Manuel Rito – “Eu Fiz o Mochilão na América Latina” na BTL 2018: As Matemáticas de Viajar
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___________________________________________________________________________________Manuel Rito foi um dos participantes da partilha de experiências “Eu Fiz o Mochilão na América Latina”, promovido pela Casa da América Latina, Fundação AIP/BTL e Revista Volta ao Mundo na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) 2018. Após visitar cinco países desta região, o viajante conta a sua aventura e faz um balanço de como esta influenciou a sua vida.
«O meu Mochilão pela América do Sul totaliza 28 dias, 5 países e mais de 10.500 km percorridos. Uma viagem poderia ser contada apenas por este simples exercício matemático. Mas se fosse assim não a tornaríamos demasiado redutora? Afinal, como se mede o valor de uma viagem? Sobretudo, em outras contas mais profundas. Daquelas que a matemática mais complexa não consegue medir.
Conta-se pelas histórias únicas e diferentes que agora carregamos connosco, numa ânsia de as partilhar com o mundo. Histórias de diarreias mortíferas em autocarros de 12 horas onde é proibido “defecar, solo urinar”, de controlos alfandegários que mais parecem barracões das obras, de ataques e convulsões a passar fronteiras com receio que a viagem acabasse por ali, de donos de hosteis que são dj’s, que oferecem álcool a perder de vista aos seus hóspedes e que não os deixam pagar o quarto porque no final de tudo o que querem é que “sejamos felizes ao som da musica” ou mesmo de desconhecidos que oferecem sacos de coca só porque somos “um grupo simpático”.
É também feita de imprevistos, daqueles que na hora parecem o fim do mundo, mas que agora olhando para trás fazem parte de uma gigante gargalhada mental. De autocarros esgotados, com a certeza que a passagem de ano seria passada num terminal de autocarros numa vila isolada no norte da Argentina, de jipes avariados no meio do deserto da Bolívia com o receio de nunca chegar ao fim daquela tour de 3 dias, de shots de álcool etílico antes de fazer de bicicleta a estrada mais perigosa do mundo, da falta de papel higiénico quando ele é tão necessário, de quartos de hostel a 42 graus ou de comidas que que acabam por tornar viagens de autocarro em salões de tortura onde o Imodium se torna o comprimido sagrado da salvação. É feita também de momentos que nos rasgam a respiração, de pequenos segundos que nos fazem ter a certeza do quão pequenos somos na vastidão de uma Terra composta por paisagens incrédulas e inimagináveis, de desertos a perder de vista no Chile e na Bolívia, de lagoas que se misturam com montanhas e que desenham nos nossos olhos pequenas obras de arte, de uma Estrada da Morte a ser descida de bicicleta à chuva torrencial e nevoeiro, de vales sagrados no Peru a serem desbravados de slide, de corridas no mar com tartarugas gigantes, de finais da tarde na praia a dançar ao ritmo de musicas latinas vindas de uma quantidade infindável de bares de palha onde até os mais pé-de-chumbo dançam freneticamente na areia já quente e seca.
Mas sobretudo uma viagem é feita de pessoas; de rostos de quem vamos conhecendo e que deixam em nós novas formas e maneiras de olhar e ver o mundo. É feita da alegria tímida e envergonhada do povo boliviano, da simpatia desmedida do povo peruano ou da dança e energia do povo chileno. É feita também de todos aqueles com que nos cruzamos e nos deixam tanto de uma forma tão imprevista – o Henrique, o Lafaiete, o Pedro, a Andréa, a Jamile, a Helena, o Hans Villalobos, o Felix, o Joseph, a Jenny, a Kathy, a Margarida, a Teresa, a Pipa, o Jorge, o Ernesto, a Rosita ou a Daniela.
É feita também de todos aqueles que não chegámos a saber o nome, mas que nos marcaram com as suas poucas palavras ou apenas com a sua forma de ser, estar e viver. Afinal, viajar é um pouco disto tudo. Uma multiplicidade sem fim de histórias, imagens, momentos e frações de segundo que nos rasgam o pensamento e que nos dão a certeza que estamos de facto a viver e não simplesmente a existir.
No final, dói bastante voltar. Encontrarmo-nos de novo com a rotina e com tudo aquilo que já conhecemos. Dia após dia. Mas, apesar de tudo, a dor acaba por desaparecer na certeza que novos destinos virão, novos olhares se cruzarão e que novas histórias acabarão por ser escritas. Afinal, o mundo está lá fora à nossa espera. Desejoso, ansioso, à espera que cada um de nós o descubra. E ao descobrirmos o mundo, descobri-mo-nos a nós próprios, numa viagem alucinante até ao encontro da nossa verdadeira essência.
E aí sim. Aí começamos a verdadeira viagem.»
Manuel Rito