Nara Vidal: “Eu gostaria que mais pessoas conhecessem o Shakespeare sem tanta resistência”

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Entrevista com a escritora brasileira Nara Vidal, no âmbito das Residências Literárias de Escrita da Fundação D. Luís I, onde residiu até meados de dezembro de 2021.


Nara Vidal, nasceu na cidade mineira de Guarani, formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. Autora de vários livros infanto-juvenis e de contos. Premiada com o Prémio Oceanos, e agora está em Portugal a fazer uma residência. Como é que isto aconteceu?

Esta residência da Fundação Luís I aconteceu através dum convite. Fui convidada pelo Professor Salvato e pela Dra. Filipa Melo para ficar aqui em Cascais durante 2 meses trabalhando num projeto da minha escolha, e isso por si já é uma maravilha. Porque a vantagem desta residência, que é diferente de tantas outras, é que não tem que ter especificamente um projeto fechado para ser apresentado no final. Isso é muito bom para uma pessoa que cria porque é um estímulo muito grande, você está sempre rodeado de estímulos criativos, ou seja, aquela falta de pressão digamos assim. Você pode ter a liberdade de ir ao museu, de ir ao teatro, de ir ao cinema, de ver a cidade, e escrevemos sem escrever muitas vezes.

Muitas vezes escreve sem escrever, que é uma ideia interessante…

Sim, estamos sempre a escrever. Então, qualquer coisa pode entrar num livro, estou sempre com essa atenção. Portanto, a residência veio a partir dum convite.

E, como a Nara estava a dizer, não há então o objetivo final de, com esta residência, apresentar um trabalho. Mas, não havendo esse objetivo ou essa obrigatoriedade, aconteceu alguma coisa? Escreveu alguma coisa?

Sim! Exatamente por não ter uma obrigatoriedade as coisas andaram bem nesse sentido. Eu digo que não há uma obrigatoriedade mas existe, claro, um compromisso de eu me empenhar a fazer o que a proposta por si define. Ou seja, eu tenho de estar aqui a trabalhar, eu tenho um espaço incrível para trabalhar, um teto todo meu, e isso é um enorme privilégio. Claro que eu vou criar, claro que eu vou fazer o meu trabalho de escrita. Mas, por exemplo, eu sei de outras residências em que o autor precisa de no final entregar um livro, entregar um projeto de um livro já bastante maduro, e a minha proposta aqui foi exatamente dar corpo a um projeto que eu já tinha começado na Inglaterra, que é um livro sobre personagens femininas do Shakespeare, que são sempre as personagens mais interessantes na peça, são as personagens mais inteligentes, mais complexas. Então, é um assunto que por si só já me cativa bastante, eu gostaria muito de continuar isso aqui. E eu consegui fazer este projeto, consegui não só dar uma estrutura mais clara para este projeto como consegui também desenvolver algumas dessas personagens, consegui investigar, pesquisar um pouco mais a fundo sobre algumas delas. Estava ocupada com Cleópatra, Lady MacBeth, enfim, tudo isso durante estes meses. Mas, uma outra coisa que também fiz, que era a proposta que tinha para mim mesma, era exatamente tentar refinar um romance que vai sair em 2022, com a editora Todavia, no Brasil. Este romance já estava escrito, já estava com editor, mas tinha vários aspetos no romance que ainda precisavam de ser refinados e reorganizados, acabei por acrescentar algumas coisas e agora preciso entregá-lo, porque se não não tem fim, não é? (risos).

A revisão pode ser eterna…

É, não tem fim! E depois estou sempre a mandar documentos com o título “fim” e depois “finalíssimo”, “final mesmo”, não tem fim. Ou seja, agora já foi e começámos entretanto o processo de edição.

Este interesse pelo Shakespeare já vem de há muitos anos, pelo que julgo saber, e foi, aliás e até, o que a motivou a sair do Brasil para a Inglaterra, certo?

Exatamente. O Shakespeare foi mesmo o motivo. Eu estive na Faculdade de Letras do Rio de Janeiro, e a minha especialização foi em inglês/português, literatura de língua inglesa, e acabei por me interessar muito por Shakespeare. Naquela época, eram sonetos que me interessavam mais, mas eu tive uma professora que serviu como divisora de águas na minha vida, porque ela leu com a turma MacBeth e eu não tinha lido essa peça ainda. Já conhecia algumas peças do Shakespeare mas não me tinha aprofundado numa peça dele como aconteceu. Eu acho que tinha uns 21 ou 22 anos, e aquilo abriu um outro universo para mim de facto, e eu comecei a interessar-me muito pelas peças do Shakespeare e por uma coisa que realmente me interesso muito, que são as pessoas, o humano naquelas personagens. Gosto muito de psicanálise, então tudo tem sempre uma ligação de uma coisa com a outra, a riqueza do humano interessa-me muito, e isso temos em abundância no Shakespeare.

A condição humana.

Exatamente! Harold Bloom escreveu o livro “Shakespeare: A Invenção do Humano”, um livro muito conhecido dele. Ele escreveu esse livro que desenvolve essa proposta, essa questão das personagens de Shakespeare como nós próprios, e é uma coisa que não tem fim, é infinito, e tem sempre possibilidades de interpretação, sempre possibilidades de olhar para aquelas personagens de formas novas. É o que sempre acontece comigo, sempre que leio uma peça que acho que já conheço, tem ali alguma coisa que não tinha pensado antes. É engraçado, porque isso aconteceu-me ontem. Eu estava a escrever sobre Lady MacBeth e de repente MacBeth é também uma peça sobre deslealdade porque, as pessoas às vezes não pensam muito nisso, mas pensar na honestidade, na integridade da Lady MacBeth, porque ela é sempre vista como uma vilã, ponto final, muito reduzida a isso, mas na verdade é uma personagem que tinha uma integridade, uma lealdade, aquela proposta do regicídio, de matar o rei, e o marido, e o marido é desleal com ela porque ele sai daquele caminho e deixa-a sozinha com aquilo. Eu acho interessante pensar nisso. Eu dou cursos sobre Shakespeare e coloco sempre estas propostas. Eu acho muito interessante pensar nisso, não tem fim.

Esse trabalho de estudo sobre as personagens femininas de Shakespeare vai resultar num livro depois?

Sim, estou a escrever um livro sobre isso, é o que mais tenho feito aqui na residência, e é um livro de ensaios. Mas eu digo isso com uma certa hesitação. Porquê? Porque não é um ensaio académico. Já existe muita coisa sobre isso, muita gente já falou sobre isso, essa não é a minha proposta. A minha proposta, exatamente como eu faço tudo nos meus cursos, é tentar popularizar um pouco as obras do Shakespeare. Isso não significa que eu tire a profundidade da questão, mas eu gosto de simplificar porque eu gostaria que mais pessoas conhecessem o Shakespeare sem tanta resistência.

Porquê Nara? Porque é que o Shakespeare deveria ser conhecido por mais pessoas?

Precisamente pela questão de que todos nós estamos lá, o tempo inteiro, a cada etapa da vida. É uma releitura constante, uma riqueza. Para mim é um dos autores que é incontornável, para mim não existe uma coisa tão boa (risos). Mas isso é um exagero de quem realmente ama Shakespeare. Mas o livro sai no ano que vem. Tenho dois projetos para o ano que vem: um romance com a editora Todavia, e este livro de ensaios com uma editora mineira que tem crescido muito, uma editora incrível chamada Relicário. E a Relicário vai fazer esse projeto que na verdade não é apenas um livro, também vai ter um curso, teremos entrevistas com pessoas que gostam de Shakespeare, vários atores e atrizes vão falar sobre as personagens. É um projeto muito interessante que me vai levar muito tempo mas é um projeto rico, um projeto multimédia.

E o romance o que é?

O romance segue um pouco mais o meu projeto literário, é um romance com um tema mais duro. Vou falar de violência doméstica, violência entre mãe e filha. É um livro que me custou muito escrever, tem uma carga complicada, mas estou satisfeita com o final. Agora começamos o processo de edição e deve sair no primeiro semestre de 2022, não sei exatamente quando.

Mas é ficção?

É ficção.

E porquê esse tema?

Porque esse tema, se formos pensar no que escrevi até hoje, livro de contos, o primeiro de 2016, “A Loucura dos Outros”, depois “Sorte” de 2018, e agora esse que é um livro de contos. Eles seguem algo em comum, têm uma interseção entre eles que é exatamente a questão da violência contra a mulher. Não tem nada de político, acho isso absurdo, mas se servir para algum debate, se servir para alguma reflexão, melhor ainda, mas não é de todo a minha intenção fazer um panfleto com literatura, eu acho que uma coisa não tem nada a ver com outra. Mas eu acho que consigo identificar um ponto em comum: esses livros acabam por falar muito sobre essa violência, o corpo da mulher como um território de violência e exploração constante, e é um tema que me interessa de facto. Escrevo muito sobre isso, escrevo ensaios e revistas brasileiras sobre esses temas, é uma coisa que me interessa muito.

Para finalizar, a Nara, entre os muitos projetos que abarca, tem também uma revista. Quer falar-nos sobre isso?

Sim, a Revista Capitolina. Essa revista foi uma ideia que eu tive durante a pandemia para me ocupar com coisas que nada tinham a ver com a pandemia, porque já não aguentava mais. Foi um momento muito complicado, de muita ansiedade, parei de dormir, enfim. Então ocupei-me a começar uma edição dessa revista, e teve uma aceitação incrível. Vários escritores que muito admiro quiseram fazer parte e contribuíram com textos e continuam contribuindo. Agora parei com esse projeto para me dedicar à residência, mas em janeiro já consigo organizar a próxima edição que vai ser a 14ª edição, se não me engano, e é um projeto de puro prazer, não tenho nada a não ser isso.

É uma revista literária.

Uma revista literária que tem espaço para tudo. Tem espaço para trechos de romances, tem espaço para poemas, e tem espaço claro para contos, que é uma coisa que na América Latina é muito forte, é uma tradição nossa essa questão dos contos. Eu gosto muito quando publicam contos porque temos uma tradição muito grande na América Latina em relação a isso, como vocês aqui em Portugal com a poesia. Eu acho que a Capitolina é uma maravilha, é uma coisa que dá só prazer, e vamos ver se continua. Basta eu ter disposição, boa vontade, tempo, porque precisa de tempo para editar, mas eu gosto muito, é um prazer.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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