Embaixador da Colômbia sobre García Márquez
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___________________________________________________________________________________O García Márquez que amamos
Germán Santamaría Barragán
Embaixador da Colômbia em Portugal
A 17 de Abril não morreu um grande escritor ou um notável artista ou simplesmente uma personagem muito famosa. A notícia percorreu o mundo como um fantasma e a opinião da grande imprensa foi unânime: morreu Gabriel García Márquez, o génio da literatura universal. E génios não morrem todos os dias.
Não foi o seu êxito global que o consagrou, pois até agora e de forma surpreendente já vendeu mais de 50 milhões da sua obra essencial, Cem Anos de Solidão, traduzida em 43 línguas, desde o Mongol até ao Gambiano, incluindo o português. É um génio, porque levou o seu idioma, a sua língua nativa, o castelhano, ao nível máximo da exigência estética e força poética, e a sua novela cimeira tornou-se de forma súbita no livro mais importante escrito neste idioma desde o Quixote de Miguel de Cervantes. Quer dizer, foi um salto de cinco séculos, entre o pai do idioma castelhano e o criador de Macondo, um mundo mágico que totaliza toda a saga de grandeza, tragédia, amor e magia que constituem a força profunda e misteriosa da vida na Colômbia e América Latina.
García Márquez, ao criar Macondo, alcançou algo que só os artistas tocados por essa força desconhecida que ilumina raros seres humanos conseguem. Como a Bíblia, como a Divina Comédia, como a música de Mozart ou Beethoven, como a mítica quantidade de heterónimos de Fernando Pessoa, como o território sulista de Faulkner, como Picasso, este colombiano filho de um telegrafista e de uma rapariga de aldeia, forjou em Macondo um universo onde milhões de habitantes da Terra suspiram e sonham, e como muitas sondagens o demonstram, muitos milhões gostariam de viver depois da morte, porque é uma autentica dimensão do paraíso, o verdadeiro território da utopia, o horizonte onde se juntam e se cumprem todas as profecias.
Gabriel García Márquez conseguiu o milagre de habitar na mente de todos os seres sensíveis da terra com a sua obra, desde um intratável porteiro de um arranha-céus de Nova Iorque ou um agricultor da Austrália, até um rigoroso professor de Harvard e um exigente académico de Coimbra. As suas novelas, contos e ainda a sua vasta obra jornalística, têm uma beleza natural e simples, mas ainda tocada pela força inescrutável e arrasadora do desconhecido. É uma magia misteriosa que toca de tal maneira a humanidade que faz dele o escritor mais influente na literatura árabe, semente do realismo mágico, ou em culturas tão diferentes como a da China, onde o recente prémio Nobel, Mo Yan, afirmou que tinha descoberto e tinha decidido narrar o que tinha vivido na sua aldeia ao ler o que García Márquez descrevia nesse lugar remoto chamado Macondo.
García Márquez nasceu há 87 anos em Aracataca, uma aldeia bananeira da costa Caribenha colombiana, onde faz tanto calor que os pássaros caem devido ao abrasador sol do meio-dia.
Foi criado pelos avós maternos numa enorme casa, e enquanto a sua avó lhe evocava a história dos familiares falecidos que ainda deambulavam pelos quartos clausurados dessa casa infindável, o avô narrava-lhe a história dos mortos que tinham perecido ao longo das 32 guerras civis que assolaram o país. Dessa saga retirou todas as suas personagens, mulheres e homens como seres que só cabem no tamanho dos seus sonhos, e criou uma obra que retratou de corpo inteiro a sua aldeia, Aracataca, convertida em Macondo, e o seu país, a Colômbia, porque não há um livro de García Márquez que não se passe na Colômbia.
Cidadão do mundo, reconhecido e admirado em Portugal, onde veio por duas semanas em Junho de 1975 para escrever três grandes crónicas sobre a Revolução dos Cravos, García Márquez alimentou-se de toda a força vital da América Latina, desde a sua nativa Colômbia, pátria da sua única nacionalidade, até ao tumultuoso e formoso México, que o acolheu generosamente durante quatro décadas. Os dois Presidentes, Juan Manuel Santos e Enrique Peña Nieto, prestaram-lhe uma guarda de honra no imponente Palácio de Belas Artes, com as bandeiras tricolor e da águia Azteca, e as suas cinzas serão conservadas como relíquias em partes iguais na terra destes dois povos irmãos, tão parecidos mas tão diferentes como os coronéis Aureliano e José Arcadio Buendía em Cem Anos de Solidão. Milhões de leitores ficaram órfãos mas felizes no mundo, porque a sua obra foi imortalizada.
Pessoalmente, como antigo jornalista na Colômbia, para além de o ter entrevistado em sete ocasiões, fica uma lembrança que recordo com grande humildade. Foi em Nova Iorque, num domingo de Outono, que me telefonou do Hotel Plaza para perguntar se o poderia acompanhar ao cinema, uma vez que a sua mulher, Mercedes, tinha ido às compras. Então caminhámos pela Quinta Avenida, que é onde realmente se sabe quem é conhecido e importante no mundo, e onde muitas pessoas o cumprimentavam espantadas só por comprovar que García Márquez realmente existia. Na penumbra do cinema, depois de eu pagar com entusiasmo os bilhetes, já que o Nobel tinha deixado a carteira no hotel, aí na ténue escuridão, os dois sós no cinema, não consegui concentrar-me no filme de Akira Kurosawa, porque sentia ao meu lado a presença do maior colombiano de toda a História e o grande génio da literatura universal. E foi nesse momento que senti a irresistível necessidade de lhe agarrar a mão, como àquela desejada namorada de aldeia, para lhe dizer obrigado por existir, e que o amávamos porque era demasiado o quanto tinha influenciado as nossas vidas.