Ganamos, perdimos, igual nos divertimos
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___________________________________________________________________________________[Texto da coordenadora de progamação cultural da Casa da América Latina Maria Xavier, em homenagem ao escritor Eduardo Galeano]
“Na história dos homens cada ato de destruição encontra sua resposta, cedo ou tarde, num ato de criação”. Com esta frase Galeano termina, em abril de 1978, em Calella, Barcelona, “As veias abertas da América Latina”, obra que o viria a consagrar universalmente como um dos maiores pensadores da região e sobre a região. Escrito em tempos de exílio, com a reflexividade que a distância e a vivência entre mundos permitem, Galeano criticava a divisão internacional do trabalho, denunciava “países que se especializam em ganhar e outros em perder”. Quarenta anos depois, no prefácio à edição brasileira de 2010, é a vez de alertar para “a prisão da monocultura. A diversidade, ao contrário, liberta. A independência se restringe ao hino e à bandeira se não se fundamenta na soberania alimentar. Tão só a diversidade produtiva pode nos defender dos mortíferos golpes da cotação internacional, que oferece pão para hoje e fome para amanhã. A autodeterminação começa pela boca”. Em 2009, o livro ficou entre os dez mais vendidos na Amazon após Hugo Chávez dá-lo de presente a Barack Obama durante a 5ª Cúpula das Américas.
Eduardo Galeano pensava nas grandes questões do mundo contemporâneo sem deixar de lado as pequenas. O livro “Futebol ao sol e à sombra”, por exemplo, revela o encanto do escritor pelo futebol-arte, a sua comoção com um passe mágico de bola e, ao mesmo tempo, o olhar crítico e inconformado sobre o lado sombrio do futebol-negócio. Dedicou o livro àqueles meninos que “certa vez se cruzaram com ele em Callela da Costa. Acabavam de jogar uma pelada e cantavam: “Ganamos, perdimos, igual nos divertimos.”
Prezava e praticava a humildade, ao reconhecer nas coisas pequenas a denúncia da falsa grandeza. Um jornalista espanhol um dia disse-lhe, em Madrid, que ele teria um olho no microscópio e outro no telescópio, ao que Galeano riu com o que considerou uma boa definição de si próprio: “olhar para o que não se olha, as pequenas minúsculas coisas das pessoas anónimas, a gente que os intelectuais desprezam, esse micro-mundo onde está a verdadeira grandeza do universo. E ser capaz de contemplar o universo, os grandes mistérios da vida, o mistério da dor humana, a beleza e a formosura das pessoas mais simples, a que se manifesta numa canção, num grafiti, numa conversa qualquer”.
Galeano foi sobretudo um idealista. Para que serve a utopia? Para nos fazer caminhar. “A utopia está no horizonte. Sei que não a alcançarei. Se me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve? Para isso, para caminhar”.
Autor de vários livros e traduzido em muitas línguas, na sua obra confluem narração e ensaio, poesia e crónica. Em Portugal são poucos os livros publicados: “Os Nascimentos”, o primeiro volume da trilogia “Memória do Fogo”, numa edição Livros de Areia. Aqui na Casa da América Latina, com a Embaixada do Uruguai , cultivámos, durante anos seguidos, a expectativa de o trazer a Lisboa. Apresentámos, em 2012, o espectáculo “As veias abertas da humanidade” pelo Teatro Art’Imagem, obra baseada em textos de Eduardo Galeano, com direcção, encenação e dramaturgia de José Leitão. Foi o mais perto que estivemos dele.
Continuamos a caminhar.
Maria Xavier, 30 de Abril de 2015