Maria Gabriel Fiorini Travi: “Temos um ditado que diz: Diosito es peruano y sempre nos enseña el camiño a salir adelante’”

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Maria Gabriela Fiorini Travi é uma empresária peruana, há muitos anos ligada ao turismo e à restauração. Visitou Portugal para acompanhar o marido, o chef peruano Adolfo Perret, que veio fazer uma demonstração de comida peruana num hotel de Lisboa. Além de membro da direção da IWEC, Fundação Internacional do Desafio Empreendedor das Mulheres, é ainda Vice-presidente da Associação de Hotéis, Restaurantes e afins do Peru, Vice-presidente do Grémio de Turismo da Câmara de Comércio de Lima, Diretora da Câmara Nacional de Turismo (CANATUR)e Diretora da Câmara de Comércio Italiana no Peru. Razões mais do que suficientes para a convidarmos para esta entrevista. 

Faz parte da IWEC, uma organização internacional de mulheres empresárias a nível mundial. Como é que se tornou empresária? Como é que começou?

Bem, como se costuma dizer, por vezes a vida leva-nos por destinos que não imaginamos. E, como diz o ditado, o homem propõe e Deus dispõe, porque o meu primeiro emprego foi no turismo. Sempre fui apaixonada pelo turismo e continuo a ser, e é por isso que não me vou embora e acho que vai ser muito difícil deixar o setor do turismo. Depois, trabalhei na banca, no Banco de Créditos del Perú, que no início era o banco italiano no Peru. E depois fui para as Nações Unidas, para a UNICEF, onde estive cerca de 15 anos, um trabalho maravilhoso.

O que é que fazia na UNICEF?

Comecei por substituir uma mulher que ia dar à luz. Estou habituada a trabalhar desde pequena, os meus pais sempre foram empresários e, aos fins-de-semana, quando não havia escola, levavam-me para o negócio. Então, desde, não sei, talvez os meus 10, 11 anos de idade, eu passava muito tempo a apoiá-los. E lembro-me de não ser grande fã de ajudar, e de os meus pais me dizerem: “tens de aprender desde pequena sobre os negócios”. E ainda bem que assim foi, porque o meu pai morreu quando eu tinha 15 anos.

Qual era o negócio dele?

Estávamos muito ligados à agricultura. O meu pai, quando chegou ao Peru depois da Segunda Guerra Mundial, vinha de uma zona que produzia queijos italianos muito bons. Era um especialista na matéria e disse: “Posso tentar fazer os nossos produtos italianos com o que temos aqui”. E foi o que fez. Ele trouxe a mozarela para o Peru. Não só mozarela mas também outros queijos, ou seja, ricota, provolone. E tivemos a primeira fábrica de queijos italianos no Peru.

Ah, que bom. Queijos italianos no Peru.

Sim, sim, foi assim que começámos.

Estava a contar-nos sobre a UNICEF…

Estive na UNICEF para substituir uma senhora e a partir daí ofereceram-me outro emprego como secretária, assistente, e fui ficando. Acabei por me tornar  diretora de Recursos Humanos da UNICEF e também, por coincidência, era responsável por tudo o que era viagens, coordenação de viagens e eventos. Gosto muito de organizar eventos. Estava feliz e a fazer várias coisas ao mesmo tempo, porque organizávamos grandes eventos na UNICEF, e isso exigia muito do meu tempo. Mas eu gostava do meu trabalho, não media as horas de trabalho, podia ficar durante muitas horas sem qualquer problema porque gostava muito do trabalho. O meu marido trabalhava com a minha mãe no negócio dos restaurantes. A minha mãe sempre cozinhou comida deliciosa, aprendi muito sobre a cozinha italiana com o meu pai e o meu marido também. E foi assim que, juntos, a minha mãe e o meu marido, se tornaram parceiros e abriram um negócio de um restaurante de comida peruana num bairro residencial, que é San Isidro, em Lima, onde não existia nada. Por isso, os amigos do meu marido também lhe disseram que era uma coisa louca, que não ia resultar, se ele tinha a certeza do que estava a fazer. Mas tanto ele como a minha mãe estavam convencidos do negócio e assim foi. Começaram com um restaurante chamado Punta Sal, que fica na zona onde o meu marido passava o verão no norte, e foi crescendo. Mas, claro, o meu marido é um grande chefe, um criador nato e apaixonado pela sua profissão.

Mas também se diz sempre que os artistas não são bons financiadores e gestores. Por isso, ele aprendeu realmente com essa parte do caminho mas já estava sobrecarregado a tentar fazer tudo isso. Entretanto, eu continuava a trabalhar na UNICEF, já tínhamos filhos, e eu tive de tomar a decisão de deixar o meu emprego nas Nações Unidas e de me reinventar neste negócio. Pensei muito, porque trabalhar com o meu marido não era algo em que eu pensasse. A experiência mostrava-me que as mulheres casadas e com filhos deviam manter as suas finanças e a sua independência. Depois de pensar, disse “bem, vamos trabalhar com o meu marido, vamos tentar. Mas eu estabeleço as minhas próprias regras. Cada um de nós tem de fazer o que sabe fazer melhor e temos de respeitar os espaços. Então, tu produzes, és bom a produzir, e eu administro o que tu produzes.”. No início não foi fácil, porque marcar os territórios não era fácil quando ele estava habituado a fazer de tudo. Mas seguimos em frente e estamos há 35 anos com os restaurantes porque fomos crescemos e agora temos vários restaurantes e, felizmente, dos nossos filhos, três já estão a trabalhar connosco em diferentes áreas e esperamos que os netos também, porque temos netos maravilhosos que a dada altura talvez queiram experimentar. Um deles diz que quer ser chefe de cozinha como o avô, mas bem, a vida decidirá.

E é por causa da comida e dos negócios dos restaurantes com o seu marido que cresceu como empresária?

Claro. Eu nasci numa família de empresários mas deixei esse mundo para começar a trabalhar, como já disse, primeiro no turismo, depois na banca, depois nas Nações Unidas. A partir daí, voltei ao mundo empresarial. Aprendi, tive de fazer cursos e aprender gestão de restaurantes. Passaram-se muitos anos mas depois senti-me como se estivesse na água, porque a caraterística do nosso restaurante é comida peruana especializada em marisco, por isso sinto-me como um peixe na água (risos).

Agora focando-nos na sua condição de empresária mulher. Uma vez que está precisamente nesta associação que é mundial e que reúne mulheres empresárias, poderíamos dizer que as mulheres empresárias são mulheres que têm alguma caraterística que as distingue dos homens empresários que fazem negócios, ou esta é uma conversa que não faz sentido?

Penso que faz sentido porque cada género tem o seu próprio ADN e tem as suas características particulares. Os homens, por exemplo, são mais arriscados, as mulheres são mais analíticas. As mulheres são multifacetadas e os homens não são assim tanto. Foram feitos estudos pelas grandes organizações financeiras internacionais que demonstram que o setor bancário prefere dar crédito às mulheres porque somos melhores pagadoras, somos mais cumpridoras. Dizem que somos mais gastadoras, mas somos melhores pagadoras.

Que faz esta associação de mulheres empresárias?

Esta organização chama-se IWEC – International Women Entrepreneurial Challenge e já tem 15 anos, no ano passado celebrámos o nosso 15º aniversário. Foi fundada por uma grande embaixadora, a embaixadora Ruth Davis, juntamente com outras câmaras de comércio do mundo, a câmara de comércio de Barcelona, a câmara de comércio de Manhattan, uma organização muito grande na Índia chamada FICCI FLO, a câmara de comércio da África do Sul. A ideia era reunir mulheres empresárias que tinham tido êxito nos seus negócios e partilhar os seus conhecimentos com empreendedoras e com mulheres que estavam a emergir no mundo comercial. Ou seja, devolver um pouco do que se recebeu através do conhecimento e da experiência a outras mulheres que talvez não tenham as mesmas oportunidades.

Passar o seu testemunho e ajudar.

Claro, e ajudar. De facto, temos um programa nesse sentido dentro da organização. A outra questão importante é a do networking a nível internacional: somos praticamente todas mulheres de todos os continentes. O que caracteriza a nossa organização é que trabalhamos com mulheres empresárias que também desenvolvem trabalho sindical, principalmente nas câmaras de comércio dos seus países, e também têm um papel ativo na questão da responsabilidade social, através de diferentes organizações.

Quantas mulheres tem essa fundação e de que países?

Já somos cerca de 40 países e o número está a aumentar todos os anos. Por exemplo, agora vamos reunir cerca de 200 mulheres de diferentes países de todo o mundo e de diferentes negócios. E eu queria mencionar isso porque o que também procuramos é que haja um equilíbrio nas atividades económicas que desenvolvem. Por isso, há mulheres empresárias cientistas fabulosas que por exemplo, são prestadoras de serviços à NASA com tecnologia de alto nível;  há mulheres que estão no mundo têxtil, no mundo gastronómico, no mundo jurídico. Em suma, tentamos assegurar que os diferentes setores económicos que compõem a economia mundial estejam representados.

Falando agora do lado turístico do seu trabalho. Uma vez que representa também a Câmara de Turismo do Peru (CANATUR), como está a saúde do turismo do Peru e a economia que lhe está associada?

O Peru foi um dos países mais afetados pela pandemia porque tivemos muita dificuldade em recuperar, na verdade ainda temos. Não chegámos aos níveis pré-pandemia e também não vamos lá chegar. Lamento ter de dizer que não vamos lá chegar. No próximo ano, espero que sim, seria ótimo, gostaria de estar enganada. Mas os números projetam que não vai ser assim. Porquê? Porque não é só a pandemia. Tivemos a pandemia, tivemos doenças como a dengue e outras. Infelizmente, o sistema de saúde pública não está tão desenvolvido como noutros países e então há muitas limitações, principalmente no interior do país. E, portanto, quando se tem situações como as que vivemos na COVID, isso tem um grande impacto na recuperação. E tivemos ainda outros problemas como, por exemplo, terramotos em diferentes partes do país. Além disso, as alterações climáticas estão a afetar-nos muito.

Sim, sim. Então, estão a passar por uma crise que ainda decorre da pandemia mas que não se resume a esses efeitos pós pandémicos.

Outra praga são os conflitos sociais. Tudo o que aconteceu com os governos que tivemos, as mudanças que tivemos num período tão curto de tempo, tantos presidentes, as mudanças de autoridades constantes. Isso não permite que se siga um plano de desenvolvimento a nível nacional. Afeta, sem dúvida. Felizmente, os peruanos são bastante resistentes, sobretudo as mulheres (risos).

Mas, Gabriela, tendo em conta que o diagnóstico atual do turismo em relação à economia não é tão bom como era antes da pandemia, e sendo a Gabriela membro desta câmara de comércio e também da câmara nacional de turismo, pergunto-lhe se existem algumas medidas específicas a ser  pensadas ou desenvolvidas para combater esta crise?

Sem dúvida. Felizmente, estamos a trabalhar em coordenação com o setor público, com as autoridades. A presidente Dina Boluarte escolheu ministros e autoridades para o seu gabinete que têm alguma experiência, que já tiveram alguma experiência nos setores que estão a liderar atualmente, não necessariamente todos mas no caso do turismo isso está a acontecer. Por isso, estamos a articular planos de emergência, aquilo a que chamamos planos de emergência, e muito trabalho tem sido feito com o turismo interno. E isso, por exemplo, temos de reconhecer que foi um trabalho que ajudou muito na recuperação do turismo, principalmente no interior do país. O Peru é caracterizado por uma grande componente de informalidade na sua economia, e esse setor informal vive praticamente do dia a dia. E se eles não têm rendimento não podem sobreviver, não têm capacidade de poupança. Por exemplo, na pandemia houve a necessidade de se formalizarem, porque o governo lançou uma série de medidas como o financiamento com taxas de juro baixas, e as empresas tinham de cumprir determinados requisitos. Obviamente que tinham de ser empresas, antes de mais, formais, cumpridoras, ter uma boa linha de crédito, etc. As empresas informais descobriram que não podiam aceder a este financiamento. Portanto, esta é, por exemplo, uma lição que o governo também deveria apoiar no sentido de eliminar os obstáculos burocráticos que limitam o setor informal. Dar formação, sensibilização, as facilidades de inserção na economia formal, etc. Nós, no setor formal, estamos constantemente a pedir às autoridades que tomem medidas nesse sentido, porque é essencial incorporar todos no mercado de trabalho. Não só para o seu próprio bem, mas também para o bem do país.

Há a ideia comum de que o Peru é um país muito bonito. Tendo isso presente, uma vez que também está ligada à câmara de turismo e pensando nas pessoas que nos estão a ler, queria perguntar-lhe o que tem o Peru que nos faça querer visitá-lo, além da comida, porque a comida é o seu negócio.

Olhe, gosto muito de a ouvir porque somos um país abençoado, disse-o muito bem. Temos a costa, temos os Andes, temos a Amazónia, temos climas maravilhosos em todo o país mais os microclimas: somos o país com o maior número de microclimas reconhecido em todo o mundo, e isso permite-nos ter alimentos que não só são altamente nutritivos mas também muito saborosos e que se podem obter durante todo o ano. Ao contrário do que acontece noutros países onde temos produtos sazonais, no Peru podemos encontrar legumes e frutas extraordinários durante todo o ano em todo o país. Temos uma história tão rica que eu poderia falar dela agora, mas penso que seria objeto de outra entrevista. Sabe que somos uma das cinco civilizações antigas mais importantes do mundo, a nossa cultura milenar tem sido transmitida não só em termos de conhecimento, mas também em termos de tradições ao longo dos séculos. Eu que sou avó levo os meus netos a visitar, por exemplo, um huaca ao fim de semana, a fazer viagens turísticas, a museus, porque fui criada assim e sinto que também devo retribuir às minhas gerações seguintes, e felizmente isso mantém-se. As nossas comunidades são muito hospitaleiras e é por isso que estamos a trabalhar muito no turismo rural comunitário, porque são experiências maravilhosas. Temos realmente comunidades no interior do país que mantêm estas tradições milenares.

Vou falar-lhe de gastronomia agora. Por exemplo, uma característica que temos é a nossa pachamanca que cozinhamos na terra. Ainda abrimos a terra, colocamos os ingredientes e aquecemo-los com as nossas próprias ervas no subsolo, isso mantém-se. Hoje em dia, com a industrialização que existe no mundo, dir-se-ia: “Porquê fazer tudo isto se agora é tão fácil com a indústria, poupas todas essas horas de trabalho?”, mas há toda uma mensagem através de todo este processo, porque cada etapa é importante para todos conseguirmos desfrutar, não só as famílias, também os amigos, as comunidades de todas estas coisas deliciosas que a nossa terra mãe nos oferece. Temos, por exemplo também, as nossas cerimónias ‘pago a la tierra’. As nossas culturas antigas ensinaram-nos e o Peru não é exceção, porque não só isto vem da cultura pré-Inca como os Incas respeitam e agradecem à terra. E nessa linha temos construções maravilhosas como Machu Picchu, que os engenheiros mais reconhecidos não compreendem como é que todos estes blocos de pedra, quando não havia maquinaria, se encaixaram perfeitamente um a um e se mantêm durante tanto tempo para se adaptarem às inclinações do clima, e assim por diante. Então, posso dizer que somos um país abençoado. Temos um ditado que diz: Diosito es peruano y sempre nos enseña el camiño a salir adelante’.

A Casa da América Latina vai receber em breve uma exposição sobre têxteis peruanos. A Gabriela veio para esta entrevista vestida a rigor, porque traz precisamente um exemplo de têxteis peruanos. Como é que falaria do têxtil do seu país e da sua tradição? O que é que diria às pessoas para que venham ver a exposição sobre o Peru e os têxteis peruanos na Casa da América Latina?

Muito obrigada. Esta é uma criação de uma grande designer peruana chamada Meche Correa, que justamente trabalha respeitando a tradição dos têxteis peruanos. Realmente ouvir a Meche Correa como outros designers peruanos é ir ao passado. Por exemplo, esta flor é baseada em alguns desenhos que são de umas mantas chamadas ‘Lliclla’, nas quais as mulheres dos Andes carregam as crianças às costas. São muito resistentes e com cores muito quentes. Penso que escolheram exatamente essas cores para transmitir calor aos seus filhos. Temos, por exemplo, algodão ativo para exportação, é exportado para todo o mundo e tem uma gama de mais de 20 cores que não se encontram em mais lado nenhum. E temos também tecidos baseados na produção do pêlo dos camelídeos. Como é que a nossa cultura milenar podia desenvolver este fio tão fino, porque é mais fino que um cabelo, que encontramos nos trabalhos feitos pelas artesãs? Dir-se-ia que isto tem que ter sido feito numa fábrica, industrialmente, porque a textura com que trabalham os desenhos, as cores, a geometria, são muito valorizados a nível mundial. Felizmente as mulheres transmitem todas estas técnicas às gerações seguintes.

Então como é que diria que vale a pena as pessoas verem esta exposição dos têxteis peruanos na Casa da América Latina?

Apreciar os têxteis peruanos não só nos transporta para o Peru como também nos transporta para uma cultura ancestral, que nos pede não só para continuar a admirá-los mas também para continuar a respeitá-los através da natureza e dos peruanos que têm este compromisso de continuar a trabalhar com materiais peruanos, refletindo a nossa história, a nossa cultura e a nossa tradição.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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