Catarina Vaz Pinto: “O primeiro triângulo que nós vamos querer fazer é este: Centro de Estudos, Casa Fernando Pessoa, Bibliotecas de Lisboa”

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A propósito da doação da biblioteca de Alberto Manguel a Lisboa, a Casa da América Latina conversou com a Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto.


Tem vindo a desenvolver um trabalho na área da biblioteca e do livro nos últimos anos. Este Centro de Estudos sobre a História da Leitura ve, de alguma forma, inserir-se nesse trabalho? Se sim, como?

Sim. Quando começámos a discutir sobre a possibilidade de este projeto se vir instalar em Lisboa, claramente para mim fazia todo o sentido, porque ele vem, na verdade, no seguimento de um trabalho que tem sido feito ao longo dos últimos anos. O Centro de Estudos não apareceu assim de repente. Há aqui um lastro de trabalho que nós temos vindo a fazer na cidade inteira sobre a importância do livro, da leitura, do livro como um bem fundamental para o conhecimento, para o desenvolvimento de cada um, para a capacidade do desenvolvimento da imaginação, do sentido critico, no fundo, a politica da leitura que nós temos vindo a seguir. Desse ponto de vista, este projeto é quase como a cereja em cima do bolo para tudo aquilo que temos vindo a fazer nos últimos anos. E, claro, vem de alguma forma dar uma outra projeção, um outro protagonismo cultural a Lisboa, mas vem também alavancar e dar visibilidade a muitas coisas que já existem na cidade, e também ao trabalho de muitos autores e escritores que na verdade vivem e trabalham em Lisboa, e não só.

O Alberto Manguel, na entrevista que lhe fiz, referiu a intenção, enquanto o Centro não estiver pronto e a funcionar, de fazer parcerias. Falou em três locais específicos. A Fundação Calouste Gulbenkian, a Casa Fernando Pessoa e a Fundação José Saramago para, precisamente, desenvolver programas à volta do livro, da leitura patrocinados, digamos, pelo Centro de Estudos. Isso poderá acontecer também no âmbito das outras bibliotecas?

Sim. Eu até vou explicitar melhor. No fundo, o Centro de Estudos da História da Leitura vai ser um equipamento que vai estar sobre a alçada da EGEAC, vai ser gerido pela EGEAC, a nossa empresa municipal de cultura. Já temos a Casa Fernando Pessoa, que também é gerida pela EGEAC e, por outro lado, dentro da administração direta da Câmara temos a rede das Bibliotecas de Lisboa. Portanto, o primeiro triângulo que nós vamos querer fazer é este: Centro de Estudos, Casa Fernando Pessoa, Bibliotecas de Lisboa. E depois, partir daí para as outras instituições da cidade. Fundação José Saramago, Fundação Calouste Gulbenkian, Universidades. Enfim, é esse trabalho que nós vamos querer fazer para enraizar o Centro na malha artística e cultural da cidade.

Portanto, as pessoas poderão então esperar, enquanto o Centro não estiver em funcionamento, encontrar programas nas Bibliotecas de Lisboa?

Sim. Nós já pensamos no próximo ano ter um programa, de que ainda não falámos com o Alberto Manguel, mas precisamente também de valorização da história da leitura, no âmbito do nosso programa das Bibliotecas e da Casa Fernando Pessoa. Portanto, eu acho que também a grande mais valia deste projeto em Lisboa é o Alberto Manguel ser aquela voz que sempre defendeu a importância do livro e a importância politica e social do livro. Isso para nós, tudo aquilo que ele tem escrito sobre o livro, a leitura e a importância do livro, é uma mais-valia fundamental que este projeto traz à cidade.

Depois da cerimónia oficial da cedência da biblioteca, tem-se falado dos custos deste projeto. É algo de que queira falar? Da relação custo/benefício para a cidade?

É evidente que tem custos. O custo maior que era o da biblioteca, essa foi-nos doada, portanto, nada disto teria acontecido se não existisse esse ato generoso da doação da biblioteca. A partir daí, construímos todo o equipamento e todo um projeto, e eu acho que o que depois vai ser importante é toda a programação, todas as atividades que vamos fazer à volta da biblioteca. Quando nós temos um projeto cultural as pessoas muitas vezes só pensam, “mas quanto é que isso custa? Qual o custo/beneficio? Quanto custa reabilitar o edifício? Quantas pessoas lá vão ter?”, mas eu acho que esse é um custo menor face a todos os benefícios imateriais que o projeto em si traz, e que não são só na área da leitura.

Posso dizer-lhe que este gesto de trazer nesta altura a biblioteca para Lisboa é visto pelo resto do mundo como um ato de grande abertura da cidade, que faz jus àquela caraterística de Lisboa de ser uma cidade aberta ao mundo, de encontro de várias culturas, uma cidade hospitaleira, e o mundo hoje precisa desses lugares. E Lisboa fica muitíssimo bem posicionada também com este projeto que tem essa amplificação, muito para além de um projeto cultural. E isso tem a ver com o poder simbólico da cultura, de qualquer investimento cultural. É o que muitas vezes as pessoas não percebem quando estamos a falar da cultura, e sobretudo nas ultimas décadas, quando as pessoas tentam ver o mundo a partir de uma perspetiva económica, e tendem a associar a ideia de valor a valor económico, e há um valor que vai muito além do valor económico propriamente dito e que é esse valor cultural, esse valor simbólico, esse valor agregador, de pessoas, de comunidades, de todos os autores, escritores, de todos os bibliotecários, das grandes bibliotecas mundiais que vão querer vir a Lisboa e participar em atividades no Centro.

Portanto, isso é uma mais valia enorme que este projeto também traz para a cidade de Lisboa. Diria que é um projeto do nosso tempo, simultaneamente local, muito enraizado na realidade local e em tudo o que já se faz ao nível do livro e da leitura na cidade de Lisboa, não só nas redes das Bibliotecas, mas também com todos os autores, escritores, poetas que a cidade acolhe e que nela vivem, como lhe disse, mas depois também nessa dimensão global, porque os projetos hoje vivem nessa duplicidade dinâmica, local e global. E acho que este é um belíssimo exemplo de como hoje o mundo se move, como se fazem acontecer as coisas. Temos sempre de pensar nessas duplas valências porque realmente, para nós, isso só faz sentido se chegar aos lisboetas, e se os lisboetas, através dos projetos que se possam fazer, ou através das leituras, possam cada um, de alguma forma, ter essa experiência de ler um livro, entrar no universo literário. Que possa ser uma experiência transformadora para qualquer um de nós, seja uma pessoa que viva no centro da cidade, seja uma pessoa que vive nos bairros, enfim, qualquer um, qualquer estrato social. Porque o livro tem essa capacidade e esse potencial, chega a todas as pessoas.

Tem, portanto, pelo que acaba de dizer, a perceção de que, o benefício é muito grande tendo em conta o custo que esta operação vai comportar. Tem ideia já de qual é o valor desse custo?

Não, isso não tenho. Porque neste momento também é isso que estamos a fazer. Estamos a fazer um diagnostico sobre a necessidade de intervenção no edifício e a pouco e pouco iremos construir também a equipa, que não vai ser uma equipa muito grande, para gerir o Centro. Fundamentalmente, terá alguns bibliotecários, depois algumas pessoas dedicadas mais à promoção de atividades. O próprio Alberto Manguel será o diretor artístico, portanto, queremos aliviá-lo de toda a carga burocrática, haverá um diretor executivo. Mas, enfim, isto será feito gradualmente porque nós ainda não temos os timings completamente estabelecidos. Sobretudo, vai depender da dimensão da intervenção que tivermos de fazer no Palácio. De qualquer forma, é um edifício que está, há vários anos, à espera de um destino, já teve várias hipóteses de destino. Já esteve pensado para ser o “Africa.cont”, um projeto pensado no tempo do Dr. António Costa sobre arte contemporânea africana, depois esse projeto não se concretizou. Depois pensou-se para uma embaixada de um determinado país. Enfim, já teve várias possibilidades de utilização e, finalmente, chegámos, penso eu, a uma definitiva, que é esta de albergar o Centro de Estudos da História da Leitura.

E está a dizer isso com um sorriso. É claramente uma boa notícia.

(Risos) sim, claro, claro. E acho que é um projeto que vai valorizar muito a cidade de Lisboa.

Para terminar, e porque o Centro de Estudos vai ficar num edifício e vai ser um Centro de Estudos mas também uma biblioteca, não queria perder a oportunidade de lhe pedir para nos falar desta nova biblioteca aqui em Alcântara, ainda mais está aqui perto da Casa da América Latina, que vai inaugurar em breve e que também foi objeto de um projeto de intervenção muito grande, sobre a qual há grandes expetativas.

Sim. A biblioteca de Alcântara também é um belíssimo projeto que temos vindo a fazer. Era também um palacete que já foi uma escola, portanto, houve um cuidado enorme na reabilitação do edificado. É um espaço muito bonito, que tem frescos, aquelas salas todas que foram valorizadas. Há um corpo novo que foi construído para o espaço infantil. Há uma intervenção também, uma escultura de José Pedro Croft no jardim, que foi também uma contrapartida de um apoio que nós lhe demos há uns anos e que agora se concretizou aqui nesta biblioteca, uma obra feita especificamente para a biblioteca. E pronto, é um projeto que na verdade já arrancou. Aquilo que tem sido o lema das nossas bibliotecas é sempre “as pessoas fazem as bibliotecas”. Portanto, as bibliotecas, tal como todos as outras instituições culturais, têm vindo a sofrer grandes transformações nos últimos anos, porque temos procurado voltar a tónica para uma abertura às pessoas, àqueles que são os fruidores dessas instituições, não estando centrados, enfim, nos acervos propriamente ditos, seja nos museus, seja bibliotecas, mas sim nesta relação entre o que são as coleções, as pessoas e as várias comunidades de cada bairro. E essa ligação com as pessoas que queremos que o Centro de Estudos da História da Leitura tenha, porque esse é o sentido da leitura também. A leitura faz-se, são os leitores que dão vida aos livros, e o uso que fazem dessas histórias e de tudo o que aprendem e experimentam através dessa prática tao importante para dar sentido àquilo que fazemos e àquilo que nós somos.

É curioso estar a dizer isso porque, na entrevista que fiz ao Alberto Manguel, eu perguntei-lhe se o Centro de Estudos com aquela biblioteca que vai receber dele, e com tudo o que ele sabe de literatura e com os especialistas que ele já foi dizendo que virão a Lisboa, será um espaço, um lugar dedicado aos académicos, às pessoas que entendem de livros, ao que ele respondeu logo “eu não sou académico, nem sequer me licenciei, não frequentei a faculdade. Eu só sou um leitor”o que é muito curioso. É esse entendimento que tem também? 

Eu acho que, na verdade, tudo aquilo que eu conheço das obras e dos livros de Alberto Manguel, aquilo que ele faz e aquilo que ele pensa sobre os livros, tem muitíssimo a ver com o trabalho todo que nós temos vindo a fazer nos últimos anos, que é essa ideia de criar comunidades de leitores, de tornar o livro cada vez mais acessível, a cultura e o conhecimento cada vez mais acessíveis. Enfim, que não é uma originalidade nossa, é aquilo que tem sido a evolução das bibliotecas nas últimas décadas, e a compreensão de como as bibliotecas são os lugares e os espaços fundamentais de desenvolvimento das comunidades, das sociedades. E, portanto, há que fazer uma grande aposta política e cultural nas bibliotecas, naquilo tudo que elas podem dar às comunidades, e em tudo o que elas podem contribuir para criar verdadeiros cidadãos, cidadãs, pessoas com capacidade de crítica, capacidade de envolvimento no mundo em que vivemos. Portanto, é disso que nós precisamos, de criar comunidades e pessoas motivadas para intervir na sociedade.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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