Eduarda Barata: “Eu gosto da literatura latino-americana porque consegue equacionar a violência e a doçura na mesma frase”

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Estamos aqui para conversar sobre o “Puro Conto”, que é esta iniciativa da Casa da América Latina de 14 a 22 de outubro dedicada ao conto latino-americano. É um evento multifacetado, e a sua ideia e do Bernardo Vilhena, coordenador cultural da Casa da América Latina, não será falar-se apenas do conto, mas fazer uma reflexão a vários níveis tendo por base este género literário. Quer dizer-nos o que se pode esperar?

O “Puro Conto” é, antes de mais, inspirado numa revista paradigmática da literatura argentina. Nós tomámos esse nome de empréstimo, exatamente porque esta revista também celebra os novos talentos do conto, homenageando também os mestres do conto. Pretendemos trazer também aqui para Portugal, até porque é um festival que ainda não existe, um festival consagrando só este género literário que é o género literário por excelência da América Latina. Pretendemos trazer, dizia eu, esta partilha do conto, a forma como o conto é tratado na América Latina, como é explorado, como é trabalhado. A nossa ideia, minha e do Bernardo Vilhena, era exatamente fazer este diálogo interartístico, interdisciplinar entre os vários formatos do conto. A título de exemplo, vamos homenagear Augusto Monterroso, um escritor guatemalteco e hondurenho que é o pai do micro conto, com leituras encenadas dos vários micro contos deste autor a pontuar diferentes momentos do festival. Teremos também uma festa de música a celebrar Julio Cortázar, outro dos grandes mestres do conto…

Com o bandeonista Martin Sued, argentino a viver em Portugal, e o ator Chico Diaz.

Exatamente! Será um diálogo artístico musical entre as “Histórias De Cronópios e De Famas” e o diálogo musical de Martin Sued, um momento experimental, artístico, que pretende também abrir este festival para a multiplicidade de diálogos que haverá.

O “Puro Conto” tem como tema principal as viagens.

Sim, o tema das viagens vai atravessar todo o festival. Começamos com uma viagem entre a música e a literatura, atravessamos o feminismo, e depois vamos desembocar também no que chamámos  “Momentos do Café”. Eu e o Bernardo Vilhena idealizámos esta ideia de o café estar associado à escrita mas também associado aos contistas. O elemento do café está muito presente em muitos contos que nós vamos, aliás, encenar e ler em voz alta. Vai ser um verdadeiro momento de partilha, vamos resgatar os contos do papel e torná-los vivos, e fazer leituras vivas do conto que é isso que se pretende.

Estas leituras encenadas são transversais aos vários dias.   

Sim, serão transversais aos vários dias. Teremos o Augusto Monterroso sempre presente, até porque foi a comemoração do centenário o ano passado, é um autor paradigmático que vamos homenagear muito, e teremos também excertos de contos de Cláudia Lucas Chéu, Nara Vidal, Pedro Crenes Castro, Julio Cortázar, Gabriel Garcia Marquez. Teremos vários contos, não os contos inteiros mas pequenos excertos para depois também não se tornar aborrecido. Queremos que seja algo animado, uma festa, uma celebração do conto. E por isso é que nós pensámos em trazer esta temática das viagens, para dar muito dinamismo, muita vida aqui à Casa da América Latina.

Abrimos, então, com esta proposta de cruzar a música com a literatura e um grande escritor latino-americano, o Julio Cortázar, logo na sexta-feira, depois há a homenagem a Augusto Monterroso, e depois segue com outras propostas.

Sim. Depois haverá várias mesas de debate e a primeira será logo no sábado com uma mesa a que chamámos “Cartografias do Feminismo”. Teremos a escritora Nara Vidal, do Brasil, e Cláudia Lucas Chéu, de Portugal, que vão dialogar sobre as representações, não só das escritoras no conto como também das personagens femininas, do tratamento das personagens femininas no conto. Será um diálogo das cartografias. Depois, no sábado seguinte, no dia 22, teremos uma mesa dedicada às viagens da edição e da tradução, a forma como é, por vezes, tão complexo traduzir autores latino-americanos em Portugal. Vamos tentar perceber de que forma é que nós poderemos trazer mais visibilidade a esses autores, porque o conto não é lido em Portugal, não é muito publicado em Portugal.

E não é publicado porque não será lido ou não será lido porque não é publicado?

Creio que será aqui um misto. Não existe esse hábito do conto, não como existe na América Latina. Há muitos festivais, muitas revistas, muitos jornais que se dedicam ao conto na América Latina, e aqui em Portugal não existe quase nada. Nós temos como propósito mudar isso, mudar esse panorama para trazer o conto como género de excelência que de facto é.

Depois também temos o tema do café, a Eduarda já o referiu. São três propostas de temas relacionados com o café.

Sim, três temas. “Café como um Encontro”, que irá suceder-se às conversas das cartografias do feminismo com a Nara Vidal e com a Cláudia Lucas Ché, e a ideia pretende ser um ambiente acolhedor que envolve público e autores num momento de partilha, num momento íntimo, se é que se pode dizer assim, em que partilhamos à volta de uma chávena de café, à volta de uma mesa de café, conversamos sobre as maravilhas da palavra escrita no formato do conto. E a ideia do encontro com o café aí será relativamente ao tema das mulheres, do feminismo. O “Café como Resistência” é a ideia do espaço dos cafés como espaço de resistência, de debate político, de debate cívico, o ambiente de tertúlia, e que nos levou também a trazer novas palavras ao mundo. Estou a lembrar-me, por exemplo, daquele café paradigmático, o “Havana” na Cidade do México, no qual se juntavam tantos escritores, tantos contistas, tantos poetas, tantos artistas. É esta ideia que pretendemos trazer: as várias realidades do conto, as várias realidades alternativas do conto, que não se cinjam só à palavra escrita e à palavra que nós vemos publicada, mas a tudo aquilo que envolve o universo do conto, desde as tertúlias ao ativismo, às conversas, à música.

Três temas transversais ao café como presença neste festival, o café como um encontro, o café como resistência, e há um terceiro que será as viagens do café?

Exatamente! Com as “Viagens do Café” pretendemos cruzar a ideia da “grand tour”, daquela grande viagem do turismo que se fazia no século XIX em que se apanhava um barco, um comboio, muitos autores fizeram-no. Recuperar esta ideia da grande viagem associada às viagens do café. Como nós sabemos, Portugal é um país onde se bebe muito café, e é uma relação que nós estabelecemos com a América Latina que é produtora de café, onde também se bebe muito café e se celebra o café. Por isso, vamos celebrar também esta ideia das viagens e do café como café, ingrediente principal que leva ao conto e o conto que inspira o café. Será, esperamos, uma interligação muito interessante.

Temos também, nos dois sábados de manhã deste festival, dia 15 e dia 22, uma oficina de escrita de contos. O que é?

A oficina de escrita será centrada nos micro contos. É um atelier de escrita criativa mas para trabalhar um micro conto, porque é um género que ainda estamos a descobrir aqui em Portugal. Será ministrado por Nara Vidal, que é uma excelente contista. Ela ofereceu-se e nós vamos convidá-la a ensinar-nos os vários truques, os vários estratagemas para escrever um bom micro conto. Isto porque o micro conto é a condensação máxima da forma mas depois obedece a uma série de princípios estilísticos e simbólicos que é muito difícil e é muito diferente de conseguir em relação ao conto que não é micro. O micro conto em si é um núcleo de temas, de motivos, de símbolos, que serão trabalhados nestas oficinas. Convidamos todos a vir a estas oficinas e também às conferências para descobrirem estes mil mundos que tem o conto, por mais pequenino que seja.

muitas razões para visitar a Casa da América Latina entre os dias 14 e 22 de outubro. Quer dizer-nos, em sua opinião, por que razão as pessoas devem vir?

Claro que sim, quero dizer muitas coisas! Quero frisar que é muito importante celebrarmos o conto como género de excelência, mas também como forma de nos aproximarmos daquele que é o domínio da palavra e o domínio da leitura. Isto porque o conto, contrariamente ao romance e às narrativas mais extensas, por ser uma forma narrativa mais breve, dá-nos um conhecimento muito mais condensado daquilo que são os temas e os símbolos da literatura, e é muito mais potente no sentido simbólico, no sentido temático daquilo que é ilustrado na literatura. É muito diferente ler um conto de ler uma novela, ou um romance, ou uma peça de teatro. Porque o conto é quase um laboratório de experimentação da palavra e das ideias, que depois até pode vir a ser trabalhado no romance mas que no conto tem uma forma muito mais condensada, muito mais concentrada, muito mais potente. E esta troca, esta partilha que a Casa da América Latina fará nestes dias do “Puro Conto”, está relacionada com esta ideia da pureza, não porque é cristalino, nada disso, mas porque é concentrado, condensado numa forma forte, impactante, que nos permite descobrir outras realidades, outros destinos, outras paragens, tendo também conhecimento de que a nossa circunstância não está limitada às palavras que conhecemos, teremos de descobrir outras, de outros horizontes, de outras latitudes. É isso que eu friso e que gosto de sublinhar e destacar: venham à Casa da América Latina para conhecer o conto porque há muito muito muito para descobrir!

Porque é que gosta da literatura latino-americana?

Eu gosto da literatura latino-americana porque consegue equacionar a violência e a doçura na mesma frase, sem criar incompatibilidades. Eu comecei por estudar a literatura alemã e a literatura inglesa, e têm uma outra herança, uma herança greco-latina na história da literatura e tudo o mais. Na literatura latino-americana a violência, o passado sangrento, o presente sangrento, o futuro por desvendar, toda a questão do labirinto, a história labiríntica de todos os países que fazem parte da América Latina, traz-nos uma noção muito mais agressiva do que é ser-se humano, e porque é mais agressiva é mais verdadeira, mais próxima daquilo que são também os labirintos do coração, de certa maneira. Mas depois, ao mesmo tempo, há uma doçura, um encantamento solar na literatura latino-americana que eu não encontro na literatura portuguesa, que eu não encontro na literatura francesa, espanhola, alemã. Não encontro essa ligação entre aquilo que é o mais tenebroso, o mais obscuro, o mais sangrento, e simultaneamente uma celebração, um encantamento da vida como não consigo testemunhar. Se calhar é defeito meu, mas acho que não, porque existe muito esta noção daquilo que é agridoce da vida, e o que é agridoce da vida é muito celebrado na literatura latino-americana.

E também no conto?

E também no conto. Aliás, um dos contos mais famosos de Augusto Monterroso tem muito essa ideia condensada da violência, num micro conto que só tem 7 palavras e só precisa de 7 palavras para explicar toda a história política, todo o problema da identidade de quem narra o micro conto. Não quero aqui revelar muito porque a ideia é que venham conhecer (risos), mas são 7 palavras que já deram origem a grandes reflexões sobre o poder dos diálogos e o impacto da violência na cultura latino-americana, e é um micro conto que originou teses de doutoramento. Imaginem, 7 palavras que originam teses de doutoramento é qualquer coisa que está fora dos nossos limites.

O conto traz-nos outra forma de configurar o mundo fora daquilo a que estamos habituados, fora das convenções, fora das normas, e eu gosto muito deste sítio de desconforto do conto latino-americano. Coloca-me num sítio de inquietação e desconforto, como se eu estivesse perante um abismo e tivesse de pensar “e agora como é que eu faço?”, tenho aqui um problema, uma ideia que não consigo resolver, mas há uma metáfora, um símbolo neste conto que eu estou a ler que me vai ajudar a traduzir esta realidade. É um pouco metafisico o que eu estou a dizer mas tenho esta experiência a ler contos e gostava muito de a partilhar convosco.

Consulte mais sobre o Festival Puro Conto!


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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