Camila
Marchioro é a vencedora do Prémio Científico Mário Quartin Graça 2019, na
categoria de Ciências Sociais e
Humanas com o trabalho “Poesia
do Indizível: Camilo Pessanha e Cecília Meireles em Comparação”,
realizado na Universidade Federal do Paraná. Formada em Letras
pela Universidade Federal do Paraná, fez o mestrado sobre a poeta brasileira
Cecília Meireles e a Índia, e o doutoramento sobre a poesia de Cecília Meireles
e do poeta português Camilo Pessanha. Uma parte do doutoramento foi realizada
em Portugal, na Universidade do Porto. Deu aulas na Universidade Federal do
Paraná e atualmente trabalha como professora de português numa escola.
Veio
fazer uma parte do doutoramento a Portugal para poder estudar melhor a poesia
de Camilo Pessanha?
Quando comecei a ler Camilo Pessanha percebi alguns
motivos similares aos motivos da poeta Cecília Meireles que eu tinha estudado
para o mestrado, então decidi fazer essa aproximação. Comecei a investigar um
pouco mais e foi aí que vim para Portugal, porque não havia condições para
fazer pesquisa sobre o Pessanha só com material disponível no Brasil. Lá tinha
algum material sobre o Pessanha mas pouco sobre a relação ele com Macau. As
cartas, tudo isso estava em Portugal.
E
foi assim que veio para cá.
Ganhei uma bolsa do governo brasileiro e fiquei 10 meses. E aí passei por várias bibliotecas, conversei com muitos pesquisadores, e também tive acesso a várias cartas de Cecília Meireles que não estão acessíveis no Brasil porque a família não libera o acesso. Mas as que ela escreveu e enviou para Portugal estão acessíveis aqui nos espólios. Então, eu pude ler muita coisa e foi bem produtivo para a tese.

Camila Marchioro
Vamos
olhar para o título da sua tese: “Poesia do Indizível: Camilo Pessanha e Cecília
Meireles em Comparação”. Porquê “poesia do indizível” para falar da poesia de
Camilo Pessanha e de Cecília Meireles?
Primeiro
comecei pelos símbolos que apareciam nos poemas. Muitos poemas falavam sobre
ruínas, sobre a passagem do tempo, sobre água, e essa água que passa que é a
única coisa que resta depois de todas as coisas já estarem destruídas. Comecei
por aí e depois fui tentando perceber o que é que esses símbolos significavam,
qual era o motivo mais profundo a partir deles. Tive que me aprofundar nos
significados mais profundos desses símbolos. O que é que eles indicavam, ou
para que é que eles estavam apontando? E aí foi uma parte muito difícil porque
tive que entrar na filosofia. Porque comecei a perceber que eles estavam trabalhando
com aspetos relacionados ao próprio pensamento, a própria experiência de vida
ou perceção do mundo. Conforme percebiam alguma coisa que acontecia na vida,
eles traziam isso para a poesia de alguma maneira e usavam esses símbolos. Mas mais
do que isso, não era o que acontecia no mundo mas sim o que eles percebiam do
acontecimento do mundo, e depois eles percebendo a sua própria perceção desses
acontecimentos. O que é algo muito complexo e é por isso que entra nas várias
filosofias.
E o indizível
entra aí?
Sim.
Porque é muito difícil usar palavras para dizer aspetos que acontecem na
própria mente e que não ocorrem por meio de palavras. São imagens, são
experiências que não acontecem no primeiro momento com a palavra. A palavra
depois é usada para dar forma a essas perceções todas. Então, é por isso que é
“poesia do indizível”. É um momento de muito silêncio, e quando a gente entra
nesses símbolos e se aprofunda muito, a gente chega a um vazio muito grande. E
o vazio não se pode dizer. Então, é uma poesia muito paradoxal porque ela fala
desse encontro com o silêncio, desse encontro com ou uma luz muito grande ou
uma escuridão muito profunda que eu enxergo como sendo aquilo que eles
encontraram dentro de si mesmos quando, através da poesia também, no caminho
que vai e que vem, olharam para dentro de si e se perceberam como seres nesse
mundo, observando as coisas que viviam. Claro que com a sua perceção de poetas.
Para quem
conhece menos bem o percurso e a figura destes dois poetas, podemos dizer que a
Cecília Meireles, brasileira, publicou muito mais do que o Camilo Pessanha,
viajou muito pelo mundo, e que o Camilo Pessanha tem, de facto, uma ligação à
Ásia, e publicou um único livro, Clepsidra. Como é que a Camila falaria deles
individualmente?
A Cecília Meireles é neta de açorianos, a avó dela tinha um sotaque açoriano muito forte, então ela conviveu com esse acento português. Depois casou-se com um português, o Fernando Correia Dias, que era um ilustrador. Então, a vida toda dela era muito cercada por essa presença lusitana mesmo ela sendo uma carioca.
-
Camilo Pessanha -
Cecília Meireles
Foi criada por
uma avó porque perdeu a mãe e o pai muito cedo.
Isso.
Ela tinha 3 anos quando a mãe faleceu, o pai faleceu ainda antes de ela nascer.
Depois perdeu todos os irmãos, ficou sozinha. E foi uma vida de várias perdas.
Depois, o marido suicidou-se. E tudo isso aparece na poesia dela. É uma poesia
muito solitária de uma pessoa que entende a solidão desde muito pequena. Eu
acho que isso é essencial para compreender quem é a Cecília Meireles. E a outra
coisa essencial é a relação com Portugal, e por essa ligação portuguesa a
relação com a Índia. Porque ela escutava desde muito menina a avó falando das
Índias, via xícaras de chás e os materiais que tinham chegado até Portugal e
depois viajaram com a família para o Brasil e que tinham vindo do oriente.
Então, ela foi criando toda uma imaginação do oriente dada a sua relação com
Portugal, a sua família portuguesa. E depois, começa a investigar mais sobre
esse oriente. Lá pelos seus 18, 19 anos ela já tinha uma ideia muito
consolidada do que era a Índia, do que era a China, do Japão. Aí aprendeu
várias línguas, e a partir dessas outras línguas que ela conheceu, como o
alemão e o inglês, ela leu muitas traduções de textos orientais. E isso foi
alimentando toda uma ideia. Até que um dia ela conseguiu, aos 53 ou 54 anos,
visitar a Índia convidada pela embaixada da Índia no Brasil. Ganhou um título
de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Nova Deli, ficou lá 3 meses, e
não descobriu novidades. Só consolidou aquilo que ela já tinha aprendido
durante muitos anos de vida. Então é, de facto, uma presença muito forte, tanto
de Portugal como da Índia na sua vida.
E o Camilo Pessanha?
O
Pessanha também não tem uma vida muito feliz, assim como a Cecília Meireles, em
vários aspetos. Ele é filho, como se fosse um filho bastardo de um homem muito
rico de Coimbra. A sua mãe trabalhava para esse homem mas o pai de certa forma
o acolhia, não negou a existência dele. Ele foi estudante de Direito na
Universidade de Coimbra, onde começou a escrever os seus primeiros poemas. Mas
com uma certa rejeição. Ele tinha jogado fora alguns dos seus poemas quando um
colega achou e decidiu publicá-los nas primeiras revistas simbolistas ali de
Coimbra, naquele período do final do século XIX. E ele tinha um grande amor que
não deu muito certo. Quando ele foi pedir a mão da moça em casamento ela já
estava prometida, e muitos acham que ele foi para Macau por conta disso. Mas
talvez a verdade seja que ele precisava muito de um emprego e conseguiu o
emprego em Macau, então foi para lá mais por necessidade do que por deceção
amorosa, mas a deceção existia. A Ana de Castro Osório continuou sendo uma
pessoa com quem ele se comunicou o resto da vida e é a responsável pela
produção da “Clepsidra”, que se fosse por ele mesmo não se teria publicado
nada. Mandava os poemas para os colegas em cartas, era muito lido aqui em
Lisboa nos bares, pelos outros poetas, ficou conhecido pelo Fernando Pessoa, o
Mário de Sá-Carneiro. O Fernando Pessoa dizia que o Pessanha era o mestre,
então aprendeu muita coisa com o Pessanha. E a gente percebe na poesia do
Camilo Pessanha vários elementos que depois são aproveitados pelo Fernando
Pessoa e por todos esses grandes poetas da geração modernista que começa aqui
em Lisboa, e que depois de alguma maneira vai para o Brasil, o Brasil aproveita
esse modernismo português também. E depois ele acaba por passar a maior parte
da sua vida em Macau.
Morreu lá.
Morreu
lá. Ainda vem a Portugal várias vezes para visitar a família e fica por
períodos longos. Mas da última vez que ele veio voltou antes do previsto porque
dizem que ele estava viciado em ópio, não encontrou ópio aqui em Lisboa, e quis
voltar para a China. De facto ele fazia uso do ópio. A desculpa antes de se
viciar era que tinha tuberculose e ópio ajudava nas crises de tosse. Ele tinha
vários problemas de saúde e o ópio aliviava esses sintomas mais graves da
tuberculose dele.
E lá em Macau?
Lá
em Macau ele foi professor de filosofia e tinha muito contacto com leituras
filosóficas. Foi um interessadíssimo por cultura e arte chinesas. Andava pelas
ruas de Macau, pela China, por onde podia ir colecionando artefactos. Em
Coimbra até está um pouco do que ele conseguiu trazer. Ele conseguiu guardar
muita coisa mas acho que nem tudo sobreviveu ao tempo e às viagens de lá para
cá, mas alguma coisa restou.
E a poesia
dele?
A poesia de Camilo Pessanha é uma poesia que se enquadra de certa forma no simbolismo. Usa símbolos, tem uma forma muito sonora, muito bonita, mas também traz coisas que são diferentes, que já quebram um pouco com essa estrutura exata do simbolismo e começam a entrar num certo modernismo. Então, ele de alguma forma é um precursor do modernismo português. É um poeta muito à frente da sua época, muito inteligente, e é por isso que, mesmo tendo feito um único livro e com poucos poemas, cada poema dele traz muita coisa para trabalhar porque esses símbolos são vários. Num único poema encontra-se muitas coisas difíceis, e então é preciso muita dedicação e tempo para trabalhar com cada um deles. E é por isso que é possível essa aproximação entre os dois poetas. Uma poeta que escreve muito como a Cecília Meireles, que tem poemas excelentes, com um poeta que escreveu pouco mas aquele pouco que ele escreveu é muito bom. E é por isso que é possível coloca-los lado a lado.

Entrega do Prémio
Mas então
quais são as conclusões desta comparação? Portanto, quando os compara descobre
o quê?
Bom,
descubro que o contato com o oriente modificou os 2, de certa forma. Faz parte
da vida deles e entra na poesia, e quando entra, entra de forma similar. Então,
foi isso que eu descobri. E aí eu uso a filosofia ocidental para me aproximar
daquilo que eu acredito que eles tenham encontrado pelos caminhos da filosofia
oriental.
Dizia que o
oriente entra na poesia deles de forma similar. Como é que é essa forma
similar?
Eles
usam símbolos similares para representar isso. A água, a ruína, a passagem do
tempo. Tudo isso aparece. Alguns poemas apresentam também sonoridades
semelhantes. Trabalham com motivos semelhantes e têm ambos essa investigação
profunda de si mesmos. Daí esses elementos simbólicos que aparecem expressando
observações da própria mente, dos próprios pensamentos. Isso fica muito
evidenciado em vários poemas. Depois de investigar bastante consegui perceber
que eles estão falando do próprio ato de pensar. Então, é uma viagem para
dentro de si. A filosofia ocidental foi um caminho que eu escolhi para poder
chegar a essa filosofia oriental que nem sempre é muito fácil para o leitor
compreender. Para poder explicar o que é a observação da mente, o que é olhar
para o próprio pensamento, e depois como é que isso aparece em poesia.
Ou seja,
podemos dizer que a poesia da Cecília Meireles e do Camilo Pessanha é muito
mais complexa do que uma primeira leitura pode mostrar-nos?
Sim.
Eu tentei inseri-los numa vertente que seria de poesia meditativa. Então,
aproxima-se do oriente porque de certo modo eles trabalham com a meditação. Não
usam o nome meditação em nenhum momento, mas se nós pesquisarmos o que é a meditação,
o que é observar a própria mente, o que é cuidar dos próprios pensamentos – que
depois aparecem de certa forma lá no Fernando Pessoa como pastor de ovelhas e o
rebanho que são os próprios pensamentos – a gente percebe a existência de uma
preocupação com o próprio pensamento, com o entender-se a si mesmo, e com o
cessar as turbulências desse pensamento nessa poesia que eles escrevem. Em
ambos.
Portanto, há
uma similitude de fonte de inspiração em ambos. Como um encontro, eles vão
beber ao mesmo sítio.
Sim.
Eles são mais
ou menos contemporâneos. O Camilo Pessanha é de 1867 e a Cecília de 1901.
Ter-se-ão conhecido?
Não.
Mas a Cecília Meireles conhecia a obra do Camilo Pessanha. E quando ela fez um
livro chamado “Poetas Novos de Portugal”, que era só sobre poetas modernistas,
ela incluiu o Pessanha que já estava morto naquela época.
Que
interessante.
É
muito interessante. Ela o considerava como um modernista. E gostava. E conhecia
também a família Castro Osório, que tinha ido para o Rio de Janeiro em algum
momento e tinha lá uma livraria, e a Cecília frequentava essa livraria. Então,
tinha contato com pessoas que conheciam o Pessanha. Ele faleceu em 1926 e a
Cecília já era adulta nessa época, então de certeza já tinha lido Pessanha.
Porque é que
decidiu estudar poesia?
Eu
tenho gosto por poesia desde criança. É uma pergunta bem difícil porque é algo
que me acompanha há muito tempo. Acho que me tenho dedicado à poesia justamente
por ter a capacidade de dizer coisas de uma maneira diferente e de tocar muito
rapidamente uma pessoa. Há poemas que são muito longos mas o tempo de um poema
é um tempo diferente. E eu gosto desse tempo, eu gosto da musicalidade, gosto
do que evoca, das imagens, do modo como evoca imagens, do modo como evoca
cores, e assim por diante. Para mim a poesia é algo muito vivo, mais do que o
romance. A poesia para mim é como algo que eu consigo ver quando leio um poema.
Ela passa para mim de uma maneira muito viva. É como se eu estivesse realmente
vivendo aquele poema quando eu o leio. Por isso é que escolhi trabalhar com
poesia. É algo que me toca muito.
Estas
conclusões desta comparação da sua tese foram recebidas ou partilhadas com
alguém de fora do meio académico brasileiro? Chegou a autores, editores?
Não,
ainda não chegou.
E o que quer
fazer com esta tese?
Bom,
primeiro eu gostaria de continuar este trabalho estendendo para outros poetas,
tentando perceber se não existiria em língua portuguesa uma tradição de poetas
meditativos. Se eu conseguiria encontrar outros, que não necessariamente em
toda a sua obra mas nalgum livro ou num poema se tenham aproximado do que o
Pessanha e a Meireles fazem. E gostaria de publicar os resultados deste
trabalho, que acho que são significativos porque aproximam poetas que parecem
muito diferentes mas que, se a gente olha bem, nem são. Então, também pelo
exercício crítico eu acho que pode ser de muito auxílio para quem trabalha com
poesia. Ter a coragem de enfrentar uma empreitada destas: trabalhar com poetas
que aparentemente são muito diferentes mas que se você percebe que há ali uma
possibilidade não desistir dessa pesquisa.
Já tem alguma
ideia de outros autores, outros poetas para estudar?
Ah, sim. O Fernando Pessoa, a Sophia de Mello Breyner Andresen. Há vários que têm motivos da água, motivos do mar, que podem me encaminhar para uma coisa similar. Mas isso, claro, vale uma leitura muito ampla. Seria um trabalho de décadas, talvez.
Entrevista realizada por Raquel Marinho