Entrevista a Stefan Lechner sobre ‘EL REY’

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Quando viajou pela primeira vez para a América Latina?

A minha primeira viagem para a América Latina foi para Costa Rica e Nicarágua, em 2001. Na Áustria temos de fazer um serviço militar, mas alternativamente podemos fazer um serviço social, que dura mais tempo – em vez de 6 a 8 meses no serviço militar, 14 meses no serviço social. Eu achei que seria interessante escolher um serviço social, mas mais interessante ainda se fosse na América Latina, que sempre quis conhecer. Teria de ser um projecto certificado pelo Ministério dos Assuntos Exteriores. No caso optei por um projecto de um austríaco e fui para a Costa Rica sem saber falar espanhol. Fiz um curso na Nicarágua, porque era mais barato. Fiquei impressionado com a Nicarágua, que achei linda, uma grande surpresa, cheia de cultura, de música. Depois trabalhei 14 meses na Costa Rica, com crianças de rua que vivem problemas, com drogas ou outros. Foi neste trabalho que percebi a importância da música para aquelas pessoas. No mundo inteiro a música tem um papel relevante, mas achei particularmente forte a importância que lhe é dada pelas pessoas pobres daquele país. Passei muito tempo com famílias e crianças pobres, frequentemente comunicávamos através da música.

Já tinha tido experiência como músico na Áustria, nessa altura?

Sim, tinha cantado numa banda de gospel, como vocalista. Ganhei dinheiro na Áustria tocando em casamentos e festas, tocava rock dos anos 80 e 90. Mas nesta primeira viagem à América Latina foi quando comecei a ouvir muita música daquela região. A ideia para o projecto EL REY começou em 2001.

O que mudou, com a experiência de 2001, na forma como via a realidade social da América Latina?

Deu-se uma grande mudança em mim nessa altura, a ponto de ter decidido mudar de profissão: trabalhei em comércio justo. A minha experiência na Costa Rica, Nicarágua e, depois, Guatemala e Honduras mudou a minha forma de ver o mundo. Quando voltei da Costa Rica à Áustria, onde nasci e onde há uma classe média forte e muito menos pobreza, perguntei-me o que poderia fazer para melhorar as condições de vida dos pobres da América Latina. Trabalhei durante quatro anos (de 2002 a 2006) em comércio justo de café, bananas e outros produtos que vinham da América Latina para a Áustria. Pareceu-me uma boa forma de valorizar o trabalho daqueles produtores.

Então foi em 2006 que a ideia para o projecto EL REY arrancou?

Sim. Tudo começou com a escolha do autocarro escolar como veículo para a viagem. Quando eu estive na América Central com o Adi [Hirzer], as nossas viagens aconteceram sempre nestes velhos autocarros escolares, o verdadeiro transporte público naqueles países. Foi aí que pensámos “estes autocarros são os reyes de la carretera“, quase toda a gente viaja neles. Mas não só: também as galinhas – até lhe chamam chicken buses.

Daí o principal tema da banda sonora do EL REY ser “El Rey de la carretera”.

Sim. Era claro para nós que a música tinha um papel e um poder impressionantes naquela região. Depois pensámos: como vamos viajar? Bom, teremos de dormir no nosso veículo, senão ficará demasiado caro para nós. Então só pode ser num “rey de la carretera”. Então começámos a procurar autocarros escolares no Ebay e encontrámos este.

Que vos deu muito que fazer: avarias…

Muito, muito trabalho, com avarias e burocracia. Quase não conseguimos. Perdemos dois meses no início, nos Estados Unidos, com a burocracia. Comprámos o autocarro, fizemos um contrato de compra, mas quando fomos fazer o registo dele não conseguimos nunca ter os pontos necessários para obter o registo. Exigiam-nos um ano de visa no passaporte, mas quando saíamos do aeroporto já tínhamos menos de um ano. Os Estados Unidos são muito burocráticos, é uma coisa que percebemos. Mas parece que está mais assim desde o 11 de Setembro. Em Nova Iorque não conseguimos ter um registo oficial do autocarro, tivemos de ir a Virgínia e voltar a Nova Iorque. Depois fizemos o processo todo, mais uma vez, em San Diego, onde em duas horas foi tudo feito. Isto para dizer que cada Estado tem leis diferentes, como se fosse outro país.

Quanto tempo tiveram para a viagem, depois destas aventuras burocráticas?

Uns 10 meses. Tivemos também de comprar equipamentos musicais, porque tínhamos no início essencialmente intenção de captar áudio. Mas depois fui percebendo que a documentação visual era talvez mais interessante. O documentário EL REY, que apresentaremos em breve, foi um grande trabalho porque não foi pensado como documentário desde o início.

Não havia um conceito.

Exacto. Decidimos ver o que aconteceria. Era a nossa primeira viagem ao México. Sem telemóvel, sem internet, queríamos falar com as pessoas, conhecer músicos e canções daquelas zonas. Queríamos encontrar as pessoas no seu dia-a-dia, de forma descontraída, sem planos detalhados.

O trabalho de edição dessas imagens captadas deve ter sido particularmente difícil.

Acho que foi o projecto mais complicado da minha vida. Quando terminou a viagem, voltei sozinho com mais de 100 horas de documentação. Tinha gravações de coisas completamente diferentes: desde pessoas que tocavam grunge mexicano até zapatistas das montanhas que utilizavam ritmos maias e línguas como o tzotzil, coisas com um ritmo e uma melodia complicados para o nosso ouvido europeu. De coisas como Nirvana mexicano a outras que nunca tinha ouvido na vida, houve de tudo.

Isso expandiu os seus horizontes como músico?

Sim, definitivamente. Uma das coisas que faremos nesta sexta-feira [na inauguração da exposição EL REY, às 18h30 na CAL, com entrada livre], eu e um amigo, o Fernando, será tocar a la mariachi, caminhando de fotografia em fotografia. Cantaremos músicas que escrevemos durante a viagem: em vez de escrevermos um diário, por vezes compusemos canções. Escrevemos uma música, de que falámos há pouco, sobre os autocarros escolares; outra sobre arroz y frijoles, arroz e feijão, que comemos tantas vezes. Fizemos outra sobre o gringo, por, apesar de não sermos norte-americanos, termos sido tratados desse modo. A minha maneira de escrever canções mudou durante a viagem: no início os ritmos eram europeus e norte-americanos, música também do meu país; depois começaram a entrar outros sons, como os da música Xusi xi Avon’ Ton (Que dice tu corazón), muito diferentes do que eu escrevia e compunha antes.

Uma alteração também nas sonoridades?

Há um músico que conhecemos na viagem, o Damian Martínez, que gravou para nós algumas vozes e sons muito peculiares. Utilizámos essas sonoridades nas nossas músicas.

A sua experiência no México fê-lo ultrapassar algum preconceito que tinha sobre o país?

Perguntavam-nos muito se não tínhamos medo de viajar e dormir num autocarro, tendo em conta que o México é conhecido pelos seus problemas de tráfico de drogas e criminalidade. Depois disseram-nos que tivemos sorte de não nos ter acontecido nada, mas não acho que tenha sido só sorte. O mais importante é a forma como se comunica com as pessoas. Comunicar com a música fez-nos conhecer pessoas rapidamente, abriu-nos portas. Achavam graça aos dois gringos que cantavam sobre os gringos. Se se viaja com humor, na América Latina, consegue-se reciprocidade na forma como se é tratado pelos locais. Diziam-nos: não vão por esta estrada, sigam antes aquela. Cuidaram bem de nós, conhecemos pessoas boas.

A América Latina é conhecida como a região do mundo cujas pessoas são mais felizes. Notaram isso?

O índice mais alto, mundialmente, é o da Costa Rica, onde vivi durante um ano e meio. Eles têm, de facto, uma forma descontraída de viver o dia-a-dia. Vivem a pura vida, como dizem. Há também coisas más na Costa Rica, claro, mas a omnipresença da música e da dança ajuda-os. Eu não sabia nada de salsa, cumbia e merengue, que aprendi lá, mas dois dias depois de chegar tive de dançar, o que foi um choque para mim. Depois comecei a gostar e senti a tal alegria.

Nota uma grande diferença entre o modo de viver dos latino-americanos e o dos portugueses?

Os portugueses são mais como os austríacos, em algumas coisas. Ainda passo muito tempo na Áustria, mas já vivo há sete anos em Portugal. O que noto é que em Portugal as pessoas precisam de mais tempo do que, por exemplo, os costa-riquenhos, para se abrirem aos desconhecidos. Mas acontece em Portugal uma coisa semelhante ao que vejo na Áustria: quando se considera alguém amigo, o sentimento é forte, é verdadeiramente uma amizade. Travar contacto fácil e rápido, como me aconteceu na América Latina, pode resultar em o sentimento depois desvanecer-se mais depressa. Outra coisa que noto em Lisboa e Viena é que as pessoas de ambas as cidades tendem a ser negativas, há um pessimismo em ambas as culturas e que se percebe na música. Eu agora documento o fado vadio, que adoro, e acho-o um mundo muito semelhante ao de um estilo musical de Viena. Há brincadeiras, claro, como as desgarradas no fado, mas a melancolia e a tristeza são mais frequentes. Na América Latina percebi mais uma atitude aberta e positiva.

Essa alegria quase constante dos latino-americanos é perceptível no documentário EL REY?

Não editei só momentos engraçados, porque entendi que havia mais do que isso na história do EL REY. Como não tinha um conceito em que me basear, podia ter feito vários filmes com as imagens que captei, mas pensei que a diversidade de experiências deveria estar presente no documentário. Por exemplo, nós temos uma música só com os palavrões que aprendemos. Quase tudo pode ser interpretado de duas maneiras, há dois sentidos em muito do que é dito. Mas também tivemos momentos complicados, como ver crianças a trabalharem. Fizemos uma música, chamada Guadalupe, sobre uma miúda que encontrámos a vender sapatos numa loja com uns dois metros quadrados. Perguntámo-nos como é que aquela menina conseguia sorrir daquele modo. Temos muita afinidade com qualquer tipo de projecto que ajude as crianças da América Latina. Essa é uma das razões por que trabalhei em ONGs.

Daí a alegria não ser suficiente para contar a história dos latino-americanos.

Exactamente. No documentário mostramos também um encontro que tivemos com os zapatistas, que têm uma mensagem política, coisa que interessa pouco no EL REY, um projecto de comunicação através da música. Uma coisa que vimos foi que as mensagens que as pessoas comunicam através da música tem muito a ver com a realidade que vivem. Os zapatistas, por exemplo, cantam sobre a sua luta. São as pessoas mais humildes que encontrei, na verdade.

Entretanto vocês voltaram ao México para mostrarem o documentário às pessoas que nele entram.

Foi este ano, em Fevereiro. Acho que foi o mais gratificante deste projecto. São pessoas que não têm e-mail nem telefone, pelo que eu sabia que tinha de gravar alguns DVDs e ir ter com eles, desta vez sem autocarro escolar. Foi uma experiência muito bonita. Na Cineteca Nacional, no Distrito Federal, gostaram muito. Fizeram duas sessões. Estava cheio, mesmo à chuva ficaram a ver, foi incrível. Gostaram muito da forma como a música estava apresentada. Foi muito emotivo. Há dois músicos, dois idosos, que filmei para o documentário e reencontrei nesta viagem. Quando lhes dei o DVD tive uma sensação incrível, com eles a quase chorarem de alegria, um a guardá-lo dentro da camisa, na zona do coração, o outro a colocá-lo numa espécie de cofre forte. Depois estivemos a ver o filme juntos, mas foi como se estivesse a vê-lo pela primeira vez com eles. Foi como o fechar de um círculo.

Tem perspectivas de voltar à América Latina, ou também esse círculo está fechado?

Tenho alguns amigos lá, no México, na Guatemala, na Nicarágua e na Costa Rica, por isso sei que não terá sido a última vez. Agora é mais fácil eles virem cá, também, mas sei que voltarei. O meu projecto actual é o do fado vadio, em Lisboa. Mas em seguida, quem sabe?

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