Silviano Santiago, Prémio Camões 2022: “Queria ser tão múltiplo quanto o Pessoa de 1954”

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Li que começou a ler precocemente e que a leitura de “ABC da leitura”, de Ezra Pound, foi muito importante porque lhe trouxe a ideia de que a literatura tem três funções: ensinar, comover, e deleitar.  Sabemos que aprendemos com os livros e que podemos deleitar-nos com as histórias que lemos, mas a comoção é um conceito diferente. O que o comove na literatura? Ou, talvez, que autores ou livros o comovem, e porquê? 

Um detalhe. Não comecei a ler precocemente. Fui precoce no interesse pelo cinema. E por me interessar pelo cinema em cineclube, interessei-me, aí, sim, precocemente pela teoria que pensa o cinema (em particular, a montagem). Quando começo a ler tardiamente literatura, logo me interesso pela teoria literária. Daí a curiosidade, aos dezesseis anos, pelo livro de Pound e principalmente por um volume extraordinário de Fernando Pessoa, Páginas de doutrina estética (acho que o livro não existe mais enquanto tal). De um tirei a função da literatura, já mencionada. Do outro, lá estava diante da carta de Pessoa a Jorge de Sena sobre a gênese dos heterônimos. Fui tão indiscreto na leitura que tomei para mim meu primeiro pseudônimo, António Nogueira. Foi das páginas da doutrina estética e da leitura dos poemas em edição (editora Ática, capa branca) que me aproximei da comoção e comecei a fazer literatura como António Nogueira. Das três funções, a comoção é a que se tornou mais maltrapilha nos tempos modernos. A sociedade do espetáculo, como ironiza Guy Debord. Confunde-se hoje com a efusão, ou lírica, subjetiva, ou épica, comunitária. Teríamos de voltar à Grécia e a Aristóteles, e à teoria dele, catarse, sobre a paixão (páthos). Meio complicado para uma entrevista. Vamos lá. A comoção se confunde com a purgação das paixões. A paixão é o que move (moveat, na citação em latim) o homem para a práxis, para a Vida. Quem sabe se não estou a dialogar com o dedo astuto duma professora de estudos clássicos?

Sei que teve um mentor nas suas leituras iniciais, alguém que o guiava com sugestões de livros. O que recorda dessa experiência e por que razão ela foi “tão importante como a escola”, como disse numa entrevista? 

A escola, ou para ser mais preciso, a Faculdade de Letras me dava uma compreensão metódica, histórica e um tanto alheia a julgamento de qualidade (lembro-me que tive de ler muitas peças do teatro romântico espanhol, costumbrista, que nada me interessavam). Meu mentor avacalhava o metódico com sugestões anárquicas que me chegavam à la Nietzsche, intempestivamente. Lá estava eu a ler também um grande poeta e pensador norte-americano, Pound, amigo de Eliot, que nunca entraria num curso de letras neolatinas (que excluía o ensino de inglês e de alemão). A anarquia não teria maior sentido se não estivesse se contrapondo ao aprendizado metódico e escolar, cheio de bons sentimentos pequeno-burgueses. Nessa época também é que li por, indicação do mesmo mentor, o André Gide que seria o autor que estudarei na tese de doutorado na Sorbonne. Não é Gide quem me diz que a literatura não se faz com bons sentimentos? É por aí que os dois caminhos se suplementam, se me entende. É evidente que a generalização que fiz da Faculdade de Letras escamoteia a presença do professor mais importante em minha formação, Rodrigues Lapa. Fui seu aluno em vários cursos e, rapazinho, o visitava em casa até ele decidir regressar à Anadia natal. Acredito que assisti a um curso inédito dele, um bem especial sobre a poesia contemporânea galega.

De certa forma, um professor de literatura também é um mentor? Tentou sê-lo com os seus alunos? Crê que conseguiu ser igualmente transformador na vida de alguém como o seu mentor foi na sua?

Não entrarei em detalhes na intimidade da sala de aula. Há depoimentos e mais depoimentos de alunas e de alunos meus. Até um vídeo com depoimentos, que foi apresentado publicamente. Ali está a resposta mais precisa e mais sólida, menos piegas e menos sentimental à pergunta. Tudo é passível de ser consultado. Posso apenas lhe informar que ensinei em nível de graduação e de pós-graduação a estudantes de diferentíssima formação e nacionalidade, e que sempre tentei aproximar-me deles, educando-me previamente numa formação que não era a minha original. Tentava falar, em aula, a mesma “língua” delas e deles. Posso ainda lhe informar que orientei quase cinquenta dissertações de mestrado e de doutorado e que, ao menos duas dezenas delas, foram publicadas em forma de livro, com boa ou ótima acolhida crítica. Cito alguns nomes de orientandos(as): Célia Pedrosa, Cláudia Neiva de Matos, Flora Sussekind, Ítalo Moriconi e Roberto Ventura.

Disse numa entrevista, e a propósito da escolha de ter um mentor, que “sentia necessidade de cultivar a palavra”. Nessa altura já queria escrever? 

Tenho um livro de poemas, Crescendo durante a guerra numa província ultramarina que talvez responda à sua curiosidade intelectual. Foi a leitura de gibis, posteriormente o interesse por filmes e finalmente a dedicação à literatura que me incentivou o desejo de escrever. Estava sendo encaminhado por meu pai, cirurgião-dentista, para a Engenharia. Talvez não seja por mera coincidência que meu primeiro romance de importância, Em liberdade (1981), se apresente sob a forma de pastiche. Um pastiche de Graciliano Ramos. Muitos sabem que Proust começou pelo pastiche, mas poucos sabem que Machado de Assis tem um extraordinário pastiche (ele usa a palavra) na coletânea Papéis avulsos. Refiro-me ao conto “O segredo do bonzo / Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”. Esse conto seria (ou é, numa leitura pós-moderna) um capítulo revelador da sua notável leitura da Peregrinação. Ele redige o “capítulo inédito” e diz que deve ser inserido entre esse e aquele do relato clássico. Só um descendente de povos diaspóricos escravizados poderia ter escrito o diálogo entre o bonzo e o padre sobre a invenção de um “nariz metafísico”, a complementar as orelhas e os narizes decepados, descritos tão realisticamente por Fernão. Leiam o conto, em busca de novas perspectivas para as peregrinações orientais. Nosso genial Machado de Assis.

O poeta Charles Bukowski tem um poema chamado “Então queres ser escritor?”, na tradução portuguesa, que começa com o verso “se não rebentar dentro de ti, a despeito de tudo, não o faças”. Concorda com esta ideia? Foi assim consigo? Como foi? 

Fui rebentado primeiro pela realidade que tive de enfrentar sozinho. Rebentei-me diante da realidade de viver e me autossustentar no estrangeiro e me fragmentei com a ajuda de Fernando Pessoa e, posteriormente, com Os passos em volta, do Helder, de 1963, não é? Minha “Beatriz” foi a fragmentação. Queria ser tão múltiplo quanto o Pessoa de 1954. Só fui “me rebentar” dentro de mim tardiamente. O primeiro movimento do meu saber foi o de expansão – sou por natureza provinciano, tímido e aventureiro. Enriqueci-me viajando e até fazendo carreira universitária nos Estados Unidos da América. Pedi demissão do cargo que tinha, com “tenure”, para regressar ao Brasil. Meu segundo movimento é que foi de introversão. Como diz Baudelaire no diário íntimo: desnudo meu coração (“mon coeur mis à nu”). Se retomo Machado de Assis, lembro que é a esse ato de desnudamento da intimidade que ele dá o nome que é comum na literatura do século dito vitoriano – a “autópsia” de si mesmo, se lhe permitem o pleonasmo revelador do bisturi subjetivo.

Tem cerca de 30 livros publicados entre ensaio, romance, conto e poesia, mas ainda não está publicado em Portugal. Em qual dos géneros o conheceremos melhor? Por outras palavras, o que gostaria que chegasse primeiro aos leitores portugueses? 

É bom que livro, enquanto mercadoria, não seja um fetiche, rs. Pessoa escreve em língua portuguesa e inglesa. Os seus livros, então publicados só em Portugal, eu os li – ao economizar algumas moedas − na “província ultramarina”, Minas Gerais, Brasil, por volta de 1954. Cecília Meireles recomendava. Li-os no momento em que tinha de os ler. E tiveram uma enorme importância na minha vida e carreira. Até lhe roubei um pseudónimo. Que eu saiba Clarice Lispector morreu antes de ter muitos dos livros publicados em Portugal. Era lida por aqui? não sei. Você sabe melhor. Hoje, talvez seja a escritora brasileira mais influente no mundo lusófono. Passou a ser lida mundialmente depois da edição Des femmes, em Paris, e a partir do notável e totalmente inesperado livro da franco-argelina Hélène Cixous, discípula do também franco-argelino Jacques Derrida, meu mestre. E assim iria indefinidamente. O ato de leitura de um autor, que eventualmente possa vir a ter importância, não existe em relação direta com a sua publicação nos muitos países lusófonos (é o caso) ou em tradução. Existe uma “ordem” – em arte moderna e contemporânea – que extrapola todos os esquemas rígidos de compreensão só pela divulgação. A legitimação da obra pela leitura crítica conta, ou não conta?

O Prémio Camões que acaba de receber não é a sua primeira distinção, muito pelo contrário, mas tem a particularidade de ser um prémio instituído pelos governos de Portugal e do Brasil, neste ano em que se assinalam os 200 anos da independência do Brasil. Como falaria das relações culturais entre os dois países? 

Tenho dado o melhor de mim para que a relação seja boa e comunitária. Dou exemplos concretos. Tendo tido Rodrigues Lapa como professor, aventurei-me duas vezes a dar cursos em pós-graduação sobre Gil Vicente e Camões. Houve uma coincidência. Quando ensinava Camões, ensinava também Carlos Drummond. Por casualidade consegui detectar no poeta brasileiro a presença de Os Lusíadas na melhor vanguarda brasileira. O poema intitulado “A máquina do mundo”. Como prova está o ensaio “Camões e Drummond: A máquina do mundo”, publicado na revista Hispania, ainda nos anos 1960. E prova também é o longo e circunstanciado (às vezes julgado irônico) poema que Drummond me enviou “em agradecimento”, hoje na Poesia completa. Por ocasião do centenário da geração de 1870, dei conferência em inglês sobre Eça, um romancista que conheço razoavelmente. Acho que o conheço, porque o bom colega Carlos Reis, então presidente da BN de Lisboa, me convidou para ser o curador da grande exposição comemorativa do centenário de Eça no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Publiquei um belo catálogo, em que levanto vários textos elogiosos de autores brasileiros ao romancista. Esse levantamento, que eu saiba, não existia. A convite das Universidades de Yale e de Harvard, tive a honra de estar em mesa com o já Nobel José Saramago. Se contar, acho que fui um bom colega e amigo de dona Cleonice Berardinelli e do professor Celso Cunha, ambos bem conhecidos em Portugal. Paro por aqui.

Imagino que esteja e seja atento à literatura portuguesa. Há algum(s) autor(es) que aprecie em particular? E porquê? 

Fui crítico atuante durante anos em revistas e jornais brasileiros e estrangeiros. Passei por problemas sérios e ainda os padeço. Tudo isso se encontra registrado. Mas desde que cumpri os setenta anos, tenho evitado dar minha opinião crítica e pessoal sobre os autores das novas gerações. Posso escrever “orelhas” de livros, ou prefácios. Textos de amizade. Não sinto que tenha o gosto apurado para apreciar as novas lideranças e conquistas em literatura. Meus ensaios estão cada vez mais teóricos e tratam de grandes figuras do passado. É o caso de Genealogia da ferocidade (Guimarães Rosa) e Fisiologia da composição (Graciliano e Machado de Assis).

Apesar de não estar ainda publicado cá, se fizermos uma busca na internet encontramos poesia escrita por si. Fixei-me nalguns versos do poema “Sim” que dizem /Cata-se a Vida a cada dia./ Ela é a cada dia. É./ Não me sacrifico./ Inquieto-me./ 

Queria aproveitar a boleia destas palavras para lhe perguntar o que realmente o inquieta nos dias de hoje? 

O poema em questão é um Sim à vida, que escrevi a pedido de um jovem poeta para uma antologia de textos que aborda a terrível questão da Aids. Quando a realidade me atropela, eu recorro à literatura ou às artes. Tento não misturar, em literatura, as pequenas misérias do dia a dia com as grandes questões humanas.

Sabendo que já esteve em Portugal, uma das vezes precisamente na Casa da América Latina para assistir a uma conferência sobre Jorge Luis Borges, queria perguntar-lhe, em jeito de despedida, se tenciona voltar e o que gostaria de rever no nosso país. 

Sempre estive aqui por Portugal e, por não ter sido aceito na Casa do Brasil, fui acolhido na Casa de Portugal, na Cidade Universitária de Paris, no ano em que foi inaugurada, 1967. O diretor de então me recebeu excepcionalmente, por dois meses, e depois me transferi para a Casa do México, onde permaneci até a defesa da tese de doutorado, em abril de 1968. Na maioria das vezes, estive aqui em Portugal anônimo e em férias (fui com a querida colega Fernandinha à conferência sobre Borges e passei evidentemente despercebido). Só uma vez procurei um editor. Não tive êxito. Há poucos anos é que tenho agente literária, Lúcia Riff. Passo os dias em companhia das boas e bons amigos que tenho por aqui e que recebo e recebi no Brasil e no estrangeiro, quando lá estive. Sempre muitíssimo bem recebido por elas e eles e espero continuar a ser, como o fui pelo primeiro grande escritor português que conheci pessoalmente, Jorge de Senna.


Entrevista realiazada por Raquel Marinho

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