A Mafalda e eu – texto de Luís Afonso para o JL
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___________________________________________________________________________________[Texto de Luís Afonso, publicado originalmente no Jornal de Letras de 24/10/2014]
Cresci com a Mafalda, somos praticamente da mesma idade: ela fez 50 anos em Setembro, eu fiz 49 em Agosto. Conheci-a quando andava no 5º ou 6º ano de escolaridade, andaria ela no 6º ou 7º. Apesar de vivermos muito longe um do outro, eu em Aljustrel, uma vila no Alentejo, ela na Argentina, suponho que em Buenos Aires, sempre me senti próximo da Mafalda. Pertencemos ambos a famílias da classe média e politizámo-nos bem cedo. A Mafalda porque era curiosa e perspicaz, eu porque fui apanhado pela revolução de 25 de Abril com 8 anos. Recordo-me de ter passado a brincar aos antifascistas e pides, em vez de polícias e ladrões ou índios e cowboys. No recreio da escola, a brincadeira preferida era subir para cima do pátio coberto e fazer discursos inflamados contra os fascistas e os pides, com vivas a Mário Soares, a Álvaro Cunhal e ao general Spínola (imaginem a salada). Por isso, quando li as primeiras tiras da Mafalda, estava preparado para o fazer. A desigualdade no Mundo, as ditaduras, o sistema capitalista, o Che Guevara, tudo me era familiar. Ao contrário das tiras dos “Peanuts”, que conhecia por “Snoopy”. Nessas, tudo me era estranho. Achava piada aos bonecos, mas aquele universo norte-americano, com o “baseball” ou os lanches de manteiga de amendoim, passava-me ao lado. Com a Mafalda não, o que acontecia era verosímil, a Argentina era como Portugal, as preocupações da Mafalda eram as minhas. Até na questão da sopa se podia encontrar afinidades. E, depois, os amigos da Mafalda parecia que eram os do meu bairro. Eu também conhecia um Manelinho, um Miguelinho, uma Liberdade, duas ou três Susaninhas e, por incrível que pareça, tinha um amigo Filipe que era igualzinho, no feitio e na cara, ao Filipe. E com a Mafalda fui percebendo os contrastes e as injustiças no planeta. Com ela, aprendi a ser contestatário e, sobretudo, a questionar o que não percebia. Que era muito.
A certa altura, deixei de ver a Mafalda. Não sei se cresceu e ficou adulta na Argentina ou se saiu para o estrangeiro, escapando à ditadura. Terá entretanto regressado? Que fará ela? Terá filhos? Se os tiver, acredito que os tenha educado para serem intelectualmente honestos, íntegros e leais. Eu tentei fazer isso com os meus. Gostaria de lhe perguntar pelo irmão Gui, se continuou rebelde. Pelo pai, se ainda tem tantas contas para pagar. Pela mãe, se começou finalmente a existir. De saber se ela continua contestatária e insatisfeita. E falar sobre os amigos, claro. Que achará ela de os Manelinhos deste mundo estarem no poder, um pouco por todo o lado? De os Filipes, Miguelitos e Liberdades andarem frustrados, desiludidos com a vida, ou então se terem adaptado e “aburguesado”? Do facto de esta sociedade estar feita à medida das Susaninhas? Enfim, seria uma conversa para horas. Ao som dos Beatles, de que ambos gostamos. Talvez lhe oferecesse o “Antes Que Anoiteça”, de Reinaldo Arenas, uma forma enviesada de descobrir o que pensaria ela agora de Che. Mas desconfio que sei o que ela me diria.