Ensaio de Marco Leyva sobre Peru e Pisco
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___________________________________________________________________________________[Texto de Marco Leyva, responsável do Wine&Pisco – Muchik, com o título ‘Peru, a terra do Pisco e o português que participou na primeira vinificação na América do Sul no século XVI’, publicado originalmente na edição Maio-Junho de 2010 da revista ‘O Escanção’ (nº 114)]
O famoso brandy de uva produzido há mais de 450 anos na terra dos Incas está novamente na moda, agora nas capitais mais importantes da Europa, amantes dos espirituosos e cocktails. Mas a sua presença não se limita a estar na moda nos últimos anos, também está associada à acumulação de medalhas na categoria de destilado de uva em competições em que participa, desde a prestigiada Vinalies Internationales de los Enologues de France, aos troféus de Las Citadilles du Vin e do Brussels World Championship, até reconhecimentos em países como China, Canadá, Inglaterra e Austrália, entre outros.
Tudo isto graças ao paciente e incansável trabalho vitivinícola de gerações atrás de gerações dos descendentes de espanhóis e peruanos que se foram juntar no novo mundo.
Mas a reputação inicial deste brandy remonta ao tempo do vice-reinado peruano, entre os séculos XVI e XIX, devido ao bom bouquet que as novas castas tinham e pela produção exuberante. Esse facto não passou despercebido pelos comerciantes que cobriam as rotas marítimas do Pacífico, desde a Califórnia até ao Chile, até corsários ingleses e holandeses que procuravam abastecer-se do apreciado aguardente que passou a ter o nome do vale onde nasceu e do porto que o viu sair, Pisco.
A sua longa história pode ser resumida da seguinte forma:
Logo após a capital do império incaico ter sido dominada em 1533, os conquistadores espanhóis estabelecidos nos seus novos domínios não tardaram em reproduzir parte da sua terra no novo mundo. Graças a fontes como a do escritor mestiço Garcilaso de la Vega – ‘Os Comentários Reais dos Incas’ – percebemos que uma das primeiras vinificações em terras sul-americanas foi realizada no Vale Sagrado dos Incas, Cuzco-Peru. O escritor relata que sob a responsabilidade de um dos antigos conquistadores espanhóis, Francisco de Caravantes, vieram os primeiros ramos de videira das ilhas Canárias, de onde brotaram as primeiras castas pretas no Peru. Paralelamente acrescenta que outros marinheiros engenhosos daquela época conseguiram obter ramos delicados de vide a partir de grainhas de passas, que com muito cuidado e paciência transplantaram a terra firme, após mais de três anos de cuidados em vasos.
Mas algo que chamou a minha atenção para partilhar este artigo nas terras do vinho do Porto e do Moscatel foi o capítulo XXVI da obra citada de Garcilaso, onde, com grande precisão, relata que na data de 21 de Janeiro de 1560 conheceu, na capital do império Inca, um português. Descreveu-o como um especialista, de nome Alfonzo Baez, que apresentou ao jovem Garcilaso as vinhas bem cuidadas de uma das primeiras herdades em terras peruanas, propriedade de Pedro Lopez de Casalla, secretário de um dos primeiros conquistadores.
Por outro lado, em relação à qualidade do primeiro vinho obtido a partir desta casta em território peruano só se pode concluir que não tinha a mesma intensidade de cor em comparação com os vinhos espanhóis, pelo que foi baptizado vinho “haloque” para o diferenciar do vindo de Espanha. Outro cronista da época, muito respeitado pelo seu rigor, é o padre jesuíta Bernabé Cobo, que fez uma compilação de informações sobre o novo mundo no seu livro ‘Historia del Nuevo Mundo’, no qual dá mérito ao espanhol Hernando de Montenegro como um dos primeiros a colocar vinha no mercado da cidade dos Reis (Lima-Peru) em 1551. Este estadista minucioso, que em 1626 se mudou para a cidade de Pisco, a sul de Lima, afirma que as vinhas deste vale e as de Ica e Nazca eram suficientes para fretar cerca de 100 navios por ano para abastecer as províncias do Vice-reinado ao longo do Pacífico.
Outro cronista respeitado desse tempo é o dominicano Frei Reginaldo de Lizárraga, que chegou ao Peru no final da década de 1580. No seu Primeiro livro da Descrição Colonial, parte de sua obra ‘Breve Descrição do Reino do Peru, Tucuman, Rio da Prata e Chile’, conta com espanto a existência de vinhas abundantes e de excelente qualidade para fazer o vinho e o aguardente, especialmente as localizadas no Vale de Pisco, onde encontrou instaladas muitas herdades graças às suas terras férteis. De tal forma que desde logo tinham construído um porto e um grande assentamento humano para lucrar com a venda de vinho e de Pisco.
Portanto, a época do Vice-reinado do Peru está marcada por uma intensa actividade vitivinícola nos diferentes vales costeiros na zona desde Lima até ao sul, que inicialmente obedeceu aos incentivos económicos oferecidos pela coroa espanhola, mas 30 anos depois da conquista tornou-se uma dor de cabeça. O detalhe não calculado foi a extrema fertilidade e o bom terroir destes vales. Para tal tiveram que tomar medidas contra o excesso de produção de vinho e aguardente peruana a ponto de proibir a sua produção a partir de instruções secretas executadas desde 1568 até à proibição das exportações em 1614, por despacho Régio. A medida nunca foi suficiente, uma vez que durante o século XVII a região tornou-se numa potência produtora de vinhos e aguardentes, atingindo a produção de 23.000.000 litros de vinho e Pisco por ano.
A questão coloca-se automaticamente: o que aconteceu para que uma potência vitivinícola não chegasse com essa força até aos nossos dias, a ponto de não aparecer como uma região produtora de vinhos dentro da América do Sul e na literatura de referência, apesar de ter uma boa representação de vinhos premiados? Podemos agrupar as respostas de diferentes formas, mas este artigo centra-se no sobrevivente da idade de ouro que é o Pisco.
O mês que marca o nascimento do Pisco é o mês de Março, com a festa da vindima em Ica. Dentro das castas pisqueras autorizadas temos a Quebranta, Negra Criolla, Mollar, Itália, Moscatel, Albilla, Torontel e Uvina, das quais a Quebranta é a mais representativa pelo facto de vir da região onde nasceu o Pisco. A média mínima de uvas para fazer uma garrafa de 750 cl são 7 quilos, que por tradição são vindimados à mão. Logo o produto vindimado é depositado no local mais alto da adega, de onde os sucos após 24 horas descem até à cuba de fermentação por 7 dias, depois vai ao alambique, onde a uma temperatura baixa e contínua se faz uma destilação descontínua que é detida só quando alcança uma média de 420 a 430 graus Gay-Lusac, dos 750 que atinge ao começo da destilação. O produto final pode variar em grau alcoólico volumétrico entre os 38 e 48 e a sua variedade vai desde o Pisco Puro, que é obtido a partir de uma só casta não aromática (quebranta, mollar ou negra criolla); o Pisco Mosto Verde, a partir de mostos frescos cuja fermentação foi interrompida; o Pisco Acholado, obtido a partir da mistura de castas; e o Pisco Aromático, obtido a partir de castas aromáticas (Itália, Moscatel, Albilla, Torontel). Além destas variedades, também se faz do tipo aromatizado e macerado que não estão contempladas nas normas técnicas.
As regiões demarcadas na sua maioria correspondem às de há mais de 400 anos, ou seja, os departamentos de Lima, Ica, Arequipa, Moquegua e os vales de Locumba, Sama e Caplina no departamento de Tacna. O reporte oficial da última produção de Pisco em 2009 é de 6.67 milhões de litros e os principais destinos fora do Peru são: na América do Sul, Chile, Colômbia, Argentina, Equador; na América do Norte, México, Canadá e Estados Unidos, este último encabeçando a procura; na Europa os principais destinos são Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica e Republica Checa. Numa longa lista aparecem países tão afastados como a Austrália. Em Portugal pode-se comprar, por exemplo, no Club Gourmet do Corte Inglês a 18 euros a garrafa de 500 Cl. A empresa que distribui Pisco em Portugal é a Muchik.
No que diz respeito à prova de Pisco para concursos oficiais, recomenda-se o uso do Copo Pisquero Riedel, disponível no mercado desde 2006, e para o prazer hedonista qualquer copo pequeno em forma de tulipa com pé. Agora que já conhece algo mais do Peru atreva-se e deleite o seu paladar com um Pisco Sour, o cocktail de uso protocolar do Peru nos seus actos oficiais, quer interna quer externamente.