Carolina Espinoza : “Precisamos de falar da nossa história”

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A Casa da América Latina entrevistou a realizadora do documentário “El Tren Popular de la Cultura”, exibido no passado mês de abril, numa iniciativa organizada em conjunto com a Embaixada do Chile no Largo Café Estúdio.

Carolina Espinoza é também antropóloga, e jornalista correspondente em Espanha há já 16 anos (na Radio Cooperativa). “El Tren Popular de la Cultura” constitui o seu último trabalho, retratando “uma experiência desconhecida da história do Chile que volta a ter significância, 45 anos depois, quando se fala de cultura colaborativa e cultura comum na América Latina e na Europa”.

O que nos conta o documentário “El Tren Popular de la Cultura”?

“El Tren Popular de la Cultura” é um filme documental que conta a história de a iniciativa do governo do presidente chileno Salvador Allende, de levar a cultura a populações que a ela não tinham acesso. O “comboio cultural” faz parte da medida número 40 do seu programa de governo, que tinha como finalidade a criação do Instituto Nacional das Artes e da Cultura e de escolas de Arte em todas as províncias do país. A história do comboio procura estabelecer vínculos com algumas iniciativas educativas e culturais da Segunda República em Espanha, tais como as Misiones Pedagógicas, o Teatro del Pueblo, o Teatro de la Barraca, ou outras experiências anteriores, como os comboios de agitação da Revolução Russa.

Como surgiu a ideia de documentar esta história?

Surge da minha experiência de vida em Espanha, onde a distancia, física e emocional, me permitiu redescobrir experiências da Unidade Popular pioneiras no mundo, e enterradas pelo esquecimento e pelo grande trauma do culminar dos mil dias do governo de Salvador Allende. Tive acesso a testemunhas que viveram na primeira pessoa esta experiência, pessoas maravilhosas como Eulogio Dávalos, Oscar Soto, Jorge Tapia Valdés… Todo um privilégio. Tenho sido afortunada, e o documentário foi uma forma de devolver aos chilenos e aos espanhóis um pouco deste privilégio, desvendando uma experiência que para muitos é desconhecida.

Que limitações se impuseram às filmagens e pesquisa?

Sem dúvida, destaco a limitação económica. Porém, apesar da crise económica que Espanha enfrentava no momento em que comecei o projeto, não abandonei a ideia e segui em frente, criando redes de difusão em busca de fundos para financiar o documentário.

Criamos um crowdfunding em Espanha, uma via para complementar as ajudas à cultura, que neste momento, com a crise, se cortaram ou se reduziram ao mínimo. Foi maravilhoso. Tínhamos 40 dias para juntar quase 5 mil euros e conseguimos. Porém, o mais emocionante foi receber contribuições de gente que não conhecia, de 12 países diferentes. As pessoas acreditaram no nosso projeto, e isso emocionou-nos como equipa.

Qual foi o processo adotado para encontrar os testemunhos presentes no documentário?

Primeiro elaboramos um trabalho muito aprofundado de investigação histórica. Recorremos sobretudo à imprensa local, aos jornais das cidades por onde passou o comboio há 45 anos e deparamo-nos com um tesouro. Posteriormente, contrapusemos esta documentação com as entrevistas às pessoas que viajaram no comboio. Quase poderia dizer que todo o processo demorou uns quatro anos, desde o momento em que nos surgiu a ideia até falarmos com o último dos entrevistados.

Sente que o seu trabalho foi o de jornalista ou separa estes dois mundos?

Não. De facto, foi para mim uma vantagem ser jornalista na hora de me lançar à elaboração de um documentário, por ter mais desenvoltura com as entrevistas e com a investigação. Talvez o maior desafio que separa o trabalho de um jornalista e de um cineasta seja aprender a escutar… e que o ponto de vista em que se conta uma história tem de ser mais pausado, tem os seus próprios ritmos e é mais artístico. Isto não tem nada a ver com o jornalismo. É o selo pessoal de um cineasta, e o meu selo pessoal, neste caso, como jornalista e realizadora, é a busca pela memória. É retirar dos elos das histórias atuais para redescobrir o passado.

O documentário procura ser um cruzamento de histórias pessoais com a história do país, a partir da reconstrução de um passado esquecido?

Sim, é um cruzar de histórias. Pareceu-me interessante fazer esse cruzamento, que regista uma experiência semelhante às Missões Pedagógicas da Segunda República Espanhola, que, inclusivamente, não tiveram o reconhecimento merecido no país. Isto porque, lamentavelmente, tanto em Espanha como no Chile, interpretam o exercício de falar sobre estes temas como um “sarar de feridas” e isso é falso.

Precisamos de falar da nossa história, entende-la e descartarmos opiniões que tais como: “Não vejo isto porque é um filme político”. Tudo é política, isso já o sabemos, portanto há que afastar-nos dessa polarização, que também existe em Espanha – e já passaram quase 80 anos desde a Guerra Civil. O problema não é estarmos polarizados, o problema é descobrir e ter claro a quem interessa que estejamos polarizados. O discurso do “reviver o passado” está derrotado. As pessoas já não acreditam nele. Repetiram-no ambas as direitas no Chile e em Espanha, que no final caíram por sua própria conta. A prova mais fiável disso mesmo é este ano ter sido muito frutífero no cinema de ficção e documentário, e a maioria dos argumentos foram inspirados pela memória do nosso país.

Que diferenças aponta em relação a outros dos seus documentários anteriores, como “La alegría de los otros” (2009) e “La salida del laberinto” (2013)?

São trabalhos muito distintos, “La alegría de los otros” e “La salida del laberinto” são trabalhos mais jornalísticos e muito didáticos. No primeiro faz-se um registo de como se viveu desde o exílio chileno a jornada do Plebiscito de 5 de outubro de 1988, que permitiu que Pinochet deixasse a presidência do governo. O que pretendíamos nesse documentário era ver como viveram “os outros”, os que não podiam voltar ao Chile por medo. Foi muito interessante e creio que hoje tem um valor histórico muito importante, e atreveria-me a dizer que foi um dos primeiros trabalhos que colocou o foco nesse feito histórico e no exílio, ao qual os chilenos devem muito.

“La salida el laberinto” procura encontrar explicações para uma crise em Espanha que podia ter sido evitada, e que, porém, o absurdo da ambição e da corrupção arrastou para a ruína todo um país. É mentira dizer que a crise em Espanha terminou. Ainda existem famílias na rua que perderam tudo, apesar de não aparecerem nos noticiários.

Foto da notícia: Xavi Olmos

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