Duas exposições, dois caminhos
Etiquetas: Leonor Beltrán, Movimento 2, Yvette Centeno
___________________________________________________________________________________Texto de Yvette Centeno sobre as exposições de Leonor Beltrán na Casa da América Latina e Teresa Balté na Perve Galeria.
“Inauguradas quase em simultâneo, a primeira no dia 12 de Abril, a segunda no dia 13, tão diferentes e no fundo tão complementares.
Falemos primeiro de Teresa: expõe as suas aguarelas e técnicas mistas, obras que o curador Carlos Cabral Nunes foi redescobrir, datadas dos anos sessenta-oitenta, na sua maioria, com as marcas de época de um surrealismo colorido, expressionista quase, e lírico, sempre, que o pintor Cruzeiro Seixas tinha em seu poder e gentilmente disponibilizou para esta grande antológica numa galeria que é mágica, são espaços de uma Alfama arcaica iluminada pela luz e pelo brilho da Arte, respirando por ali em liberdade.
Diz a pintora, num breve texto de 1992, a respeito destas pinturas agora de novo exibidas, com o título de PINTAR AS COISAS:
«Restaurar as ilusões, soltando a perspectiva ou conjugando água e fogo, tinta e nervo. Exercitar a imaginação elástica. Desaguar na enseada dos símbolos. Depois cortar a corda apodrecida e naufragar o papel nos mares da China. Recriar então o caos (…) colar noutros espaços os lugares. Olhar pelo golpe entre as pálpebras ou pelas cicatrizes que corrompem o tronco do homem e da árvore, a folha-pluma-alma…até à náusea.
Gritar de novo. Já não cantar de manso. Porque a boca secou e o discurso é artificial e artificioso. Descolar então. Voar sem rumo. Pelos labirintos da vertigem. Pelo absurdo de não haver absurdo. Pela refluxa nostalgia do abscôndito. Descolar ligeiramente as retinas.»
Sendo esta pintora também uma poeta de obra já longa, e meditada, é às suas palavras que entendi entregar a reflexão sobre o que ali, entre formas e rostos, e um certo e expressivo bestiário animal, expondo curvas de serpentes, asas de borboletas, agudas cabeças de pássaro, que surgem do nada prontos, quem sabe, a devorar um rosto já de olhos fechados, baleias humanizadas e expectantes, prontas a receber a chama já sem luz de um Ícaro cadente, nas palavras que cito e que alguns belos poemas inéditos pontuam, encontro afinal um dos caminhos: o que se encontra lá fora, que é feito de tudo um pouco, do mais banal episódio ao mais profundo segredo. Nascem monstros da treva, mas nas mãos de Teresa irão sofrer muitas transformações, cobre-os de luz e côr, retira-lhes a máscara que os cobre, e tudo nestes quadros de repente explode e dá-se à nossa frente um novo nascimento, o de um cosmos ao mesmo tempo caos mas que alguma divindade por dentro iluminou.
Bem diferente é o caminho percorrido por Leonor Beltrán, pintora também ela já de longo percurso, não é o PINTAR DAS COISAS que ela expõe, mas sim o pintar da alma: não das coisas, podia ser, as coisas têm alma, cada uma a seu modo, como as plantas ou os animais.
Não. O que ali, finamente desenhado a tinta da China, com lápis ou pincel, é um conjunto de meditações todas elas viradas para dentro, um mundo esférico, por vezes inacabado, como se de uma renda abandonada a meio se tratasse, um mundo circular que se procura perfeito, seja a partir de um ponto que foi ponto inicial, no dizer de um Nicolau de Cusa, ou resultante de um movimento que se desejou completo, Todo e Uno, mandálico no sentido mais junguiano do termo.
Leonor chamou MOVIMENTO “ao seu conjunto, que também ele, como o de Teresa Balté reúne em antologia vários anos, desde os anos sessenta (o que há de tão surpreendente ainda hoje, nesta década de tanta escrita livre, onírica, libertária, e ao mesmo tempo de tanta análise profunda dos cantos mais recônditos da alma? Breton e os surrealistas já se tinham apropriado do imaginário da noite, mas Jung ainda discutia com Freud a existência de arquétipos e de um inconsciente colectivo).
Já por aqui se nota a primeira diferença do olhar destas pintoras e dos seus dois caminhos, ambos tão sedutores:
Teresa pinta as coisas, está certamente mais perto de Freud, naqueles anos em que pinta.
Leonor mais perto de Jung, ainda que talvez não saiba. O seu movimento é o da busca do sentido das finas teias da alma. É assim que da pincelada cheia, evocando Michaux, numa primeira série de quadros que podiam ter saído de LA NUIT REMUE, a noite em que tudo se mexe, de onde tudo se escapa em busca de luz melhor, caminhamos com ela para outras séries em que o finíssimo ponto é de bordado, de aranha ou de tecedeira, das que desenham a alma com o sopro da vida ou com tesoura infame a interrompem de súbito e sem perdão.
Flutuamos nessas teias, num movimento que suspende, não embala, interpela, não responde. Há por vezes uma construção geométrica, elaborada, que se afunda no coração mandálico da teia e penso: Escher passou por aqui. Mas Escher seria ainda um outro caso à parte: jogos de espelhos, de ocultação e desafio de elaboração complexa, geométrica, matemática. Ainda que escondendo, como na alquimia, aquela fusão andrógina, platónica, dos rostos dos amantes. Com Escher, que alguma pintura de Leonor me faz aqui recordar, regresso à harmonia pitagórica de uma matemática secreta, primordial. Mas Leonor vai mais longe: despoja-se dos jogos que seriam para ela, quem sabe, uma fácil tentação. E entrega-se ao seu labor de formiga, de trabalho e entrega humilde, pondo de parte toda e qualquer ostentação de cigarra. Depura-se, em cada forma, quando vai chegando ao fim do que ela própria não saberia ainda revelar.
Porque na alma tudo se esconde, nada se revela, enquanto não se atinge o que é seu ponto vital. Um ponto de muitos pontos, caminhos e movimentos de muitos desvios feitos e refeitos e novamente desfeitos… Ali ficamos presos, no Uno da forma, que se ampliou num centro que é vital ou na sua interrupção.
Que significa o 2, na escolha do título? (Para mim todo o título é já indicação).
Que ali se retomou o célebre Axioma de Maria, de que Jung (ele mais uma vez) tanto gostou, e tanto o estudou nos alquimistas e nos grandes criadores, como Goethe, no Fausto.
É em Psycholgie und Alchemie (1944), que Jung apresenta o que chama de “um dos axiomas centrais da alquimia” a afirmação de Maria Profetisa:
“O Um torna-se Dois, o Dois torna-se Três, e do Terceiro se forma o Uno como Quarto” (p. 41). Afastando-se dos estudos puramente da doutrina química, científica, dos autores do seu tempo, procura Jung, como diz, trazer à luz a problemática histórico-religiosa e psicológica dos temas ligados à alquimia. Considera a alquimia como uma espécie de sub-corrente, ou corrente oculta da superfície dominante da cristandade. É vista por ele como um sonho em face da consciência, compensando, como os sonhos fazem, as lacunas, os conflitos, que na consciência se debatem.
O número dois significa precisamente a Mulher, a Terra, o subterrâneo (oculto) A Lua, o Mal, inclusivamente. Basta recordar que Eva é o número 2 de Adão… e é culpada de ceder à tentação da serpente, que provocará a Queda e expulsão do Jardim do Éden.
Por outras palavras, encerra perigo este número, que por outro lado é o que permite a criação do par primordial, e gerado por ele, da espécie humana. Maria Profetisa, também denominada a Judia, ou a Copta, irmã de Moisés, -na tradição alquímica- é por vezes aproximada da Maria que conhecemos dos textos gnósticos do início dos séculos II-III. Pareço estar a desviar-me do ponto da minha reflexão, e da obra de Leonor, mas não estou. Chego então ao mais importante: Maria Profetisa sublinha muitas vezes o seguinte:
«Todo o segredo (entenda-se, da Obra alquímica) reside no conhecimento do que é o vaso hermético. O Uno é o vaso (Unum est vas). Por isso tem de ser redondo, para que imite o cosmos esférico. É uma espécie de matrix, de útero, do qual o filius philosophorum, a Pedra maravilhosa, poderá nascer. Daí que por vezes também se refira a forma de ovo deste vaso. Mas Jung acrescenta que é preciso ter em atenção que estamos perante símbolos, que este vaso uno exprime uma ideia mítica, mística,como todos os símbolos alquímicos» (p. 327)
Se perante alguns dos quadros de Leonor Beltrán de imediato nos sentimos próximos de um Mandala, ou de uma experiência próxima desse exercício de meditação de que Jung, inspirado na mística oriental, se serviu para recuperar a sua alma de uma depressão que lhe devorava a vida, é porque há neles essa energia contaminante e manifesta. Leonor expõe movimento e caminho (Jung só depois da sua morte autorizou a divulgação do célebre Livro Vermelho), com uma generosidade que a engrandece, e à sua obra.
Saudemos pois, em percursos tão diversos, um imaginário que se completa, na sua diferença: Seja para a contemplação do que nos é (aparentemente apenas) exterior, ou do que nos é interior (mas em necessária e vital revelação).
Em resumo, saudemos os criadores, na sua criação.”
Yvette Centeno