aí pode haver um caminho para um trabalho futuro que, como este disco, se nascer, se ocorrer vai ser uma coisa muito natural.
Entrevista por: Raquel Marinho
