Rafael Gallo: “Eu acho que a literatura é a arte onde Portugal mais entra no Brasil”

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O escritor brasileiro Rafael Gallo, vencedor do Prémio Literário José Saramago 2022, esteve em Portugal para participar em vários eventos literários. Visitou a Casa da América Latina onde conversámos com ele sobre a importância desta distinção, os planos profissionais e pessoais futuros, a vontade de se mudar de São Paulo para Lisboa. Uma entrevista onde ficamos a conhecer melhor o livro “Dor Fantasma”, distinguido pelo Prémio, e o seu autor. 

Antes de mais, parabéns pelo Prémio Literário José Saramago. Li uma referência sua sobre o momento em que soube da distinção. Não estava de todo a contar.

Não… Bom, o Prémio Literário José Saramago sempre foi um grande sonho para mim. Era provavelmente o meu principal sonho na literatura. Tinha uma relação mesmo afetiva, de ler os livros e gostar muito. Vários dos meus livros preferidos têm escrito na capa “Vencedor do Prémio Saramago” e isso vai criando, de certa forma, uma ligação, uma mitologia pessoal. Além do próprio José Saramago, de quem eu sou um grande admirador. Logo, tudo o que orbita ali eu gosto muito.

E havia uma questão com o livro, com as versões anteriores que tinha escrito: algumas pessoas para quem eu mandei não tinham gostado, acharam que o livro tinha problemas, e realmente tinha, principalmente nas primeiras versões, e houve editoras que recusaram. Então, eu pensava: se eu não estou a conseguir convencer as pessoas que me são próximas, as pessoas que já me leram antes, que já conhecem o meu trabalho, até editoras que já trabalharam comigo, no Prémio Saramago, que envolve todos os países lusófonos, eu pensei que não ia mesmo conseguir (risos). Era quase a sensação de alguém que não ganha o campeonato, por exemplo, de futebol do bairro e vai disputar o campeonato do Mundo. Não vai acontecer. Eu já estava naquele momento em que pensei que não tinha a menor hipótese. Tanto que, pouco antes do resultado, eu estava bastante desanimado, e depois tinha aquele pensamento “mas e se o livro ganhar o Prémio Saramago, isso resolve?” Resolve tudo! (risos). Não resolve tudo, mas, vem esse sonho. Mas chegou uma altura em que comecei a cortar esse pensamento, “não, Rafael, isso é um escapismo, é uma ilusão usada para não lidar com essas frustrações que eu tenho”.

Dizia a si próprio para não alimentar essa expectativa.

Exatamente, não alimentes isso porque não vai acontecer. Então, houve um momento que eu me proibia de ter esse pensamento, pensava noutra coisa, e convenci-me de que não ia ganhar o prémio. Nessa altura, eu estava num lugar muito distante da perspetiva de ganhar e que era ao mesmo tempo, em paralelo, um lugar muito distante de mim mesmo. E comecei a pensar até que a literatura para mim tinha acabado, estava a chegar ao fim. Então, quando vem algo que reverte isso, de imediato, um telefonema que me diz “olha, ganhaste o Prémio”, o que quer dizer ao mesmo tempo, “olha, não só não vais desistir da literatura como agora ela vai aumentar na tua vida e tudo vai mudar”, eu ainda hoje me arrepio ao falar disso.

Ainda fica arrepiado.

Sim, porque é uma coisa… Não existe um termo, é uma guinada tão grande, é um ‘loop’ que realmente mudou toda a trajetória da minha vida.

Já vamos falar dessa mudança e da importância desta distinção para a mudança da sua vida, mas eu queria agora perceber qual era esse lugar onde estava antes do Prémio. Podemos dizer que o Rafael não estava a atravessar uma fase boa.

Sim, muito difícil. Eu lido com depressão, e tudo isso envolve esse lugar onde eu estava. Porque há muita gente que fala “mas espera aí, tinhas dois livros publicados com uma boa editora, dois livros premiados, como assim tinhas dúvidas?”. Mas nós temos dúvidas. Eu, especialmente, tenho muitas. Eu pensava: “tudo bem, eu publiquei esses dois livros, mas na altura em que escrevo o terceiro, ninguém gosta?” E também teve um período ali de muitas mudanças na minha vida, muitas outras crises pessoais e muitas mudanças como um todo. O meu último livro tinha sido de 2015. Se pensarmos, entre 2015 e 2022 o quanto o mundo mudou, o quanto o Brasil mudou, as coisas que aconteceram e incluir nisso a minha própria vida pessoal que mudou, acho que na mesma escala, numa escala proporcional, era como se de repente eu tivesse perdido o rumo da história.

Perdeu o comboio.

Perdi o comboio, exatamente.

E começou a questionar também a validade do que tinha escrito.

Eu acho que essa é a questão fundamental. Para mim, quando isso entra em questão, não importa se eu tenho prémios, não importaria mesmo se eu ganhasse muito dinheiro, que não é o caso, mas para mim o que eu escrevo precisa ter validade, isso é o mais importante, precisa ser algo que eu acredito. E eu tinha perdido essa crença, eu acho que essa é a diferença que é difícil explicar às vezes.

E depois, quando recebeu o telefonema, voltou a crença e tudo o resto.

Voltou tudo o resto. E é muito curioso no que essa história se tornou no final. Porque o livro “Dor fantasma é a história de um pianista que é muito obcecado com o que faz e mesmo quando ele perde isso, não consegue largar. Houve uma altura, e eu conversava sobre isso na minha sessão de terapia várias vezes, em que eu pensei: “será que eu não estou a ser como ele com esse livro, quando eu continuo a insistir?” Até, por exemplo, quando enviei para o Prémio José Saramago, que era minha última hipótese de concorrer uma vez que estava na idade limite, eu pensei: “será que também não tenho que fazer esse gesto de aprender?” E disse: “não, abre mão disso, encontra outra coisa.”

Teve receio de estar a ter os mesmos comportamentos que o Rómulo, a personagem do seu livro, e de estar a insistir numa coisa que já não dava.

Exato.

Falando brevemente sobre o livro. “Dor Fantasma” é a história de um pianista perfecionista, que busca a perfeição, e que tem um plano de há muitos anos que é tocar uma peça de Liszt. Mas, sem divulgarmos tudo, depois há um contratempo.  

Em linhas gerais ele vive para perfeição, para a excelência. E ele sofre um incidente que vai impedir essa perfeição, vai atirá-lo justamente no sentido oposto, da completa imperfeição, da imperfeição da vida e da nossa falta de controlo. Ele é muito controlador e, de repente, ele não tem controlo nenhum sobre o que acontece e sobre a própria identidade, inclusive. Porque ele é alguém que calculou muito a própria identidade nessa excelência, alguém que só pode ser um pianista excelente, não pode ser outra coisa.  

Esta personagem procura a perfeição no piano. O Rafael, curiosamente, sendo escritor, também teve uma ligação à música muito importante para si na fase da adolescência, e toca vários instrumentos, um deles o piano. O que é que há do Rômulo no Rafael e vice-versa?

Bom, essa relação com a música, sim, ela existe. Embora seja mais da música popular do que da música clássica, ou da música de concerto. Eu comecei a tocar quando era miúdo com aquele sonho de ter uma banda de rock e ser uma estrela de rock, mas depois fui-me desenvolvendo, fui estudando, e fiz faculdade de música, e a universidade que eu fiz era totalmente virada para música clássica. Então, tem um pouco essa relação. O Rômulo também é um professor universitário, de entrar nesse mundo e ver que é um mundo onde reina muito um conservadorismo, uma inclinação, uma tirania, uma exigência muito alta…

Intolerância com o erro.

Uma intolerância com o erro. Claro que há muita gente diferente disso, mas há muita gente também que é bastante Rômulo, bastante parecido. E eu acho que eu tenho esse lado, que tenho tentado de uma certa forma combater, ou pelo menos mediar, de uma exigência, de uma busca pela excelência, de um rigor. Eu acho que era até mais intransigente, em alguns aspetos da vida, que é uma coisa que eu quero mudar em mim também.

Há pouco falava numa das coisas que o Prémio lhe trouxe de volta que é a crença na literatura que pode fazer. Isso estava em dúvida e não sabia se sequer ia continuar a escrever e agora já não é uma questão.

Não, não, isso agora não é uma questão. Agora eu quero escrever. Mas sim, a vida é feita de mil coisas, então há sempre essas questões de eu quero escrever, mas como é que eu negoceio isso com o resto da minha vida? Quais são os meus gostos, quais são os meus medos hoje e, principalmente, quais as minhas relações com isso. Quais são as minhas relações com os meus medos, por exemplo.

“Tenho uma certa vontade de me mudar para Portugal, em especial para Lisboa”

Então, nesse caso, o que é que o Prémio Saramago trouxe em relação aos seus receios e à sua descrença com a literatura? O que é que o Prémio mudou?

Eu acho que ele muda bastantes coisas, mas ele traz também alguns medos novos. Por exemplo, talvez uma questão muito prática, muito direta, muito frontal, é a de eu ter uma certa vontade de me mudar para Portugal, em especial para Lisboa. Pensei: “eu quero, porque é giro, porque eu vivo lá, eu identifico-me, eu gosto.” Mas depois começam a vir os medos. O preço das casas aqui está caríssimo, está complicado, a literatura brasileira em Portugal não é muito lida. E é claro, a cada conversa com cada pessoa, essa equação vai-se montando na minha cabeça. Então, eu acho que ainda me sinto num momento em que fico oscilando muito. Tem momentos que eu digo: “não, eu vou, porque alguma coisa vai acontecer.”

Porque é que quer vir?

Eu tenho uma identificação grande com certos aspetos daqui, culturais mesmo. Num certo grau, sinto-me um estrangeiro no Brasil, sempre me senti. Porque, por exemplo, e novamente, são questões muito simples: eu sou uma pessoa mais silenciosa, mais calma, mais voltada para a literatura. Eu não gosto de futebol, por exemplo. Eu não gosto de barulho. Eu gosto muito de música, eu gosto de música quase o tempo todo, mas eu gosto de ouvir música que eu escolho ouvir. Então, eu sinto que lá, às vezes, as coisas são muito agitadas para mim. Eu gosto mais dessa calma aqui, eu gosto de como a literatura aqui tem mais campo, tem mais espaço. A literatura no Brasil é muito pequena, é muito reservada, nichos mesmo.

Eu lembro-me que da outra vez que eu vim a Portugal fomos a Setúbal, e aí tinha uma estátua do Bocage e um bar chamado Bar Bocage. No Brasil, nunca um bar teria o nome de um escritor. Só se tiver algum bar, Jorge Amado, em Ilhéus, ou em Salvador, mas é muito único. E eu sei que aqui também não há em todo o lado, mas eu sinto que aqui a literatura ainda tem mais espaço no senso comum, sinto que ainda tem um respeito um pouco maior, tem uma participação maior na vida das pessoas.

É curioso estar a dizer isso, porque cá as pessoas queixam-se de os portugueses lerem pouco. No fundo, está a contrariar esta ideia de que também, cá em Portugal a literatura é para um nicho, não é para toda a gente.

Eu entendo, mas é curioso. Eu lembro-me que da outra vez que eu vim para lançar o meu livro, as pessoas falavam, mas Portugal não é grande, não é igual ao Brasil, é um país pequeno, vais ter de te acostumar. E quando eu volto para o Brasil e eu conto as coisas que eu faço aqui, todo mundo diz, é enorme!

Fez imensas coisas, é isso?

Fiz imensas coisas, fiz muito mais. Eu passei uma semana aqui para lançar o livro e eu dei 20 entrevistas para revistas, jornais, e todos lá falaram “aqui no Brasil, ainda que queiras dar 20 entrevistas, não tens quem faça essas entrevistas.” Lá, por exemplo, o jornal, impresso, revistas, acabaram, entrou em extinção.

É mais online.

É mais online, fomos tomados pelo online. Eu acho que aqui ainda estão um pouco mais resguardados, embora eu saiba que há essa reclamação. Mas é muito curioso porque, ao mesmo tempo, para nós lá a literatura tem-se reduzido ainda mais, há menos do que aqui.

Ainda menos do que aqui, essa é a sua impressão. É por isso que quer vir? Porque sente um ambiente cultural e literário mais confortável ou apelativo para si?

Sim, eu acho que é uma mescla disso tudo. Ao mesmo tempo que sinto esse ambiente, por exemplo, não só a questão das entrevistas em termos de quantidade, mas todos aqueles que me entrevistaram, leram o livro, conhecem, sabem a história, procuram alguma coisa diferente para perguntar. E no Brasil, isso tem-se perdido. E fora isso, todo esse clima. Por exemplo, eu particularmente gosto de andar até ao Tejo. É aberto, é calmo, anda pela rua com segurança, não há barulho. Então tem tudo isso aqui. Para mim, a Europa, essa proximidade de muito rapidamente estar na Espanha, estar na França, que são paisagens, culturas completamente diferentes. Eu gosto muito de viajar. E, claro, falo isso de fora, tem sempre essa história, a relva do vizinho é mais verde, talvez se eu vier morar para aqui pense diferente.

Pela parte que nos toca, Rafael, será bem-vindo.

Ah, muito obrigado.

“O Chico Buarque é um tesouro nacional português. O Saramago é um tesouro nacional brasileiro.”

Disse que era grande leitor dos autores que ganharam o Prémio José Saramago. Não há só portugueses mas, falando nos portugueses, gosta, portanto, de José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, Paulo José Miranda, que foi o primeiro vencedor, entre outros. Lá no Brasil, e mesmo sem vir cá a Portugal, já era leitor de autores portugueses?

Sim, sim.

Qual é a perceção que tem de como é que a literatura portuguesa chega ou está a chegar ao Brasil?

Sim, a literatura portuguesa chega muito ao Brasil. O português de Portugal, a língua, chega bem aos olhos dos brasileiros mas não aos ouvidos, reclamamos que não entendemos o que os portugueses falam, a música portuguesa não chega ao Brasil.

Chegam poucos artistas, cantores. A Carminho, por exemplo, será uma das exceções.

Sim, e em geral também há as coisas do estereótipo. O fado, de Portugal queremos o fado. Rock português, por exemplo, e cinema, audiovisual também pouquíssimo, e se alguém for assistir provavelmente vai querer assistir com legendas. Então tem essa relação de dificuldade.

Mas nós ouvimo-vos bem.

Sim, e aqui parece às vezes um pouco o contrário com a música brasileira. Eu ouço mais música brasileira nos restaurantes aqui do que lá no Brasil. Se lá for a um bar ou restaurante toca-se música americana, aqui sento-me e começo a ouvir Tom Jobim. Por outro lado, ler português brasileiro, muita gente aqui tem uma certa resistência, a literatura brasileira aqui não entra tanto, mas a portuguesa lá entra e lá os livros, pelo menos atualmente, ou desde a reforma ortográfica, são publicados exatamente com o texto daqui. Não tem adaptação, não tem nota de rodapé, glossário, não tem nada, lemos o texto como ele é aqui. E o Saramago lá é muito lido, muito querido, Valter Hugo Mãe a mesma coisa, José Luís Peixoto. Eu acho que a literatura é a arte onde Portugal mais entra no Brasil. É como a música brasileira aqui. Nem se pensa que é literatura de Portugal, é como se fosse nosso mesmo. Talvez como o Chico Buarque para vocês

Sentimos que é nosso.

O Chico Buarque é um tesouro nacional português. O Saramago é um tesouro nacional brasileiro. Seria difícil encontrar alguém que realmente lê no Brasil, de novo, dentro desse ponto de vista, mas das pessoas que leem, não terem lido nenhum livro de Saramago, é quase impossível, todos leram pelo menos um e várias pessoas vão citá-lo nos seus favoritos. Se perguntar, que autores gosta, Saramago vai aparecer, Valter Hugo Mãe, Inês Pedrosa.

O Rafael gosta deles todos, e portanto, isso também contribui para alimentar este sonho que veio a concretizar-se.

Exato, e essa relação. Eu acho que se tem uma coisa que eu posso dizer assim para tentar explicar um pouco porque que eu ganhei o Prémio Saramago, apesar de ser a última pessoa capaz de explicar, eu acho que é porque os jurados foram José Luis Peixoto, Valter Hugo Mãe e o Gonçalo Tavares, que são escritores que quando eu li, eles alteraram a minha escrita, eles entraram no meu ADN, como o Saramago também. É quase como se quando eu escrevo hoje e eles leem-me, talvez eles reconheçam um pouco esse espelho. Foram uma influência tão forte para mim, e eu li muito, Peixoto, Gonçalo, Valter Hugo Mãe e Saramago, eu li quase tudo deles. Naquele momento da busca é pela própria voz, quando eu li essa literatura eu pensei, é por aqui que eu quero ir. Essa é minha família, essa é minha linhagem, minha genologia literária, porque essa prosa mais poética, que ainda é prosa mas que tem uma coisa mais expressionista, mais expressiva, é isso, essa é a música que eu quero tocar, esse é o instrumento que eu quero tocar, achei o meu instrumento.

Quer esse contágio, essa contaminação.

Esse contágio, talvez essa seja a palavra, essa contaminação. De saber que, talvez alguém, algum francês, por exemplo, não vai encontrar na minha literatura muito da francofonia, ou da influência, ou da tradição. E talvez olhe e lhe pareça um pouco português. Mas eu acho que podemos ser tudo. A música portuguesa não tem que ser fado, pode ser rock, pode ser pop, pode ser jazz, a brasileira é a mesma coisa. Rap, hip pop, uma mistura de tudo isso. A dos Estados Unidos é a mesma coisa, da França é a mesma coisa. Eu gosto mais de pensar nesse alargamento das fronteiras. Quase como se fosse um animal espiritual, que sente que é o seu ambiente.

O seu ambiente é mais dos autores portugueses.

Eu acho que é algum grau, sim. Mas não no sentido de status, quase como se quisesse dizer que eu sou melhor do que o Brasil, que já sou europeu. Não é isso. Até porque eu não me identifico em nada com outros países. Eu estudei na Suíça, por exemplo, e jamais moraria lá, mesmo sendo mais rico do que o Brasil, do que Portugal, inclusive. Então, não é uma questão de status, mas sim uma questão de se sentir bem, onde as pessoas são um pouco mais parecidas, têm gostos mais parecidos com os meus.

“Falam nos escritores bússolas e nos escritores mapa. Eu não tenho mapa, eu vou com a bússola”

Para terminar, está a escrever alguma coisa nova?

Eu estou a começar um novo romance. Mas em paralelo estou trabalhar no meu romance anterior, “Rebentar”, que acho que vai sair aqui em outubro, e que vai ter uma nova versão no Brasil em setembro. Praticamente reescrevi o livro. Não é só uma nova edição em que eu corrigi uma frase outra, eu reescrevi de novo. Depois dessas mudanças todas, eu olhei para esse livro e pensei, “o Rafael já não é o escritor que era em 2015”. Ao mesmo tempo, eu não conseguia largar o “A dor fantasma”. A história do “Rebentar” era tão importante para mim que eu não conseguia olhar e pensar, “tudo bem, é o meu Rafael do passado, fica no passado”. Não, eu quero que essa história seja no presente, e eu preciso refazê-la para isso. Então praticamente reescrevi o livro, tive esse trabalho. Mas também já estou começando a desenhar o novo romance. Já tenho os temas, o que eu quero trabalhar com ele, várias coisas. Estou naquela fase que para mim é uma escrita antes da escrita. Se alguém me perguntar quantas páginas já escrevi, quantos caracteres, eu vou dizer zero. “Então não começou a escrever?” Comecei a escrever, sim. Porque inclusive, para mim, essa escrita antes da escrita é o que define o norte. É muito importante. Esse momento é o que vai definir tudo. Eu não planeio a história, eu não faço capítulo 1 acontece isso, capítulo 2 aquilo. Então, eu preciso ter isso definido, eu preciso fazer essa bússola antes para depois percorrer o caminho. Falam nos escritores bússolas e nos escritores mapa. Eu não tenho mapa, eu vou com a bússola. Então, eu agora estou nesse momento de fabricar a bússola. Para mim é um momento muito importante, porque depois eu vou atravessar. Mas eu preciso fabricá-la bem.

Pode dar-nos um dos temas desse novo livro?

Sim, sim. Ele vai falar sobre essa questão de saúde mental, sobre a depressão, que é o que eu sinto, aquilo de que falámos sobre o que eu escrevo ter validade. Hoje eu tenho muita clareza de que eu preciso escrever histórias que são muito importantes para mim, não apenas uma história mirabolante, interessante, engraçada, comovente. Precisa de ser um assunto em que eu chego a todos os leitores e eles sentem que eu acho importante conversarmos sobre isso agora. E, para mim, principalmente depois de tudo o que eu vivi, o assunto, o fantasma, a revolução, a rebelião que eu tenho agora é essa questão de depressão.

“É aquela história “Emma Bovary C’est moi”, sempre”

O Rafael teve?

Sim, sim. Ainda lido até hoje. Porque se eu falar que tenho depressão parece que eu ainda estou, e eu acho que dá para ver que eu não estou exatamente deprimido, mas eu lido com isso. Eu sei que tenho que tomar certos cuidados. Por exemplo, se eu tiver que fazer muita coisa, muitos compromissos para resolver, eu fico ansioso. Se eu fico muito tempo nisso, é quase como se depois vivesse uma ressaca. É quase como usar drogas ou estimulantes. Existe um pico de histeria e o corpo vê aquilo e tenta equilibrar, passa a produzir mais substâncias depressoras. O meu corpo, por ser como é, produz muitas substâncias depressoras, imagino que para baixar a minha ansiedade, para me reequilibrar. E eu vejo que hoje eu tenho que tomar esse cuidado, ainda mais depois do prémio. E eu não quero ficar deprimido por causa do prémio, eu quero o contrário. Mas eu vejo que se há muita coisa, muita gente a falar comigo, muito burburinho, eu preciso ter cuidado, e eu aí recuso uma entrevista ou outra, faço uma meditação, vejo o que é mais importante. Porque é uma questão física mesmo. É como eu fazer muito exercício e depois cansar-me, só que é isso dentro da minha cabeça. Se eu fizer muito exercício com a minha cabeça ela depois cansa-se, e pode levar-me para uma depressão. Tenho de ter cuidado com os pensamentos, com as atividades, com as expectativas, medos, sonhos. Mesmo com o que me deixa contente e entusiasmado. Tenho de ter cuidado. Viver, mas não sair atrás de tudo.

E é isso que também vai estar no seu próximo livro.

Sim, porque a depressão é quase como se fosse um vírus ou uma bactéria, que não tem uma resposta. É a mesma coisa que chegar ao pé de alguém que contraiu alguma doença, malária ou assim, e dizer, vê o lado bom da saúde, vai-se curar. Não é assim. O seu corpo está infetado. Eu acho que o livro vai ter um bastante disso. Como se a depressão fosse alguma coisa que te apanha, e que pode apanhar praticamente qualquer pessoa. Não é uma questão de estar triste, não é tristeza. É diferente, é uma outra coisa. E isso é uma coisa que eu quero abordar nesse livro.

E a ideia também de poder apanhar qualquer pessoa. Porque, eventualmente, há quem considere que determinadas personalidades, ou determinadas características, ou determinados comportamentos afastam a depressão, que essas pessoas não podem deprimir. E isso não corresponde de todo à verdade. A depressão é mesmo democrática, não é?

Ela é democracia última. Por exemplo, Robin Williams suicidou-se. E podemos pensar: “mas ele era tão engraçado, talentosíssimo, rico, famoso, aparentemente tem tudo o que qualquer pessoa gostaria de ter e é uma pessoa com energia, parece ter uma vitalidade”. Ou Jim Carrey, tem uma vitalidade infinita e tem depressão. Eu acho que são muitos os casos que mostram isso. O Anthony Bordain, por exemplo, tinha uma vida perfeita, de sonho. Viajar pelo mundo e comer as melhores comidas. Que mais quer na sua vida? Isso mostra muito que a depressão não é uma questão de ter felicidade ou as coisas boas ou o lado bom da vida, porque essas pessoas têm isso. É uma outra questão. É uma questão também do corpo, é multifatorial, é uma alquimia de muitas coisas. E eu acho que sim, pode apanhar qualquer pessoa. Inclusive em momentos diferentes da vida.

E é essa proximidade a essa doença que o Rafael vai tratar neste próximo livro. Também porque a conhece?

Sim, sim, sempre esse misto daquilo que eu conheço, como com o livro “Dor Fantasma”. Talvez as perguntas possam depois ser sobre o facto de o protagonista ter depressão e o Rafael também. Mas ele, por exemplo, vai ter outro transtorno do foro psiquiátrico que eu não tenho. Então, sempre tem um pouco isso. Eu acho que as minhas histórias têm sempre um pouco isso. De como os personagens são uma espécie de máscara, mas que é uma máscara justamente para mostrar melhor quem eu sou. Com a máscara eu posso desenhar um rosto mais próximo ao rosto que eu mesmo vejo do que simplesmente escrever uma personagem que tem 40 anos, que ganhou um prémio literário, mas lidou com depressão e ainda tem. Não, eu quero uma história em que isso seja mais acentuado, porque isso vai dizer melhor.

Mas quer dizer aos seus leitores quem é o Rafael, além das personagens? Quer comunicar com eles.

Sim, eu acho que em algum grau todas as minhas histórias tem isso. O Rômulo, que é um pianista mais velho, que tem um filho, eu não tenho, ele diz sobre mim. A Ângela, que é a protagonista do “Rebentar”, que é mãe de um filho desaparecido, também tem por volta de 60 anos, diz muito sobre mim; é um livro altamente pessoal. Então, é aquela história “Emma Bovary “C’est moi”, sempre, não é? A questão é que a Emma Bovary é mais “moi” do que eu mesmo (risos) Eu acho que isso funciona melhor, para mim pelo menos.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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