Margarida Gil: “As minhas viagens refletem-se muito no trabalho de pintura, de cinema e de cerâmica”
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___________________________________________________________________________________No próximo dia 11 de novembro é inaugurada no Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, a exposição “Tango” da cineasta mas também ceramista Margarida Gil. Um trabalho que reúne parte da sua obra, e que inclui algumas peças inspiradas na América Latina.
Esta exposição “Tango” decorre de uma viagem que fez pela América Latina, em que visitou o Chile e a Argentina. O que é que estas peças que vamos poder ver aqui no Museu Bordalo Pinheiro têm destas duas cidades?
Eu vejo que as minhas viagens se refletem muito no trabalho de pintura, de cinema e de cerâmica. A influência direta, mais direta e percetível, é Buenos Aires. Em Buenos Aires uma pessoa sente-se na Europa, sente-se em casa, e depois foi aí que vi o tango. E o tango para mim era uma coisa um bocado estranha, que tinha a ver com o fado, conhecia o Borges, conhecia o Carlos Gardel, de quem aliás gosto imenso, mas não tinha visto. E quando vi amadores, pessoas normais que não são profissionais em vários sítios de tango, houve ali qualquer coisa que tem a ver com a dança de profundamente físico, sensual e inconsciente que eu achei que tinha a ver com uma certa animalidade. Isto do eu achar é agora que estou a racionalizar. Na altura fiquei completamente fascinada e fui ver vários espetáculos durante os dias. Eu estava lá a apresentar o meu filme “Mar” que não tem absolutamente nada a ver. E quando cheguei a Lisboa dei por mim a fazer animais, que sempre tenho feito, animais antropomórficos, a dançarem o tango. Só depois é que percebi “que engraçado, isto é Buenos Aires”, foi a minha viagem lá. Só depois, porque as mãos avançaram primeiro.
É por isso que esta exposição se chama “Tango”?
Sim.
Mas esta exposição tem quatro áreas, quatro partes. Quer falar-nos sobre elas?
Bem, é preciso falar primeiro de um filme que eu fiz agora na Ilha do Pico chamado “Cavaleiro Vento”, com uma pessoa que eu achei que era a pessoa para o filme, o que é muito estranho. É um filme enigmático, onírico aliás, que nasceu de um sonho, e essa pessoa foi o André Almeida e Sousa, que foi meu professor de pintura no ARCO e que, inclusivamente, na altura, tinha um filho de 5 anos. E o meu sonho, que era um sonho muito extraordinário e enigmático, falava de um homem que vivia isolado no Pico com um filho, e eu uma vez vi a cara do André numa fotografia e achei “é precisamente a cara que eu preciso”. Falei com ele e extraordinariamente ele aceitou. Ele e o António, o filho. Pronto, filmei. Quando estava em montagem no sítio onde guardo pintura, cerâmica, etc., que é num atelier, o André foi, viu várias coisas e disse-me “isto tem de ser visto, isto tem de ser mostrado”. E foi ele que tomou a iniciativa, senão ainda hoje estava instalada apenas no cinema. Foi assim que a coisa começou, é a ele que eu devo.
Quatro partes: “Tango”, “Montanhas que não se podem escalar”, “Homens mágicos” e “Um tango para Bordalo”.
Sim. “Um tango para Bordalo” é uma peça que eu fiz de propósito mas não é só isso. “Um tango para Bordalo” é uma provocação que nós vamos fazer no meio das várias peças extraordinárias do Bordalo. Vamos fazer provocações, que vão desde a peça grande que fiz mesmo para o Bordalo chamada “Paspalho”, até ao pequeno vídeo que é uma citação direta da couve do Bordalo, que é a peça mais popularizada, mais copiada do Bordalo. Mas vou divertir-me imenso a fazer provocações, peças que vão ser inseridas entre as do Bordalo, que são obviamente não Bordalo mas que têm relação com ele, têm afinidade, dialogam e provocam. E eu acho que isso é a parte mais moderna desta exposição e mais divertida, é aquela que a mim me entusiasma mais para além de estar entusiasmadíssima com isto.
Depois a parte do “Tango” é então a parte onde há animais com posições de dança de tango…
Exceto as montanhas praticamente todo o meu trabalho tem muito a ver com essa hibridez, a metamorfose de animais e pessoas, e eu acho que este filme que fiz também tem a ver com isso. Isto tudo é um trabalho que leva muito tempo, a cerâmica demora muito tempo a fazer, a construir, a vidrar, é um processo muito longo. Portanto, há aqui muitas peças que tenho feitas há bastante tempo.
Bastante tempo é quanto tempo?
7 anos, 5 anos.
Que são as das “Montanhas que não se podem escalar”?
As das “Montanhas que não se podem escalar” e os “Homens mágicos” também.
Os “Homens Mágicos” também já está feita há muito tempo?
Quase tudo. As últimas são o “Tango” e estou sempre a trabalhar.
E está sempre a trabalhar na cerâmica porquê?
Cerâmica, pintura e cinema. Acho que devo ter tido um excesso de energia qualquer e depois uma ansiedade equivalente. Tenho dificuldade em estar parada e a cerâmica já vem de há muito tempo, embora tenha sida interrompida durante muitos anos. Mas, por exemplo, a pintura, o desenho, acompanharam sempre todo o meu processo.
Tive oportunidade de ler que aos 16 anos, através de uma professora, nasceu a sua paixão pela cerâmica.
Eu tinha entre 15 e 16 anos e foi uma professora de filosofia que foi para a Covilhã, vá-se lá saber como. Uma pessoa extraordinária, Maria Eduarda Cunha Bessa, não me posso esquecer, de tal maneira que fixei o nome dela. Foi ela que me pôs barro nas mãos. Eu vi que saíam cabeças, coisas, com facilidade e fiquei sempre com aquele fascínio do barro, a sensação da humidade nas mãos, no barro. Depois fiz ainda em Lisboa, mas tinha dificuldade em queimar, não sabia, e depois comecei a trabalhar em cinema, em televisão.
Mas fez alguns cursos. Foi à ARCO fazer cursos nesta área.
A partir de uma certa altura, quando saí da faculdade – como sabe dei aulas durante muitos anos -, quando fiquei livre de dar aulas e também quando saí da televisão como realizadora onde trabalhava loucamente, fui fazer gravura na ARCO. A partir daí, comecei sem ter nenhuma ideia de carreira ou do que quer que fosse. Depois fiz vários workshops, comecei, e nunca mais parei. Às tantas, dei comigo a fazer pintura e workshops com gente super interessante. Segundo ano, terceiro ano, projeto, avançado, aí o Manuel Castro Caldas levou-me para a cerâmica também, e gostei. Foi assim, foi tudo um bocado sem ser por voluntarismo, foi um bocado deixar-me ir. Depois, claro que isto implica rotina, disciplina, trabalho físico, mas isso até é bom porque prende. Porque o cinema tem muitos hiatos, tem muito tempo em que se está entre um filme e outro, a maneira como os filmes são recebidos, se não são causam uma grande angústia, são sempre coisas que nos ultrapassam. A cerâmica, apesar de tudo, não tem esse lado de exposição como o cinema tem. Por isso, eu acho que me compensa bastante da outra. Não é um hobby, nunca encarei como um hobby.
Não? Então é o quê?
Não tenho essa coisa de hobby. Quando levo uma coisa levo mesmo a sério. Cerâmica passou a ser uma atividade que eu tinha de aprender e que eu tinha de levar o mais fundo possível, e a cerâmica é um mundo. Já nem falo dos vidrados que é outro mundo. São várias vidas. Eu não me considero uma ceramista, de todo, eu acho que faço no fundo um pouco a mesma coisa. Cinema é a arte do espaço e do tempo, cerâmica é também uma arte do espaço, não sei se é do tempo, talvez não seja.
E a pintura?
A pintura também. A verdade é que se encontram peças em terracota que têm milhares de anos, portanto, à sua maneira transporta a memória, que é uma forma do tempo, perdurar. De qualquer maneira, ambas vêm de dentro de nós, são produto da nossa vida. Eu sinto muito, eu vejo tudo de pintura, desenho, filmes, quando os vejo sei o que é que estava a viver, o que me estava a acontecer, quem é que está ali. Nós vamos ficando por ali, camadas e camadas da nossa vida.
Então as pessoas que vierem ver esta exposição “Tango” vão necessariamente também encontrar uma parte da Margarida que são várias Margaridas, pelo que li no texto que acompanha esta exposição, que é um texto seu. O que é que podemos encontrar da América Latina nesta exposição?
O tango, a paixão, a curiosidade de alguém que percebeu um bocado aquele movimento sensual, ternurento, encosto das cabeças, isso é tango, é mesmo, não vejo isso em mais nenhuma dança.
Entrevista realizada por Raquel Marinho