O Prémio de Literatura Casa da América Latina/Banif 2011 de Tradução Literária, no valor de sete mil e quinhentos euros, foi atribuído a Artur Guerra e Cristina Rodriguez, pela tradução do romance póstumo “2666”, do escritor chileno Roberto Bolaño, publicada em 2010 pela Quetzal Editores. A cerimónia de entrega do Prémio decorreu hoje, dia 13 de Setembro, pelas 12H00, na Casa da América Latina, em Lisboa (Av. 24 de Julho, 118 B).
O Júri do Prémio de Literatura Casa da América Latina/Banif 2011 de Tradução Literária é constituído por Vasco Graça Moura (Presidente), Annabela Rita (em representação da Associação Portuguesa de Tradutores), por Francisco Belard e Mário Quartin Graça (em representação da Casa da América Latina, sem direito a voto).
Este ano, o júri deliberou, por maioria, atribuir o Prémio a Cristina Rodriguez e Artur Guerra pela tradução do romance póstumo “2666”, do escritor chileno Roberto Bolaño, tendo ainda manifestado o seu apreço, entre as restantes obras concorrentes, pela tradução de Salvato Telles de Menezes do romance “Balas de Prata”, do escritor mexicano Élmer Mendoza, publicada em 2009 pela Quetzal Editores.
Em 2011, foram apresentadas ao Prémio de Literatura Casa da América Latina/Banif candidaturas de 24 obras de autores oriundos de sete países latino-americanos, publicadas em Portugal entre 2009 e 2010 por seis editoras, e traduzidas por treze tradutores e tradutoras.
O Prémio de Literatura é concedido anualmente pela Casa da América Latina e pelo Banif – Banco Internacional do Funchal, sendo alternadamente de Criação Literária e de Tradução Literária.
Sobre os Prémios de Criação Literária e de Tradução Literária
Ao criar, em 2005, os Prémios de Criação Literária e de Tradução Literária, a serem atribuídos em anos alternados, a Casa da América Latina teve como objectivos contribuir para incentivar a edição em Portugal de obras de autores latino-americanos e estimular a qualidade das suas traduções.
O Prémio de Criação Literária 2006 foi atribuído ao romance “O Voo da Rainha”, do escritor argentino Tomás EloyMartínez; o Prémio de Tradução Literária 2007 teve como vencedora Helena Pitta, pela tradução do romance “Malinche”, da escritora mexicana Laura Esquível; e o Prémio de Criação Literária 2008 coube ao romance “No céu com diamantes”, do escritor cubano Senel Paz.
A partir de 2009, o Banif associou-se a esta iniciativa, tendo sido criado o Prémio Literário Casa da América Latina/Banif, naquelas duas vertentes, sendo o Prémio referente àquele ano, de Tradução Literária, atribuído a Hélder Moura Pereira, pela tradução do romance “O Inútil da Família”, do escritor chileno Jorge Edwards.
Em 2010, o Prémio Literário Casa da América Latina/Banif, de Criação Literária, teve como vencedor a narrativa “Somos o Esquecimento que Seremos”, do escritor colombiano Hector Abad Faciolince.
Galeria de imagens
As palavras do Presidente do Júri, Vasco Graça Moura, na entrega do Prémio de Tradução da Casa da América Latina a Cristina Gutiérrez e Artur Guerra.
Nos últimos anos tenho defendido a ideia de que traduzir uma obra literária é como tentar tirar uma “fotografia verbal” a um objecto também verbal, com a preocupação de se registar o que se viu com o mínimo de deformações, através de uma lente que é um instrumento de grande complexidade, em parte objectiva e em parte subjectiva, uma vez que nela se articulam a língua de recepção e a maneira como o tradutor a utiliza e se exprime nela com as suas idiossincrasias e a sua experiência.
O resultado exprime-se por uma série de gradações a preto e branco que envolvem um certo coeficiente de reconhecibilidade. Ninguém é a preto e branco na vida real. Isso não nos impede de, por vezes, acharmos muito parecido determinado retrato a preto e branco e até melhor ou “mais fiel” do que se tivesse sido feito a cores. É certo que estes aspectos se tornam mais sensíveis em se tratando de traduzir poesia, mas a questão põe-se identicamente na tradução da prosa, em especial na da prosa de ficção, em que os valores lexicais e estilísticos, as opções estruturantes e o ritmo narrativo assumem grande importância. Não nos esqueçamos daquela citação de Saint-Réal feita por Stendhal: « un roman c’est un miroir que l’on promène le long d’un chemin »… Tenho para mim que a língua em que esse romance é escrito, ou aquela para que é traduzido faz parte da substância mesma desse espelho.
Vasco Graça Moura: O tradutor também é “autor”. A objectiva fotográfica não é apenas a língua através da qual se espreita através do seu utente qualificado: tanto ela como a câmara utilizada fazem parte de um complexo social e psicossomático (este, o da personalidade e capacidade intelectual, emotiva e técnica, e das próprias concepções do tradutor quanto à maneira de executar a sua tarefa). Há muitas teorias em presença, mas a praxis de longe dominante ao longo dos séculos, na história da cultura, tem sido a de se tentar fazer «o mais parecido possível», usando esta expressão em termos corriqueiros de realismo vulgar e, sendo caso disso, corrigindo depois as teorias na prática, sempre em nome de uma semelhança de grau superior a atingir.
É aqui que o equilíbrio das relações entre os elementos do texto na língua de recepção e a sua homologia com o texto na língua de partida ganha um relevo especial. É aqui que o tradutor tem de correr os maiores riscos: ele sabe que não vai fazer “igual” e precisa de decidir se vai usar uma expressão literal ou uma perífrase, se vai manter patterns de sonoridade e homofonia ou desviar-se deles, se vai deslocar a concentração de intensidades, a iluminação e a nitidez, se vai ser mais concreto ou mais difuso, recuperar ou perder eventuais polissemias e jogos de palavras, explorar sinonímias, refabricar ritmos e prosódias semelhantes ou não, se vai lançar mão de um registo mais ajustado às variáveis em presença, ou se vai procurar compensações ou soluções de compromisso aceitável entre todas as variáveis em presença. Muitas vezes, a sua escolha é limitada pela própria resistência dos materiais.
Mas o que importa é que a tradução, quer quanto à forma, quer quanto ao conteúdo, diga “quasi la stessa cosa”, para usar uma expressão de Umberto Eco.
Para o prémio que vamos entregar hoje, a questão torna-se mais complexa, uma vez que se trata, não de um, mas de dois tradutores que colaboraram na tradução da mesma obra, o que significa que eles também tiveram de negociar entre si o resultado que acabam por apresentar.
Sem prejuízo de outras considerações quanto à qualidade e à eficácia dessa parceria tradutória, diga-se desde já que o gigantismo da obra justificava, só por si, a repartição de tarefas e a colaboração. O que torna ainda mais notável a homogeneidade do resultado.
O romance, ou melhor, a articulação da estrutura ficcional de cinco livros sob o título 2666, de Roberto Bolaño é uma obra marcante das literaturas sul-americanas. Creio que é ainda cedo para dizer se o é da literatura universal. Bolaño morreu há poucos anos e só o tempo, com o seu papel de morosa filtragem, o tempo que «es el auctor de todalas epopeyas», como uma vez ouvi dizer a Jorge Luís Borges aqui em Lisboa, é que poderá vir a dizê-lo.
A alusão ao género épico tem alguma justificação. É tal a saturação de crueldade contemporânea em 2666, que se dá como que uma reversão das categorias do romanesco para as do épico e por aí se acede à trágica dignidade de um mito, absoluto, intemporal e intolerável. Segundo Marcela Valdês, as ambições do Bolaño para 2666 eram “escrever um epitáfio para os mortos do passado, do presente e do futuro”. Mas a complexidade da estrutura, a trama tão complicadamente urdida de fios narrativos e matérias tão diversas como as relações intelectuais, afectivas e sexuais entre professores universitários, jornalistas, artistas e escritores, e o encadeamento de uma série intérmina de assassínios abomináveis de mulheres no México, a maneira como responsabilidade e desresponsabilização se enfrentam e reenviam na obra do autor, as modalidades do mal numa permanente renovação que se diria ontológica, ou, para citar o Bolaño, «a proliferação de instantes que rivalizam entre si em monstruosidade», a variedade de processos narrativos de que Bolaño lança mão, as mudanças de registo que vão da subtileza à brutalidade, a sua arte da ironia pondo tudo e todos em causa, enfim, aquilo que ele próprio designou, quando ainda em fase de work in progress, como «um emaranhado demencial que certamente ninguém entenderá», são outros tantos desafios que se colocam aos tradutores e que eles resolvem não apenas com grande competência e rigor, mas com particular felicidade estilística e expressiva.
A colheita deste ano das obras candidatas ao prémio é extremamente importante. 2010 foi um annus mirabilis na edição portuguesa de obras sul-americanas. Grandes autores como Mário Vargas Llosa, Luís Sepúlveda, Roberto Bolaño, entre outros, foram traduzidos e editados. Acontece que as traduções apresentadas a este concurso são, quase todas senão todas, de muito boa qualidade. Mas o júri, no embaraço da escolha, optou por este trabalho, a que me permito chamar ciclópico, e que ficou a dever-se a Cristina Rodriguez e Artur Guerra, entendendo, todavia, dever chamar a atenção para o nível muito alto do trabalho de Salvato Teles de Meneses, tradutor de Balas de Prata, de Elmer Mendoza.
Esta dupla de tradutores, de resto com muito vasto currículo profissional, mostrou que sabe bem como a tradução é, no dizer de Umberto Eco, a língua mais falada do mundo, língua essa que depois assume peculiares tonalidades em cada uma das áreas onde se processa a sua recepção. No seu trabalho de tradução para português de 2666, fica-se com a impressão de que a fotografia a preto e branco a que comecei por aludir, neste exercício de precisão na captação dos efeitos literários de Bolaño, afinal se aproxima bastante da fotografia a cores…
Por tudo isso, felicitemos os tradutores, sem esquecer a editora que soube valorizar o seu trabalho, abalançando-se a publicar um livro desta envergadura.
Vasco Graça Moura
Texto de agradecimento dos vencedores do Prémio de Tradução
Este momento que vivemos aqui hoje em conjunto oferece-nos acima de tudo a oportunidade de agradecer e de celebrar. Vamos saboreá-lo porque os dias como os de hoje costumam ser contados e recordados para a vida. Receber este prémio é uma honra e gostaríamos de partilhá-la com algumas pessoas que a tornaram possível. Agradecemos em primeiro lugar a todos os membros do júri que nos distinguiram com o prémio de tradução literária da Casa da América Latina/Banif de 2011. É para nós imprescindível agradecer à Quetzal e em especial ao Francisco José Viegas, seu director na época e que nos confiou esta tarefa a contra-relógio. Tivemos meia dúzia de meses para traduzir perto de mil páginas em que só a revisão nos levou um mês, com fins de semana incluídos. Decidimos dividir entre nós as cinco partes que compõem o livro de modo a poder responder à urgência da sua publicação. Sabíamos pela nossa longa experiência de trabalho a dois que essa divisão não iria prejudicar o conjunto da obra, mas para evitar qualquer disparidade de critérios combinámos que a revisão seria feita de modo diferente: um de nós ia lendo a versão portuguesa por si traduzida e o outro ia seguindo o texto original para não deixar passar uma palavra sem sentido, um salto de linha, uma referência inadvertida, fazendo sugestões ou propondo alterações. O nosso trabalho em conjunto permite-nos a entreajuda, ultrapassando a dificuldade que a tradução como acto solitário implica. O texto de Bolaño exprime as multifacetadas dimensões de uma prática de comunicação que exige constantemente prévia interpretação hermenêutica e atenção aos diversos níveis do texto. Texto este que se descobre num labirinto de relações sistémicas que vai abrindo passagens para novas interpretações cujos limites não são apenas do domínio linguístico, mas também estético. Tivemos muitas dúvidas, expressões chilenas e mexicanas que não conseguíamos identificar, entrámos em contacto com outros colegas, trocámos impressões, procurámos na tradução inglesa soluções milagrosas para as últimas indecisões. Sim, porque sabíamos que a tradutora norte-americana viajara até ao México durante o seu trabalho para melhor absorver a atmosfera de grande parte da acção. Luxos vedados aos tradutores literários portugueses, já se sabe, que dificilmente vivem em exclusivo da tradução. Com ou sem crises.
Quem melhor que Roberto Bolaño para entender as vicissitudes económicas de quem se dedica à arte de escrever? Durante toda a sua vida fez de tudo um pouco para não abdicar do seu sonho, trabalhava de dia para escrever à noite, nenhuma tarefa lhe pareceu menor para a sua subsistência e dos seus se ela lhe permitisse continuar a construir o universo literário que nos foi oferecendo em cada livro. Esta dedicação e amor à escrita, descoberta à medida que íamos traduzindo e conhecendo Roberto Bolaño, tornou-se para nós numa fonte de inspiração e admiração. Estamos desconfiados que o fabuloso autor de 2666, “lá do seu assento etéreo” provavelmente velou para que a sua obra fosse tratada com amor. E isso podemos garantir que foi. Amor esse que tem continuado fiel e mais alicerçado nos livros que posteriormente temos vindo a traduzir: O Terceiro Reich, A Literatura Nazi nas Américas, Os Dissabores do Verdadeiro Polícia, A Pista de Gelo.
Soubemos, entretanto, que o tradutor alemão de 2666 também recebeu um prémio pelo seu trabalho. Embora já fosse um autor consagrado e premiado, Bolaño ficou mais conhecido no mundo inteiro graças à brilhante tradução norte-americana que ajudou a colocá-lo, já depois da sua morte, no topo de vendas nos Estados Unidos. Coincidência ou não, a verdade é que como nos disse pessoalmente José Saramago e mais tarde escreveu: “os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal. Sem os tradutores, nós os escritores (…) estaríamos condenados a viver fechados na nossa língua.”
Obrigado Roberto Bolaño, obrigado José Saramago. E a todos vós por estardes aqui connosco.
Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Publicado: Setembro, 2011.