Esta conferência, para a qual foi convidada a Casa da América Latina, convite que em seu nome muito agradeço, como agradeço a presença de toda a assistência, pretende transmitir através de diversos nomes da literatura portuguesa dos séculos XIX e XX, a sua visão sobre o Brasil, as impressões que colheram nos seus contactos com as terras e as gentes brasileiras ou as ideias que, à distância, delas foram criando. E agradeço ao Prof. Doutor Fernando Cristóvão a sua amiga disponibilidade, dando a esta sessão o contributo da sua enorme erudição.
Como observou Nelson H. Vieira, na obra Brasil e Portugal – A imagem recíproca, a presença do Brasil na literatura portuguesa é menos evidente na apreciação da terra e da gente brasileira do que no tratamento da figura do brasileiro, o português emigrante no Brasil ou o de torna-viagem, tema retomado por Wellington Teixeira Lisboa emEntrelinhas da memória: o Brasil na Literatura Portuguesa.
Apesar de o Brasil ter significado para a vida de muitos portugueses o encontrar da ambicionada árvore das patacas – que, como sublinhou o escritor e diplomata brasileiro Ribeiro Couto na obra Sentimento Lusitano, “não era adquirido sem trabalho, não caia do céu; custava muito esforço” -, para muitos mais terá constituído um penoso exercício de sobrevivência, talvez pelas poucas habilitações com que em sua grande maioria arribaram a terras de Vera Cruz. Mas não é desse brasileiro entre aspas o objecto desta minha fala, já retratado por Guilhermino César, em O “Brasileiro” na ficção portuguesa: O Direito e o Avesso de uma Personagem-Tipo”.
Começo por esclarecer que neste meu trabalho a palavra “literatura” é aqui empregue num sentido amplo, abrangendo ficção, memórias, poesia, história, ensaio, etc. E não é das relações literárias entre os dois países que eu tratarei, deixando no entanto apontado que foram sendo editadas em Lisboa publicações com essa finalidade. Assim, em 1899 surgiuBrasil-Portugal: revista quinzenal ilustrada, que perdurou até1914, tendo sido publicados 361 números; em 1915 teve início a revista Atlântida: mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil, que se publicou até 1920; e em 1942, foi criada pelas autoridades oficiais dos dois países, a revista Atlântico: revista luso-brasileira, que terminou em 1948, não havendo registo de nenhuma outra desde há mais de 60 anos.
Seguindo a ordem cronológica do nascimento dos escritores, neste percurso visto a voo de sabiá, usando um termo de Ramalho Ortigão, dá-se a coincidência de o primeiro autor referido ser Almeida Garrett nesta sua Casa, que logo a seguir à proclamação da República, passou a chamar-se Teatro Nacional de Almeida Garrett, mas a que os lisboetas continuaram a chamar “o Nacional” ou o “D. Maria”. Lá pelos anos 40, o Governo repôs o nome da Rainha fundadora deste teatro, exigindo aos empresários que fosse representada anualmente uma peça de Garrett – tradição que lamentavelmente se perdeu e que, espero, não tarde a ser recuperada.
Ora, como “viu” Garrett o Brasil, sem nunca o ter visitado, apesar de em 1836 ter sido convidado para nosso representante diplomático junto do Império brasileiro? Sobre isso escreveram, com o título de Garrett e o Brasil, Henrique de Campos Ferreira Lima, Andrée Carbbé Rocha e Duarte Ivo Cruz, além de Carlos D’Alge em As relações brasileiras de Almeida Garrett, ou ainda, na revista Camões, Imagens do Brasil na obra de Garrett, de Maria Aparecida Ribeiro segundo a qual “em obras como O Ananás,Caramuru ouKomurahy, Garrett usa descrições de paisagens e costumes locais para dar uma nota de exotismo.”
Garrett terá sido de entre os escritores portugueses do seu tempo o que maiores sinais de interesse e de preocupação terá dado quanto à realidade brasileira, como o ódio racial, a extinção dos indígenas, a abolição da escravatura, a emigração, ou o seu amanhã político, de que neste caso, é exemplo maior o texto poético significativamente intitulado O Brasil Liberto, incluído na Lírica de João Mínimo. Mais tarde, retoma Garrett o tema da extinção da raça indígena, no romance inacabado Helena, cujos fragmentos só viriam a lume em 1872.
Mas também a paisagem do Brasil não lhe foi indiferente, como se prova no que se crê ser o seu primeiro texto sobre o Brasil, Komurahy, História brasileira, de data incerta, nas seguintes palavras: “Sentar-me-ei à sombra do majestoso vinhático, da variada palmeira, e a minha alma se enlevará em todas as maravilhas da criação (…). Destes gelos parmados do norte a imaginação me levou a essas regiões onde com todo o luxo e pompas a vegetação espelha toda em sua formosura a magnificência do Criador.”
Assinala ainda a mesma ensaísta que uma outra preocupação presente na escrita garrettiana é de comparar a modéstia desta pequena casa lusitana com a grandeza e a fartura do Brasil. Em 1845, nas páginas da revista A Illustração, aparece, sob o título Um Brasileiro em Lisboa, uma carta de Garrett assinada com o pseudónimo de Jacaré-Paguá, nome de um velho bairro nos arredores do Rio, que se apresentou como um brasileiro que “há seis meses habitava a terra de meus pais”, dirigida de Lisboa para o Brasil a uma Moema, a quem ele chama “caju da minha vida, banana da minha alma, beija-flor dos meus pensamentos, ouro-preto da minha saudade, cana-de-açúcar da minha alma, maracujá-açu do meu coração”, continuando mais tarde: “Fazes ideia tu, Moema querida, do que é uma laranjeira aqui? É um mesquinho e rasteiro arbusto comparado com as nossas. Aqui a natureza não coroou o ananás rei das frutas da terra, nem pendurou a jaca ponderosa do capitel dórico de verdura que sustenta a cúpula frondosa dos pomares”.
Sobre Herculano, Maria de Lourdes Belchior, em Alexandre Herculano e o Brasil, publicado em Temas Portugueses e Brasileiros, seleccionados por Luís Forjaz Trigueiros e Lélia Parreira Duarte, faz jus ao “desassombro, segurança, agudeza, e capacidade de previsão” dos seus escritos, de tal forma que, segundo ela, “é quase óbvio que se Herculano tivesse sido convidado para visitar o Brasil, não teria respondido, como respondeu ao convite para visitar a Europa”, feito em 1863: “As minhas três grandes faias dão-me mais prazer ao vê-las que todos os museus, monumentos, praças, teatros e bibliotecas da Europa. Que ia eu lá ver, se não achava lá as minhas três faias? Estou assim: que lhe hei-de eu fazer?”, como consta das Cartas inéditas de Alexandre Herculano a Joaquim Filipe de Soure.
Em 1837, na revista Panorama, escreveu Herculano:
“Afiguram muitas pessoas o Brasil como um país ainda inculto e bárbaro; crêem que a civilização, as artes, e os cómodos da vida são apanágio dos europeus. Erro miserável que cumpre derrubar de pé.” (…) “O Brasil é uma terra de esperanças. As produções quase espontâneas do seu extensíssimo solo (…) facilitam o trato do comércio, o tornam independente de outros povos, ao passo que estes dele carecem para muitos objectos que se têm convertido em necessidades de vida. À sombra de boas leis, e se alcançar a tranquilidade interior, aquele império crescerá cada vez mais em navegação e em indústria; assim o horizonte do seu futuro brilhante não é difícil de compreender”.
Imagens do Brasil e dos brasileiros são frequentes na extensíssima obra de CamiloCastelo Branco (…), que “decidiu em 1855, num período de angústia amorosa, ir para o Brasil e começar nova vida”, pelo que foi nomeado adido honorário na legação de Portugal no Rio, mas tendo acabado por não sair de Portugal. Porém, a sua vida no norte do País permitiu-lhe muitos contactos com os nossos brasileiros, que aparecem em romances comoOs Brilhantes do Brasileiro, Eusébio Macário, A Corja ou A Brasileira de Prazins, obras em que existem poucas alusões a brasileiros nativos, excepto no que se refere às mulheres, cuja sensualidade refere, em geral não pelos melhores motivos.
Se, por um lado, Camilo mostra o Brasil como uma paradisíaca terra de leite e mel, de enriquecimento fácil, como o Eusébio Macário, que “tinha engordado aos vinte e cinco anos, na pacatez das roças, embalado em redes debaixo das mangueiras”, por outro lado apresenta a brasileira, com a qual muitas vezes o português do Brasil casa e com ela regressa a Portugal, como exemplo de uma mulher ocupando o seu tempo a comer doces e a ler novelas românticas francesas, inspiradoras de um convite a uma vida de festas e adultérios.
Em A Corja, o marido da brasileira Pascoela, já desiludido com o comportamento da sua mulher em Portugal, sonha como poderia ter sido a vida do casal no Brasil:
“Diziam-se frases cortadas de beijos, dum madrigalesco de bordel, em que a Pascoela se avantajava na graça muito gaiata de carioca, umas brasileirices inflamatórias que pareciam feitas de aromas de banana, trilos de sabiá e essência de moscas-verdes”.
Camilo gostava de se referir a esses exotismos. Tanto assim que, quando em polémica com o poeta brasileiro Carlos de Laet, a propósito do Cancioneiro Alegre de PoetasPortuguezes e Brazileiros, em que muitos deles foram alvo de severas críticas de Camilo, este que, como escreveu A. M. Pires Cabral, “todos sabemos que era mauzinho”, pediu que “os senhores escritores brasileiros, se me quiserem obsequiar, mandem-me um papagaio, uma cutia e alguns frascos de pitanga. Quanto à linguagem (ou seja, os seus livros), muito obrigado, mas não se incomodem.”
Antero de Quental conheceu bem a poesia brasileira do seu tempo e manteve bastante correspondência a esse respeito. Mas também o próprio Brasil o interessava. Sobre a hipótese de visitar aquele país, escreveu um dia que “do Brasil cuido que se reduz a viagem a desejos: era uma tentativa desesperada”. E ao comentar a poesia que então lá se produzia, observou Antero: “Há nela uma espontaneidade e viveza natural, uma ingenuidade de sentir e de expressão, que bem revelam a alma de uma nação jovem, a quem não pesa o passado nem o futuro assusta. Merecia ser mais conhecida entre nós essa poesia brasileira, flor exótica desabrochada do velho tronco peninsular, transplantado noutro clima e noutro mundo, mas onde se sente inteira e vivaz, se bem com aroma diverso, a seiva primitiva”.
O fascínio provocado pelo Brasil em Pinheiro Chagas, levou este escritor e político a iniciar a sua carreira novelística com uma série intitulada Chronicas Brazileiras, começando pela publicação da novela A Virgem Guaraciaba, de 1866. Situada no Brasil em meados do século XVI, esta obra está cheia de passagens alusivas à exótica paisagem brasileira:
“A noite estava linda. A lua espraiava o seu manto de luz por essa esplêndida natureza americana, e parecia, cingindo de fulgor a massa negra da floresta, querer proteger a virgindade do arvoredo contra a ímpia desfloração dos filhos da Europa”.
Se é certo que Oliveira Martins se ocupou amplamente do Brasil, não o fez numa perspectiva literária, mas sim numa visão histórica e sociológica, como, por exemplo, na obra O Brasil e as colónias portuguesas.A respeito do processo de colonização portuguesa do Brasil afirmou que “as sementes lançadas à terra da América germinaram e o império do novo continente veio dar um maior testemunho posterior do nosso génio. À obra de arroteamento e cultura na América faltavam braços, e na África sobravam negros: as duas colónias formavam um sistema.
Uma nação formada, livre e forte, na América, e quase metade da metade austral da África, a colonizar e a explorar: eis aí o que foi e o que é a obra dos portugueses. A sua história não ficaria completa, se não se lhe juntasse a das suas colónias; até porque elas serão para o futuro o melhor testemunho, acaso o único vivo testemunho, da sua intervenção activa na civilização europeia”.
Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz não terão nunca pensado vir a criar, através de escritos seus n’As Farpas, sendo catorze capítulos de Ramalho, e sete capítulos de Eça, estes reunidos n’Uma Campanha Alegre, um clima de tensão no relacionamento entre os dois países irmãos, que chegou a causar violentas manifestações populares e levou a que no Recife, em 1872, o 7 de Setembro, data da independência do Brasil, não fosse oficialmente comemorado, com receio de que a colónia portuguesa fosse alvo de maus tratos, reacção devida pela depreciativa crónica O Brasileiro, escrita por Eça. Este episódio originou a obra de Paulo Cavalcanti Eça de Queiroz, Agitador no Brasil.
Se a chacota que a visita a Portugal, em 1871 e 1872, do Imperador D. Pedro II, sobretudo devido às peculiaridades dos hábitos do monarca, motivou tantos capítulos d’As Farpas aos dois escritores – e permito-me remeter para o meu opúsculo O Imperador do Brasil em Lisboa (1871-1872) –, a edição clandestina no Recife daquela obra levou-os a uma reacção dura mas bem humorada, dizendo que “o Brasil, nação irmã, leva os seus extremos de fraternidade connosco até o ponto de reproduzir a nossa obra e de a vender depois por sua conta” mas incitando o editor a confessar-se publicamente um ladrão merecedor de uma grilheta atada à sua perna.
É também de referir que, qual versão ilustrada das palavras de Eça e de Ramalho n’As Farpas, tenha saído da mão de Raphel Bordallo-Pinheiro uma pioneira banda desenhada, talvez a primeira que se fez em Portugal, intitulada Apontamentos sobre apicaresca viagem do Imperador do Rasilb pela Europa, cujo êxito levou à publicação de três edições no próprio ano do seu aparecimento, em 1872.
O texto do qual se pode retirar melhor uma imagem do país irmão na óptica do seu autor éO Brasil visto a voo de sabiá, publicado no volume X d’As Farpas, escrito no final de 1872 por Ramalho Ortigão, que conhecia o Brasil, onde seu irmão Joaquim era figura grada da colónia portuguesa do Rio de Janeiro, texto que traça um retrato demolidor da realidade brasileira. Começando por dizer que “o Brasil, no estado em que se encontra actualmente a civilização no continente colombiano, não é um país de colonos; é um país de escravos”, vai, em seguida, enumerando as carências da produção agrícola, a falta de estradas, a inexistência de indústria, o quase nulo desenvolvimento das ciências, o baixíssimo índice da instrução, lembrando que um “viajante francês referira que na Escola das Belas-Artes do Rio de Janeiro havia em 1858 nove professores – e três alunos” -, enfim, uma visão catastrófica do estado do País.
Já Eça nunca foi ao Brasil, apesar de em 1871 ter solicitado a sua nomeação para cônsul na Bahia. que ele aliás pensava estar na província de Pernambuco. Mas a participação de Eça nas Conferências do Casino, que tanta perturbação causaram na vida política portuguesa, levou o Governo a indeferir a sua pretensão, como admite Heitor Lyra na obra O Brasil na Vida de Eça de Queiroz.
O seu interesse pelo país irmão é manifestado no capítulo A Revolução no Brasil, de 1889, publicado nas Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas, de que lerei algumas partes.
Escreveu Eça, com incontida ironia sobre os gostos de D. Pedro II, que já As Farpas em 1872, como referi atrás, tinham posto a ridículo:
“O imperador não era genuinamente popular. Os políticos mais cultos reconheciam os seus serviços ao império: mas o seu feitio excessivo, de sócio correspondente do Instituto de França, desagradava. (…) O estudo (…) de monumentos fenícios e de textos hebraicos não basta para atrair, no Brasil, essa útil corrente de simpatia intelectual: o imperador só seria realmente popular se tivesse publicado uma colecção de líricas.”
Mais adiante escreve Eça, numa prova de desconhecimento do sentimento mais íntimo do povo brasileiro, ou seja, a noção da sua pertença a uma unidade essencial por cima de todas as diversidades:
“Com o Império, segundo todas as probabilidades, acaba também o Brasil. Este nome deBrasil, que começava a ter grandeza, e para nós Portugueses representava um tão glorioso esforço, passa a ser um antigo nome da velha geografia política. Daqui a pouco, o que foi o império, estará fraccionado em repúblicas independentes, de maior ou menor importância. Impelem a esse resultado a divisão histórica das províncias, as rivalidades que entre elas existem, a diversidade do clima, do carácter e dos interesses, e a força das ambições locais.”
Nascido no Porto de pai português e de mãe brasileira, Carlos Malheiro Dias foi muito jovem para o Brasil, para onde voltou após longa estada em Portugal, estreando-se na literatura em 1896 com o romance naturalista A Mulata, cuja protagonista é uma prostituta, sobre os bas fonds cariocas, a que o autor se refere, dizendo: “é Sodoma, é Babilónia, é esterco, é como em toda a parte. E fora o vício há ainda a miséria. Na Saúde [um bairro carioca] vende-se virgens por atacado e a varejo”.
Logo a crítica, indignada, considerou a obra “um livro infame, em que nada do Brasil escapa ao insulto” e “uma verdadeira enxurrada de lama”. Perante o ambiente criado, o autor regressou à pátria, voltando para o Brasil em 1910, após a proclamação da República em Portugal. E fixou-se no Rio de Janeiro até 1935, onde fundou e dirigiu em 1928 a famosa revista O Cruzeiro e se impôs como o patriarca da colónia portuguesa.
O Brasil não voltaria a ser cenário da sua vasta obra romanesca, mas sim da monumentalHistória da Colonização Portuguesa do Brasil, publicada em 1921, por si coordenada.
Durante algumas décadas, ao longo da primeira e ainda da segunda metade do século XX, o escritor e político João de Barros foi em Portugal um dos paladinos do estreitamento das nossas relações com o Brasil, país que por várias vezes visitou, tendo o seu nome sido atribuído, em 1946, a uma rua do Rio de Janeiro.
No seu livro Adeus ao Brasil escreveu João de Barros:
Afirmo, de maneira categórica – e sem o mínimo receio de desmentido – que o Brasil constitui, de facto, uma das maiores e mais impressionantes maravilhas do mundo contemporâneo. Nos domínios da cultura intelectual, da arte, da literatura, da economia e da política é uma demonstração excepcional de juventude empreendedora e construtiva. Acompanha sempre, se não antecipa, a veemente marcha para o futuro do universo actual.(…) É um exemplo de vitalidade que assombra, na firmeza e na ductilidade, da força edificadora que o anima.”
E mais adiante:
“O Brasil, prolongamento de Portugal, eis um velho e mentiroso slogan, um falso conceito cuja vexatória existência já não alimenta sequer a pior retórica. O Brasil, irmão de Portugal – irmão querido, respeitado e amado nas suas semelhanças e nas suas diferenciações, nas suas divergências e nas suas parecenças -, eis a verdade de hoje, de amanhã e de sempre.”
A obra gigantesca do historiador Jaime Cortesão dedica ao Brasil centenas de páginas, no que se refere ao descobrimento e à colonização dessa “terra virgem e impenetrável, cujos tesouros dormiam num encantamento secular, ocultos e defendidos pela selva inextricável, a muralha serranil da beira-mar e as inumanas tribos dos antropófagos” como ele escreveu em A Colonização do Brasil.
Mas na sua obra ficcional, dramatúrgica ou poética não aparecem referências ao Brasil, a não ser um longuíssimo poema intitulado Paixão do Aleijadinho, dedicado à vida dramática do “Mestre António Francisco/, O Prometeu mulato, devorado/Pelo abutre da lepra/ (…) Que vai erguer nos páramos austeros do Brasil/A majestade bíblica.” No entanto, é bem possível que em “toda a colaboração dispersa pelos inúmeros jornais e revistas em que Jaime Cortesão colaborou”, como refere João Alves das Neves em As relações literárias de Portugal com o Brasil, apareçam, bem como na sua correspondência, impressões sobre a terra que tão bem o acolheu quando as vicissitudes da política o fizeram lá refugiar-se.
Com Aquilino Ribeiro, é o Brasil uma vez mais retratado através do “brasileiro” entre aspas, acerca do qual diz Guilhermino César: “a personagem aquiliana é o homem que age, o português das sete partidas, no melhor sentido. Mais do que em Minas de Diamantes e n’O Malhadinhas, é em Quando os Lobos Uivam que o Brasil, através do seu personagem Manuel Louvadeus, é visto retrospectivamente, quando regressado a casa depois de uma estadia mal sucedida além Atlântico, “repleto de vícios inerentes às terras novas, desprovidas de tradição, em que actuam toda a sorte de precipitados sociais”, segundo alguns conterrâneos seus.
Aquilino visitou o Brasil em 1952, onde foi apoteoticamente recebido. Disso dá testemunho o livro Aquilino Ribeiro no Brasil, publicado em Lisboa nesse mesmo ano.
Ao agradecer o banquete de homenagem que lhe foi oferecido na véspera do seu regresso a Portugal, disse ele:
“Agora, neste Rio enfeitiçador, vou escrevendo ao desenfado, e a minha principal anotação – podem crer – vai para a dança dos urubus por cima dos morros inverosímeis e para a paisagem celeste, quando o avião singra por golfos e abismos no mar das nuvens. Dentro de meses, se Deus quiser, como epiloga sempre o meu caseiro, lhes darei novas das minhas impressões desta cidade concebida em moldes fabulosos e desconcentradora no geral. Estou siderado nos umbrais do ingente mundo que é a vossa terra, meus ilustres camaradas do Brasil”. No entanto, as prometidas impressões nunca vieram a lume.
Ferreira de Castro, declarou em entrevista concedida a João Alves das Neves, incluída na colectânea já acima mencionada:
“Fui para o Brasil com 12 anos e meio e regressei a Portugal com 21 [em 1919.] Formei o meu espírito à luz do espírito brasileiro e isso diz tudo. Ainda há pouco tempo, quando criava as personagens do meu novo livro, parecia-me que eu tinha vivido sempre com elas, de tal maneira me é familiar o povo brasileiro. (…) Devo muito ao Brasil. Basta dizer, mais uma vez, que foi com o seu povo que aprendi a amar o meu semelhante, o que considero a maior riqueza da minha vida.”
E quando em 1959 ele voltou ao Brasil, quarenta anos depois de lá ter saído, regozijou-se o escritor com a concretização do “prolongado sonho de voltar a ver o povo e a terra inesquecível” e agradeceu sobretudo àqueles que o tinham convidado a ver de novo a Amazónia – “essa majestade verde que tantos anos depois de me ter havido por vassalo me faz sentir ainda todo o seu domínio e fascinação”.
Os romances de Ferreira de Castro que têm como cenário o Brasil são Emigrantes, ASelva e O Instinto Supremo.
Escreveu Jorge Amado: “Ferreira de Castro aprendeu no Brasil muito do essencial da sua personalidade de humanista, na selva o menino se fez homem e grande homem. Em troca, (…) levou conhecimento aos quatro cantos do mundo, na emoção da obra criada com o barro das barrancas do grande rio e o sangue dos nordestinos na luta dos seringais. Com seu livro [A Selva] – e só então – ganhou a Amazónia uma real dimensão na geografia literária”.
É dessa obra que retiro este trecho:
“Era sempre a mataria, a mataria e a água em amplitudes de pasmar a quem não concebesse que nos oceanos pudessem também crescer bosques mitológicos. (…) Do arvoredo marginal, levantavam-se, despertados pelo invasor, grasnos estrepitosos e asas de todas as cores, que logo iniciavam remígio deslumbrante. Animais escuros, pardos, cor de mel, antas, capivaras, veados e pacas, que vinham refocilar nos taludes, sorvendo na terra o sal que os frutos lhes negavam, quedavam-se, de focinho no ar, a ver subir as canoas, ignorantes ainda da ameaça que elas representavam. Às vezes, na ascensão lenta e penosa, singrava-se entre crocodilos e tão corpulentos eram alguns que… os tomava(m) por troncos que viessem seguindo seu caminho de nómadas”.
Não é pequena ousadia falar sobre Vitorino Nemésio perante quem melhor do que ninguém o poderá fazer, que é o Prof. Fernando Cristóvão (autor de cinco ensaios sobre o escritor, reunidos na colectânea Cruzeiro do Sul, a Norte), e por isso irei ser muito contido sobre quem foi um dos escritores portugueses que mais e melhor soube entender, amar e cantar o Brasil, limitando-me a pouco mais do que roubar ao meu ilustre vizinho do lado algumas das suas muitas e judiciosas palavras sobre Nemésio.
Os seus relatos de viagens concentram-se em duas colectâneas – O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos e Caatinga e Terra Caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas, enquanto a sua obra poética foi compilada numa edição intitulada Poemas Brasileiros, que inclui Ode ao Rio, Violão de Morro e 9 Romances da Bahia.
Para Fernando Cristóvão, “armado do seu caderno de notas, o viajante-jornalista (…) descreve a realidade duma forma muito sua: a importância daquilo que vê resulta do seu valor e interesses culturais.(…) Os outros aspectos, mesmo sociais, ficam sempre em segundo plano”.
Por isso, continua Fernando Cristóvão, “ de entre os Estados do Norte, Nordeste, Leste e Sul percorridos pelo “peregrino da América”, a Baía e Minas Gerais são objecto de uma preferência que vai buscar a sua razão maior à riqueza cultural que os caracteriza, nas letras e nas artes, tipicamente barroca”, que “atraem Nemésio de maneira irresistível. Baía e Minas – dois pólos característicos da aculturação tropical da maneira lusitana e europeia de entender o mundo -, verdadeira alma do Brasil, definem também duas linhas estruturais do espírito de Nemésio. No barroco de Salvador se projecta a sua exuberância criadora, no de Ouro Preto a sua contensão apolínea e tridentina”.
Mas nada no Brasil lhe é indiferente e, a propósito do Recife, escreve Nemésio o que bem poderia ser aplicado a outras cidades nordestinas:
“A alma do Brasil pulsa nestes quarteirões urbanos com uma liberdade magnífica. Ali se encontram a raiz lusitana de uma colonização insensível e os indeléveis raigotos do fundo ameríndio e africano. Mas por muito que a fauna imponha suas variedades e nomes próprios, tupi ou banto, potiguar ou nagô, é o tom “lusitano” que abrolha em algo novo e diferente de qualquer dos componentes, qualquer coisa que só o “bem brasileiro” da reivindicação nacional exprime e afirma”.
Ouçamos agora o seu poema Praça 15, Rua 7, referente à vida boémia do Rio de Janeiro, que demonstra a identificação do poeta com a terra, as suas gentes e a sua linguagem:
“Lá na rua do Catete
Gostei de umas cinco ou sete.
Bota um pouquinho de cana!
Bota, para me lembrar
Se foi em Copacabana
Ou na rua do Catete
Que nós fomo conversar.
Foi Odete ou Bernadete?
Não posso me recordar.
Será que moça promete
Encontro na rua Sete
Com peitica de faltar?
Na praça Quinze seria
Que estive espiando Odete,
Sentinela do meio-dia
Até bem depois das sete.
Duas vezes não a via:
Será que foi Bernadete?
Na praça Quinze num dia,
Dois dias na rua Sete,
Com mais um que me promete
E já sei que não cumpria,
Na praça Quinze seria
Que me danei com Lisete.
Mas, meu Deus, que confusão
Vai na rua do Catete
E neste meu coração,
Que tudo quanto comete
Sempre há-de ser contra-mão,
Dia 15 ou dia 7…
Em 1973 foi publicado o romance Lusco-fusco, assinado por Pablo de la Noche, que constituiu a única obra de ficção do embaixador Marcello Mathias, sendo de lamentar que essa auspiciosa estreia literária não tenha tido continuidade. Assim descreveu o autor uma cena localizada no Rio de Janeiro, que ele conhecia por lá ter estado enquanto secretário da nossa Embaixada:
“Ingrid vivia num permanente encantamento. Logo de manhã, seguíamos pela Lagoa, a caminho da praia de Ipanema, que ela preferia ao cosmopolitismo de Copacabana.Frequentemente, de Ipanema continuávamos para o Joá, sob a silhueta tutelar da Pedra da Gávea. Por toda a parte o panorama era grandioso; dum lado o infinito do oceano, do outro a terra sem fim, na intérmina sucessão da cadeia de montanhas que servia de moldura ao Rio de Janeiro.
Nos raros contactos com a gente do país, seduzia-nos a espontaneidade simples e amável do seu acolhimento, o optimismo natural que se diria decorrer da própria natureza e que inspirava as danças locais, o bulício da cidade, a alegria de viver que todos exprimiam.
Ao contrário da paisagem europeia, moldada à medida do homem, que se diria concebida pelos valores da Grécia antiga, no Brasil tudo era desmesura. Os homens vivem em constante luta contra a força de absorção da terra, porque sem essa luta a floresta tudo invadiria e restituiria à eternidade telúrica e primitiva da natureza tropical. Assim se terá formado no Brasil um outro sentido da vida, um dinamismo à escala do gigantismo do país, mas em que os homens carecem daquele optimismo como de um talismã ou de um carisma”.
Quase se poderá dizer que, tirando os seus ensaios sobre Montaigne e Fernando Pessoa, na imensa obra escrita de Agostinho da Silva – “sempre forte, pedagogo, apóstolo”, assim o definiu António Sérgio –, sejam livros, ensaios ou as cinquenta e oito Cartas Várias que, entre Fevereiro de 1986 e Outubro de 1987 enviou, endereçadas pelo seu próprio punho, a cerca de setecentos amigos em todos os continentes, o Brasil ocupa um lugar permanente na sua obra e na sua ideia visionária do mundo de amanhã. No seu pensamento persistia a ideia do papel relevante que caberá à civilização lusíada na edificação de uma nova era, mas terminou o seu livro Reflexão achando admissível prever que “Portugal-ideia não possa um dia encontrar na Europa um ponto de apoio. Então, é muito provável que tome o Brasil inteiramente sobre si, como parte do seu destino histórico, a tarefa de, guardando o que Portugal teve de melhor e não pôde plenamente realizar e juntando-lhe todos os outros elementos universais que entraram em sua grande síntese, ofereça ao mundo um modelo de vida em que se entrelaça numa perfeita harmonia os fundamentais impulsos humanos de produzir beleza, de amar os homens e de louvar a Deus: de criar, de servir e de rezar”.
Em páginas d’A criação do Mundo e no volume VII do Diáriovem descrita a experiência brasileira de Miguel Torga, que em 1920, tinha ele doze anos, partiu para o Brasil, para trabalhar com um tio, fazendeiro de café em Minas Gerais.
Chegado ao Rio de Janeiro, “no dia seguinte acordei para a terra onde estava a minha felicidade”, escreveu Torga. E continuou:
“A avaliar pelo que via, o Brasil, o Brasil que me ia enriquecer como a toda a gente, era uma casa enorme suspensa numa lomba por meia dúzia de esteios de madeira, celeiros e cocheira ao lado, um terreiro enorme em frente, moinho, chiqueiro e vacaria em baixo, ao pé do ribeiro, laranjeiras carregadas no pomar, à direita, e arvoredo cerrado a toda a volta. (…) Havia ainda quilómetros e quilómetros de cafezais, encostas plantadas de cana do açúcar, várzeas cobertas de arrozais, extensões enormes de mata virgem (…), montes e montes cobertos