Daniel Mordzinski: “As minhas fotografias, de alguma maneira, também aproximam ambas as margens do Atlântico”

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De que trata esta exposição “Navegantes da Jangada de Pedra”?

Que pergunta indiscreta (risos). Quando eu vou ver uma exposição, tento sempre procurar um relato, e pergunto-me – “o que me quer contar o artista?”, um fotógrafo, um pintor, um escultor. Quando eu proponho uma exposição, proponho também um relato. Este é o relato da “jangada de pedra”, no marco do centenário do José Saramago. Pareceu-me que a “jangada de pedra” era um emblema e alma de uma vida e de uma obra, e as minhas fotografias, de alguma maneira, também aproximam ambas as margens do Atlântico. Com muita humildade, acredito que subi à “jangada de pedra” de Saramago, também para aproximar as duas margens do Atlântico.

Tive oportunidade de espreitar a exposição brevemente e apercebi-me de duas coisas: uma, que a tua carreira a fotografar escritores é longa; duas, que a tua carreira a fotografar escritores é vasta, no sentido em que fotografaste escritores que são de várias gerações, alguns que já não estão entre nós, e que são também de vários países e continentes. Porque é que decidiste fazer isto em algum momento da tua vida?

Eu creio que é essencialmente pela minha paixão pelas letras. Fui leitor muito jovem e, de alguma maneira, retratar escritores foi a forma que encontrei para me aproximar desses escritores que tanto me fascinavam. E nos anos 70, quando comecei, era muito mais fácil.

Porquê?

Porque muito pouca gente se interessava pela pessoa que havia por detrás dos livros. Então, aceder a (Jorge Luis) Borges, a (Julio) Cortázar era mais fácil. Hoje os escritores ocupam um lugar central também no debate público em que muitas vezes se abusa desse protagonismo, no sentido em que um escritor pode escrever muito bem, e em geral fá-lo, mas não tem necessariamente de ter uma opinião sobre a guerra da Ucrânia, sobre as Torres Gémeas, sobre a biodiversidade, e hoje pergunta-se tudo aos escritores: que pensa disto, que pensa daquilo. Qual é o resultado? Cada vez se protegem mais, cada vez se fecham mais. E aí entram alguns mecanismos, existem filtros dos chefes de imprensa, em que em vez de ajudarem o jornalista o que fazem é filtrar, refiro-me aos escritores muito conhecidos, muito solicitados. Na minha época era muito fácil aceder a todos, porque não se interessavam por essa imagem icónica de autor.

Luís Sepulveda © Daniel Mordzinski

Mas disseste que a tua procura para os começar a fotografar também se deve ao teu fascínio por eles enquanto escritores, porque és um leitor também. Não há aquele risco de conheceres alguém de quem admiras muito o trabalho e depois, pessoalmente, afinal a pessoa não te interessar assim tanto?    

Olha, amo os riscos! (risos) E posso dizer que, uma das primeiras coisas que aprendi a fotografar escritores, é que uma coisa é ser escritor e outra quem escreve. Mas produz-me uma grande fascinação, não tenho medo…

De te dececionares, por exemplo?

Não, nada.

Nunca aconteceu?

Claro que sim.

Mas não é isso que é mais importante.

Não, não é o mais importante.

Já falámos do (Jorge Luis) Borges, do (Julio) Cortázar. Guardas alguma história, não necessariamente destes dois escritores, mas alguma história de todos estes que estão aqui retratados que queiras contar às pessoas que vêm ver esta exposição?

Bem, a primeira coisa que quero dizer é que há muitas ausências entre os “navegantes da jangada de pedra”. Toda a seleção é imparcial, é incompleta, é pouco exaustiva e era impossível pôr todos porque simplesmente a “jangada de pedra” ter-se-ia afundado com o peso da boa literatura. Então, tive de fazer uma seleção e estou muito contente.

Porque também incluíste portugueses, é importante dizer isso.

E portugueses do Brasil, de Portugal e de África. Era muito importante, a língua portuguesa. E uma vez mais, esta exposição é uma homenagem ao José Saramago. E quero dizer uma coisa que para mim é muito importante: uma coisa que me alegra muito e me emociona é o facto de uma instituição irmã, como é a Casa da América Latina de Lisboa, se associar através desta entrevista, a este projeto, porque parte também do espírito da “jangada de pedra”: em vez de estar cada um no seu canto, todos viajamos nessas mesmas águas que levam à literatura da América Latina à Europa e da Europa à América Latina.

Nem toda a gente conhece o teu trabalho de fotógrafo, naturalmente, mas há uma coisa que podemos dizer às pessoas sobre as tuas fotografias dos escritores, é que contam uma história. Cada fotografia conta uma história, é como se fosse uma narrativa, tem uma narrativa inerente à imagem que estamos a ver. Então é nesse sentido que queria que escolhesses uma narrativa daqui para nos contar.

Vou associar esta pergunta à outra que me fizeste. Antes disse dizendo que toda a fotografia tem um relato, mas também toda a fotografia oculta um relato, que é aquele que não vemos, que está por trás de cada fotografia, o que aconteceu antes de chegar a essa fotografia. Então, podia escolher um relato do meu primeiro retrato literário, que foi Jorge Luis Borges, em 1978, mas vou escolher um de alguém que foi fundamental na minha vida de leitor, e como pessoa, que é o Julio Cortázar. Eu chego a Paris em 1978, tinha 18 anos, e a poucos meses de ter chegado propõem-me fazer uma exposição, e eu digo que sim. Nessa altura vivia num sótão, que ficava no 6º andar, sem elevador, e um dia antes da inauguração dessa muito pequena exposição dou-me conta que não tinha convidado a pessoa com quem mais tinha contado para chegar a Paris. E então, desci os 6 andares do meu sótão, cruzei a avenida, entrei nos correios, e aí procurei na lista telefónica essa pessoa, na letra A, na B, na C, e o telefone de Julio Cortázar constava da lista telefónica. Era muito comum nessa época não estar na lista, chamava-se estar na lista vermelha, para que não fossem solicitados, mas o Julio estava. Então, marquei o número, muito nervoso, e atendeu-me um atendedor automático, e não tive coragem suficiente quando escutei essa voz tão “afrancesada”, com esse sotaque “olá, sou Julio Cortázar, deixe a sua mensagem”. Depois, respirei fundo para subir os 6 andares da minha casa, mas dei meia volta e voltei à cabine telefónica para voltar a marcar o número, e voltou a atender-me essa voz. Mas dessa vez fechei os olhos e deixei-lhe uma mensagem que dizia “olá Julio, chamo-me Daniel. Não sou ninguém, nunca fiz nada, mas amanhã inauguro a minha primeira exposição, e seria a criança mais feliz do mundo se me pudesses acompanhar. Deixo-te a morada.” E o Julio veio.

Como foi quando o viste entrar?

Ele que era muito alto pareceu-me um gigante de 3 metros, e eu que era pequenino e jovem, parecia invisível. Foi maravilhoso! Foi assim que o conheci e que ficámos amigos.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

Foto cabeçalho: José Saramago © Daniel Mordzinski

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