A poesia da América Latina marcou novamente presença no FOLIO, Casa dos Poetas

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A poesia da América Latina marcou novamente presença no FOLIO, na Casa dos Poetas – Torre Maneys, desta vez com duas sessões dedicadas a geografias da América Central.

Guadalupe Pèrez, de El Salvador, trouxe-nos o seu livro de poemas Mi Ser, e a Casa da América Latina tem o prazer de partilhar aqui o texto de Ozias Filho, poeta luso-brasileiro que fez a sua apresentação.

Uma poesia do exílio
Por Ozias Filho

Uma poesia do exílio. Uma poesia da sensibilidade. Uma poesia da resistência. É como poderia definir os escritos de Guadalupe Perez, neste seu primeiro livro, publicado em 2023, chamado Mi Ser.
Nascida em El Salvador nos anos 80, do século passado, a poeta, que atualmente vive em Itália, faz da palavra uma de suas armas para combater as injustiças, que nos cercam para cada lado que olhemos, mas também é voz de muitos como ela que nem sempre têm voz.
Muitos acreditam que a poesia é uma forma de salvação, quer para aqueles que nos leem; quer para nós próprios que escrevemos.
Eu, particularmente, não acredito nisto, pois a poesia, para mim, não nos salva de nada, não nos protege de ninguém, nem mesmo de nós próprios, e de todos aqueles fantasmas reais, ou não, que nos povoam.
Mas, apesar de não acreditar em salvadores da pátria, não vejo este meu ponto de vista como algo negativo, já que a poesia tem um outro superpoder, que é aquele da resistência; da libertação, da catarse, da sensibilidade.
É isto a poesia: uma forma de resistir, de lutar incansavelmente contra os monstros do cotidiano, mas que, na mesma onda de comprimento, também revela o belo, o misterioso, o espiritual que têm morada em todas as coisas.
E por isso, neste seu livro de estreia, existe este ser profundo, de sensibilidade, e de resistência, nas vozes de Guadalupe Pèrez. Um ser – ela e muitos outros – que anda à procura da sua identidade.
Talvez o poema onde esteja mais exposto estes conceitos seja em Mis amados lejanos, ou Meus amados distantes, em tradução livre para a língua portuguesa.
Neste poema, Guadalupe Pèrez, expõe a dualidade clara entre a vida confortável e relativamente calma da Europa (assim interpreto) e a dificuldade constante, sempre no fio da navalha, de outros pontos do planeta, e quiçá da sua terra natal.
Diz Guadalupe, num excerto deste poema, Meus amados distantes, mais uma vez na minha tradução livre:
Abraça-me esta felicidade imerecida.
Sinto-me salpicada desta zona de alegria.
Entristece-me ver tanto bem-estar onde até os cães se vestem,
e penso em meus amados distantes que passeiam
com seus ossos cheios de frio,
com suas vestimentas rasgadas pela pobreza.
O poema reflete sobre as desigualdades sociais, que conhece e vivenciou na sua terra, que contrasta com a sua atual vida confortável. As dificuldades várias dos seus amados distantes está no espelho da sua poesia. É nela que a autora sangra versos sobre o papel, os seus conflitos interiores. Conflitos estes que, na verdade, são os mesmos de outros que vivem na mesma situação de dualidade.
Em versos intensos, Guadalupe Pèrez, entrelaça a sua realidade que considera privilegiada, com o desamparo de seus entes queridos.
Ela experimenta uma angústia profunda. O poema convida à reflexão sobre a injustiça e a necessidade urgente de mudança. O poema passeia entre a alegria e o conforto da sua atual Itália, e a tristeza e a culpa, que está longe, do outro lado do Atlântico, refletindo a complexidade das emoções da autora.
Num verso mais adiante diz:
Não sei se fui escolhida ou se fui covarde.
Talvez refira este poema, especificamente, porque encontro nele alguma similitude com as minhas próprias angústias; com as minhas próprias leituras, e com alguns dos meus escritos.
É impossível ao poeta, que tem o coração na boca, ficar indiferente às enfermidades das quais padece o mundo em que vivemos. Este poema traz à superfície, uma outra característica que para mim toca-me fundo; ou seja, a questão da identidade, a questão daquilo que é ser um imigrante. A estranheza que se agarra em nós como uma sombra.
Quem sai da sua terra, não regressa jamais, acredito eu. Nunca mais será o mesmo. E esta dualidade que está presente neste poema, não diz apenas de Guadalupe Pèrez, mas de todo aquele que procura o seu Eldorado, o seu lugar o sol, o conforto e a felicidade utópica.
Diz a poeta nesse seu mundo de estranheza:
Que estas árvores de mil cores que encantam, estas terras não são para mim, que esta erva fresca e verde não me pertence.
Assim vivemos, caminhamos os nossos dias em terras estrangeiras, que nos acolhem bem ou mal. No meu caso, Portugal, sempre me tratou bem. Mas a dualidade da não pertença sempre fez parte da minha caminhada, e acredito seriamente que nos passos da Guadalupe aconteça o mesmo, nos seus dias italianos.
Ao ler este seu poema lembrei-me de uma canção do compositor e músico português, já falecido, António Variações. Eis um excerto dos versos da canção Estou Além:
Vou continuar a procurar/ O meu mundo/ O meu lugar Porque até aqui eu só/ Estou bem aonde eu não estou
Os versos desta canção, talvez cantem sobre outras insatisfações do compositor, mas quando eu os ouvi há muitos anos, logo os relacionei com a minha situação de imigrante.
Ou seja, eu estava satisfeito por estar em Portugal – e continuo após 33 anos de vivência aqui -, mas as saudades do Brasil eram devastadoras. Mas, se me encontrasse no Brasil, era de novo assaltado pela estranheza, por um país que eu já não agarrava, pelas saudades de Portugal.
Qual é a minha terra afinal?
E muitas vezes neste processo, de idas e vindas, neste carrossel de emoções, de uma forma muito semelhante, fazia os mesmos questionamentos que agora faz Guadalupe Pèrez, no seu poema.
Num outro poema, O Exilado, a tónica da identidade, da culpa, e de outras questões, são de novo motivadoras na escrita de Guadalupe Pèrez.
Canta a poeta:
O exilado, aquele que partiu numa jornada rumo ao desconhecido, a uma realidade construída apenas nas fantasias que habitam sua mente, e que se encontra vulnerável como uma criança, com todo um mundo a descobrir.
O exilado que teme se apegar à terra que o acolhe, sentindo-se traindo a sua própria. Aquele que vive com o corpo numa parte e o coração onde nasceu.
A jornada dos muitos exilados, na voz de Guadalupe; que nos convida a uma profunda reflexão sobre a condição humana, a condição diaspórica permanente.
Explorando os sentimentos complexos e contraditórios que acompanham aqueles que se veem obrigados ou escolhem deixar para trás as suas origens.
O mundo que é visto com olhos de uma criança, cheio de sonhos e possibilidades infinitas; imagens que contrastam com a vulnerabilidade e o desconhecido que o aguardam na jornada do exílio.
A imagem da nossa casa primeira deixada para trás, no desafio das promessas vindouras do novo mundo que irá nos acolher.
O duelo entre o corpo e o coração, que nunca se extinguirá.
A decisão de partir, mesmo que voluntária e que, no entanto, não isenta o exilado de sofrimento.
O medo de se apegar ao novo lugar, e a dificuldade em apreciar a beleza ao seu redor, são barreiras que ele ergue para proteger o seu coração ferido.
O exílio como desafio à nossa própria identidade. O indivíduo que deixa para trás sua terra, e que se vê obrigado a reconstruir a identidade no novo mundo.
Um processo doloroso e exigente que encontra na poesia algum lenitivo para as suas tormentas.
A poesia de Guadalupe Pèrez é este remédio paliativo, catarse, libertação, este querer acrescentar valor, onde os valores escasseiam dia após dia.
A poesia de Guadalupe Pèrez, mais que uma poesia de El Salvador, a sua casa primeira; mais que uma poesia de Itália, a sua casa de acolhimento; é no fundo, verdadeiramente, a sua única IDENTIDADE, a casa que ela habita e que se refugia todos os dias.

Na sessão seguinte, dedicada à poesia da América Central, contámos com a presença de vários amigos da Poesia e da América Latina.
E foi com grande alegria que celebrámos a extraordinária riqueza poética da região.
Nomes como Rubén Darío, Claribel Alegría, Ernesto Cardenal e muitos outros deram voz às emoções e lutas da sua terra, e às suas palavras que continuam a ressoar através das gerações. Convidámos todos a explorar os grandes poetas da América Central e, ao mesmo tempo, a trazerem suas próprias criações. Foi um momento para compartilhar a nossa essência poética, dar vida a novas vozes e criar um espaço de troca literária entre aqueles que amam a palavra.
Para os mais desprevenidos, a Casa da América Latina ofereceu as últimas antologias ibero-americanas publicadas anualmente no Dia Mundial da Poesia, onde podiam encontrar poetas de toda a Ibero-América, e em particular dos países da América Central e Caribe: Costa Rica, Cuba, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá e República Dominicana.

Juntos, podemos contribuir para fortalecer os laços que unem os nossos países e culturas, exaltando a força da poesia como elemento de união e entendimento.

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