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Marcello Angotti é o vencedor do Prémio Científico Mário Quartin Graça 2019, na categoria de Ciências Económicas e Empresariais com a tese “Full cost accounting e contabilidade dialógica aplicados para avaliação da sustentabilidade da indústria da extração mineral em Congonhas”, realizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Marcello Angotti, parabéns pelo prémio! Estava à espera?

Não, foi uma surpresa receber a ligação. Eu nem sei quem
me ligou, não me recordo, mas fiquei algum tempo em silêncio processando aquela
informação. Foi de facto uma surpresa.

Venceu
na categoria de Ciência Económicas e Empresarias com uma tese  chamada “Full cost accounting e contabilidade
dialógica aplicados para avaliação da sustentabilidade da indústria da extração
mineral em Congonhas”. Pode explicar-nos o que significa?  

Tem a ver com a contabilidade feita e orientada por um
objetivo que é a maximização do resultado económico para o acionista. Ou seja,
aumentar o lucro da empresa é um objetivo perseguido, e a intenção das
informações que são geradas para a contabilidade são todas focadas nesses
usuários, especificamente os fornecedores de capital, que são investidores e
credores da empresa.

A
sua tese estuda então uma forma de…

Atender aos demais usuários. Ou seja, a sociedade, o
governo, os empregados. A intenção é gerar uma informação mais ampla e
diferente do foco específico financeiro, ampliando o olhar da contabilidade
para os aspetos ambientais e sociais.

Mas
então a tese estuda a contabilidade mas num setor muito específico que é o da
sustentabilidade da indústria de extração mineral. Qual é o principal foco da
sua tese?

É a geração de informações mais amplas, observando um tripé: a questão económica, a questão ambiental e social, enxergando o resultado de uma empresa além do resultado económico por um olhar que contempla o que chamamos de externalidades, os impactos que são feitos à sociedade.

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Manuela Júdice e Marcello Angotti

O
que o Marcello pretendeu foi estudar uma hipótese de contabilidade não focada
apenas no lucro. É esse o objetivo principal do seu trabalho e da sua
investigação?

Sim. Compreender o resultado não só económico mas o
resultado num olhar amplo, observando aspetos ambientais e sociais da indústria
da mineração, e nesse especto, não foi observada uma empresa, mas atividades de
mineração numa localização específica que é o Município de Congonhas.

Porquê
este município?

O estado de Minas Gerais, no qual eu resido, é o estado
de maior importância na exploração de minérios ferro no Brasil e um dos principais
do mundo. Minas Gerais viveu recentemente dois grandes eventos de desastres
ambientais relacionados com a indústria da mineração, e frequentemente tem-se a
ideia de que só o desastre é o problema, que enquanto as operações estão dentro
das especificações legais isso não seria um problema. E o que eu queria estudar
era todos os impactos que são causados pela mineração enquanto não acontece o
desastre, ou seja, nas atividades quotidianas, e que isso já provocava um
volume de impactos ambientais e sociais bastante significativos. Então, eu
tenho impactos negativos e positivos, mas quando pensamos nos aspetos sociais e
ambientais, há mais impactos negativos do que positivos. A intenção era
arranjar uma localização em que não houvesse o desastre, como aconteceu em
Mariana e Brumadinho, e a cidade de Congonhas tem duas das principais
mineradoras do mundo, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Companhia Vale, a
Vale que é a principal mineradora de minérios ferro do planeta. A cidade de
Congonhas contempla isso, ela tem uma exploração que já perfaz algo em torno de
100 anos, e ainda mais uns 100 anos pela frente, então é uma cidade muito
importante nesse contexto.

Era
uma boa amostra para estudar.

Sim.

Então
e, tendo em conta esse seu foco da aplicação da contabilidade a outros fatores
que não apenas os do lucro económico, a que conclusões chegou?

Além de observar que eu não queria ter o foco exclusivo
no lucro, eu também queria gerar uma informação que consciencializasse as
pessoas sobre o que acontecesse. Uma contabilidade capaz de formar as pessoas
sobre todos os aspetos da mineração. A contabilidade normalmente é feita numa
linguagem específica para um grupo de investidores, credores, mas que também
gerasse uma informação para outros usuários e que eles participassem na
elaboração dessas informações. A conclusão é: nos aspetos ambientais, os
impactos negativos superam em volume bastante significativo a contribuição que
as mineradoras fazem. Elas têm “royalties” que são pagos pela
exploração mineral, e esses “royalties” são inferiores ao valor monetário das
externalidades ambientais. E nos aspetos sociais, o município por ser um pouco
mais rico do que a média, por receber esses “royalties”, consegue oferecer
serviços duma qualidade um pouco superior, mas são inúmeros os impactos sociais.
Por exemplo, a cidade vive com um problema crónico de poeira, porque a
mineração ocorre a céu aberto, então as crianças e os idosos são afetados e as doenças
respiratórias são acima da média nessa localização. Os benefícios do maior
volume de emprego gerado e da riqueza acabam por não compensar, em uma grande
parte, os danos que são causados às pessoas pela presença das mineradoras.

Se
nós pensarmos na palavra “contabilidade”, é uma palavra que nos remete para uma
imagem de folha de Excel, números, faturas, balanços, balancetes, todo um mundo
mais ligado à economia e aos números. E o que o Marcello quis estudar foi uma
aplicação mais social e humana deste conceito. Quis estudar algo que aplica
este conceito mais económico a um conceito mais humano, a uma aplicação mais
humana, é isso?

Sim.

Porquê?

Porquê… [risos]. Bom, como eu já estou nessa área, há
vários autores que eu sigo que têm essa vertente de pensamento, que a
contabilidade precisa ser mais plural, ela precisa atender a mais pessoas, ela
precisa atender a sociedade. E nesse sentido, ela deve sair dessa linguagem de
negócios para uma linguagem mais ampla, incluindo modelos em que as pessoas que
não costumam ter voz, as pessoas mais afetadas por uma empresa possam dar a sua
voz, uma parte da minha tese são narrativas feitas com entrevistas com a
população em que elas descrevem o contexto da vida delas relacionado com a
mineração.

De
que maneira é que aquela indústria afeta a vida delas.

Perfeito! Exatamente.

O
que é curioso é o Marcello fazer esse estudo mas a base ser a contabilidade.

A contabilidade é uma ciência da informação. A intenção é
que ela gere informação em relação aos negócios. E a contabilidade tem sido
inserida em relatórios de sustentabilidade há algumas décadas.

Então,
interessa-lhe, academicamente mas também pessoalmente, a forma como as
empresas, não só na indústria de mineração, mas as empresas implicam na vida
das pessoas. É isso?

Sim.


uma preocupação social que o Marcello não distingue do trabalho das empresas,
da correlação entre ambas?

Exatamente. Toda a atividade empresarial, toda a
atividade humana provoca alguma consequência, e essas consequências podem ser
positivas ou negativas. À medida que há extração, por exemplo, do minério de
ferro, há necessidade de se cavar um buraco cada vez mais fundo em que se afeta,
por exemplo, o lençol freático, em que tenho de tirar a vegetação superficial
que está ali e afeta os animais que vivem naquela localidade. São vários
impactos. Há também impactos positivos, a instalação da mineração gera empregos
que vai beneficiar o comércio. Então, a intenção é perceber a contabilidade. Quando
se diz “full cost accounting” eu estou pensando desde uma ponta do negócio, ou
seja, desde o consumo de matérias-primas até ao uso desses produtos. A intenção
é perceber a empresa de uma forma mais ampla.

Destas
conclusões, resulta depois alguma medida prática? O objetivo é que, este estudo
e outros semelhantes relativos a outras cidades e outras consequências possam
depois ser entregues a alguém que toma decisões para mudar alguma coisa ou não
é esse o objetivo de todo?

Inicialmente, as empresas não têm a intenção de serem as
responsáveis pelo ónus desse impacto que provocam, porque isso iria provocar
uma situação de um descompasso, se a mineração só em Minas Gerais tivesse de
pagar por isso e não no mundo inteiro. Mas uma finalidade é a tomada de
consciência pelas pessoas que estão envolvidas para que isso possa fomentar de
facto um diálogo em que as duas partes estejam muito bem informadas.

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Marcello Angotti

Mas
isso aconteceu com a sua tese? Ou seja, quando o Marcello concluiu a sua tese
fez saber às empresas que estudou que as conclusões eram estas?

Eu promovi uma exposição sobre o trabalho, fiz uma
apresentação a um grupo de pessoas. Tinha a presença duma ONG, de uma academia,
mas não especificamente as empresas porque as empresas desde o início do
processo mostraram-se desinteressadas. A minha primeira proposta não era
exatamente assim, a primeira proposta era que fosse uma informação mais gerencial,
e eu procurei um contacto com as mineradoras que não se mostraram interessadas
em conhecer esse resultado, mesmo porque elas já sabiam que o resultado iria
mostrar um lado mais negativo do que positivo das suas atividades.

Podemos
dizer por outras palavras que, as conclusões da sua tese trazem aspetos
negativos e positivos para as empresas de extração mineira e que essas
conclusões não produziram resultados imediatos.

Elas levaram, por exemplo, ao sindicato dos empregados a
conhecer um pouco melhor o resultado económico em alguns números, em alguns
índices que foram apresentados. Elas levaram a comunidade local a ver, de uma
forma ampla, todos os problemas da mineração, inclusive conhecendo a vida de
pessoas que estão em diferentes regiões. A exploração, por mais que tenha
escolhido uma cidade, ela não afeta toda a gente da mesma forma. Alguns bairros
sofrem por falta de água, outros por uma questão mais elevada da poeira, então
essas pessoas tomaram uma consciência mais ampla sobre o que é a mineração. O
governo local pôde ter números do resultado económico, inclusive números sobre
o volume de minério. Para terem uma ideia, a prefeitura nem sabia por quanto
tempo a exploração mineral perduraria na cidade. Então eu levantei números de
uma forma ampla que também levaram ao próprio governo local a ter uma
consciência um pouco melhor, e isso pode fomentar um diálogo num momento em
que, por exemplo, a prefeitura estiver pressionando, exigindo alguma coisa às
mineradoras ela tem mais subsídio de informação do que ela tinha antes.

O
que é que a sua tese traz de novo, quais são as novidades que não eram
conhecidas antes relacionadas com esta humanização da contabilidade?

Então, o que havia anteriormente era construção teórica,
desmembrada de contabilidade dialógica e “full cost accounting”, e o que eu fiz
foi pegar nestas duas construções teóricas e trabalhar com elas de forma
empírica. A partir daí apresentar que sim, é possível eu construir esse
entendimento amplo da contabilidade com a participação de vários atores sociais
envolvidos no processo, gerando informação e tomando consciência dessa
informação.

O
que é que gostava, teoricamente, que acontecesse como resultado do seu
trabalho? Gostava que a sua tese provocasse o quê ao que já existe?

Que ela provocasse uma maior exigência com a indústria da
mineração, para que ela distribua melhor o resultado económico contemplando os
vários impactos que ela provoca. Se ela provoca impacto na biodiversidade, e
atualmente ela não faz nada por isso, que ela seja responsável por esses
impactos, uma vez que o resultado económico é bastante significativo e seria
possível contemplar todos esses impactos. Então, há um discurso de que
contemplar isso iria afetar a rentabilidade da empresa e, especificamente para
o ano que foi analisado, o que se pôde observar é que não, que contemplar todos
os danos que são provocados pela empresa ainda assim geraria lucro. É possível
conciliar lucro com melhor resultado social e resultado ambiental.

Pode
ser esse o resumo do seu trabalho. Para o citar, “é possível conciliar lucro
com preocupações sociais e ambientais”?

Sim. Mas não necessariamente podemos tomar isso como uma
verdade absoluta em todas as situações. Para a extração mineral na região
geográfica e no período analisado, contemplar os diversos impactos ambientais e
sociais, ou seja, remunerar melhor os trabalhadores, atender às mazelas sociais
que são provocadas… Obviamente que iria reduzir o lucro, mas ainda assim haveria
uma remuneração adequada, mesmo atendendo a essas questões.

Consegue
dizer-nos por alto, as consequências positivas e negativas desta indústria de
extração mineira em Minas Gerais. Neste caso que estudou, quais são os grandes
impactos negativos e os impactos positivos?

Sim. Começando pelos positivos, os principais são
económicos. A indústria de extração mineral contribui fortemente para a balança
comercial brasileira porque gera exportações, gera empregos, não é uma
indústria grande geradora de empregos, pois envolve muita maquinaria e
tecnologia, mas gera ainda assim muitos empregos. Também tem uma parte de
arrecadação tributária que ela contribui, apesar de que no Brasil e na maior
parte do mundo as exportações são muito desoneradas sobre aspetos tributários,
então podemos citar esses aspetos económicos. Sobre o ponto de vista negativo,
há um grande impacto sobre o uso da água. A indústria de extração mineral tem
uma demanda gigantesca de recursos hídricos, então não há mineração onde não há
água. A poluição do ar, que afeta questões respiratórias e provocam um problema
social. Temos grandes danos em biodiversidade, tanto por impactos nos recursos
hídricos quanto por impacto da remoção da vegetação, da presença de explosões e
de barulhos que afetam, por exemplo, a fauna de aves. Em períodos de grandes
obras, quando há expansão das atividades da mineração, temos outros impactos
sociais, normalmente há uma migração de um contingente muito de grande de
mão-de-obra, exclusivamente masculina para uma região, isso é comum que aumente
os níveis de alcoolismo e de prostituição na região onde acontece. Há um
impacto nos empregados. Eu falo um pouco sobre isso, a questão dos acidentes de
trabalho. As jornadas de trabalho não têm um único turno, há um rodízio de
turnos, e isso tem problemas biológicos, e aí normalmente há um nível de
alcoolismo e de doenças psíquicas superior a outras indústrias

Para
terminar, tendo em conta esta enumeração que acaba de fazer dos aspetos
negativos e positivos, a sua tese propõe alguma solução nova ou limita-se a
identificar estes aspetos?

Não, eu não proponho solução, mesmo porque na maioria
desses aspetos há uma solução. Por exemplo, eu não tenho conhecimento sobre as
questões biológicas para propor uma solução, mas isso é largamente estudado. O
que eu proponho é uma forma de reporte de todas essas informações, que seja
amplo e que permita que se saiba tudo o que acontece, de todos os impactos para
se tomarem providências.

E
tem esperança que isto provoque alguma alteração?

Pessoalmente, no contexto atual, eu percebo que
internacionalmente a contabilidade tem caminhado para uma forma mais ampla de
reporte. Há iniciativas como o relato integrado, iniciativas de capital natural
e outras na contabilidade especificamente ampliando esse horizonte de reporte.
Especificamente sobre questões ambientais e sociais no Brasil, não temos planos
a longo prazo, acabamos vivendo por uma grande influência muito mais imediata,
e neste momento temos uma questão de retrocesso, ao contrário do que se
esperava. Apesar de maior consciência, há uma pressão económica que tem levado
a algum retrocesso de questões trabalhistas, de questões sociais e de questões
ambientais.

Então
não tem muita esperança, é o que me está a dizer?

No Brasil, nesse momento, nas questões sociais e
ambientais temos vivido um retrocesso.

Mas
considera que esta humanização do conceito de contabilidade é um caminho que,
não só o Brasil como o mundo deve seguir?

Sim. Temos iniciativas na contabilidade, não só na
academia, como das organizações internacionais, fomentando a contabilidade a um
reporte mais amplo. Temos o “Global Reporting Initiative” que é uma instituição
internacional, onde temos hoje o relato integrado como iniciativa com o apoio
de grandes empresas e de companhias de auditoria internacionais. Então, a contabilidade
tem caminhado para se tornar mais ampla.

Mais
ampla. Podemos dizer mais humana, mais sociológica, qual seria a melhor
expressão?

Hoje o que se percebe é que não é possível dissociar os negócios, o lado económico da questão ambiental e social.


Entrevista realizada por Raquel Marinho