Alberto Manguel: “Eu tenho mais confiança na literatura do que na realidade. Muitas vezes a realidade desilude-me”

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A Casa da América Latina conversou com Alberto Manguel, escritor, tradutor e editor nascido na Argentina, que acaba de doar a sua biblioteca de 40 mil títulos à cidade de Lisboa. Uma entrevista que nos dá a conhecer melhor o homem por trás do leitor que, aos 16 anos, começou a ler para Jorge Luis Borges. Uma conversa longa onde Alberto Manguel nos deu também a conhecer a intenção de trazer para Lisboa o arquivo da poeta argentina Olga Orozco, cujo centenário do nascimento se celebra este ano.


Todos os dias, antes de tomar o pequeno-almoço, lê um canto de “A Divina Comédia”. Disse numa entrevista que é o seu yoga. Já leu hoje algum canto?

Sim, faço-o todos os dias. Esta manhã, por exemplo, tive a sorte de ler o segundo canto do purgatório. É um canto de que gosto particularmente porque é o encontro de Dante com um amigo seu, da sua juventude, o músico Casella e, quando chega a barca das almas à praia do purgatório, Dante vê o seu amigo e abraça-o e, claro, a alma não tem corpo, então, Dante abraça o ar. É uma cena que a mim me parece muito emocionante e faz-me sempre pensar no poder da amizade, na memória, onde as pessoas que amamos continuam vivas depois de terem saído desta terra.

Diz que ler um canto ou uma parte de um canto de “A Divina Comédia” de manhã é o seu yoga. Porquê o yoga?

É uma forma de meditação. Gosto da rotina e, desgraçadamente, estes últimos tempos não são tempos de rotina mas sim tempos de mudança, de adaptação às novas circunstâncias do mundo, à tragédia que estamos a viver todos em toda a parte. Então, acordar e encontrar-me com Dante e com a sua obra sonante, bela, poética, ajuda-me a pensar em coisas mais importantes que esta miséria do vírus, esta miséria da política mundial. Ajuda-me a concentrar nas coisas que são importantes.

Disse numa entrevista que esta consulta diária de “A Divina Comédia” lhe traz perguntas e não respostas. É também assim com uma biblioteca?

Eu acho que tudo o que é importante na vida nos ajuda a fazer perguntas melhores e não nos dá respostas. São os dogmas, os slogans políticos, as mentiras que dão respostas. Os políticos, no geral, tratam sempre de dizer o que temos de fazer e não dão razões. Em troca, a literatura, a arte, fazem perguntas, e as bibliotecas fazem perguntas, mostram-nos um espaço e dizem-nos “pode reconhecer aqui nestas estantes quem você é”. Há um questionamento da identidade e da responsabilidade face ao mundo que uma biblioteca põe sempre diante de nós.

Esta biblioteca que vem agora para Lisboa terá começado a ser criada quando o Alberto ainda era criança e escutava, ainda enquanto ouvinte, as histórias da sua ama checa. Recorda-se ainda dessas histórias?

Sim, claro. São as minhas primeiras memórias que me deram conhecimento do mundo. Porque eu era muito pequeno, vivi na embaixada em Telavive com a minha ama desde que tinha menos de 1 ano até aos 7 anos, e não tinha comunicação com o mundo, todo o meu mundo eram as quatro paredes da minha casa. E então, os contos que a minha ama me lia, e mais tarde, quando aprendi a ler os contos que ela lia para mim, davam-me imagens do mundo, contavam-me o mundo, contavam-me sobre a amizade, sobre o amor, sobre as viagens, sobre a morte, coisas que por ser criança eu não conhecia. E isso é algo que a literatura me continua a dar, que as bibliotecas me continuam a dar. Eu conheci Lisboa através dos meus livros, antes de vir a Lisboa. Eu conhecia a felicidade de ter um momento mágico como o que me ofereceu o senhor Fernando Medina, o Presidente da Câmara de Lisboa, com tanta generosidade, o lugar para a minha biblioteca, mas essa felicidade eu já a conhecera através, por exemplo, dos contos de fadas, quando a Fada Madrinha dá uma carruagem à Cinderela para ir ao baile. O senhor Medina fez-me lembrar essa carroça.

Um leitor é também um ouvinte de livros, como foi o Jorge Luis Borges na relação que teve consigo e como o Alberto era quando era criança? Um leitor é também uma pessoa que escuta histórias?

Vamos a ver, na sociedade do escrito – porque há que diferenciar, há sociedades da oralidade que funcionam muito bem – mas, na sociedade do escrito a palavra chega-nos de muitas maneiras, chega-nos pelos olhos, chega-nos pelos ouvidos, chega-nos também pelo tato, pelo contacto físico com o livro, com o ecrã, e outros sentidos também intervêm. Em criança, as histórias chegam-nos através da voz dos adultos, mas mais tarde, quando as lemos, essa voz ainda lá está. Eu quando leio, leio algumas coisas que recordo da minha infância com a voz da minha ama. Quando conheci Jorge Luís Borges, o processo de leitura foi distinto da leitura em voz alta que fazia a minha ama. Distinto porquê? Porque Borges não queria que lhe contassem a história, não queria que a interpretassem. Ele queria a máquina que reproduzia um texto palavra por palavra. Ele teria sido feliz com a leitura que podemos fazer agora em computadores, eletrónica, que pode transformar em voz um texto escrito. Muitos leitores que liam para Borges, passavam por esse processo de aprendizagem. Você pede-me que lhe leia um texto, eu leio com a minha interpretação, com os meus gestos, Borges não queria isso, queria uma leitura concisa, o mais neutra possível, porque o que ele queria era recordar o texto. Quase nunca eram textos novos, eram textos que ele amava, que recordava, mas queria ver se se lembrava exatamente do texto, e quase sempre se lembrava do texto palavra por palavra porque tinha uma memória extraordinária. E então, comentava esse texto, mas comentava em voz alta para ele próprio. Eu tive a sorte de presenciar esses comentários.

O Alberto diz neste livro “Uma História da Leitura” que Jorge Luis Borges, o ouvinte, se tornava o dono do texto. 

Sim. Normalmente, se me pedir para ler um texto, o texto de alguma maneira é meu, na minha voz, mas pelo contrário, Borges queria ser ele o dono do texto.

Este contacto privilegiado com Jorge Luis Borges na sua adolescência, início da idade adulta, mudou alguma coisa nos seus hábitos de leitor? Porque o Alberto já era leitor, já lia muito…

Sim mudou, mas muito depois. Na minha adolescência (com a arrogância da adolescência, achamos que sabemos tudo) eu lia e continuava a ler como eu queria. Algum tempo depois, dei-me conta de que os comentários de Borges faziam com que eu mudasse o meu entendimento da leitura e a minha relação com o livro porque, a relação de Borges com o livro marcava a enorme generosidade do ato de leitura. Borges dizia que quem escreve, escreve o que pode mas, quem lê, lê o que quer, e isso aprendi com ele: que temos, enquanto leitores uma grande liberdade de interpretação, de associação, de criação, que o texto não tem de ser um ditador, que o texto tem de mudar com as nossas outras leituras, com as nossas outras experiências, evoluir através do tempo.

Na sua biblioteca que vem agora para Lisboa, há dois livros que fez questão de destacar na cerimónia oficial de cedência da biblioteca, e um deles tem uma assinatura de Jorge Luis Borges. O Jorge Luis Borges tornou-se um dos seus autores favoritos? Quais são os outros?

Os autores favoritos de Borges eram muitos. Talvez mais interessante fosse a lista de autores que ele não queria. Pode-se fazer uma história da literatura com os autores que Borges não queria, que não gostava. No meu caso, tenho autores favoritos, mas é uma lista eclética, eu vou mudando, vou descobrindo.  Dante, eu não lia até fazer 60 anos. Tentei antes e não gostei e agora é o meu autor fundamental. Há autores, há livros que tenho desde a minha infância como “Alice no País das Maravilhas”, como “O Homem Que Era Quinta-feira” de Chesterton, e também, da minha adolescência, as poesias de São João da Cruz, e vários outros textos assim. O conjunto de livros favoritos são de alguma maneira a minha autobiografia.

E regressa a eles?

Sim. Desde jovens queremos descobrir o mundo, desde jovens queremos sempre saber o que está para além do horizonte. Agora que tenho quase 73 anos, interessa-me mais revisitar o que está deste lado do horizonte. Terras conhecidas, amigos conhecidos. Não quero mais surpresas, quero reler, revisitar.

O Alberto começou a ler aos 4 anos, a escrever aos 7, diz também neste livro “Uma História da Leitura” que podia viver sem escrever mas sem ler é que não, e tem uma imagem curiosa onde diz “tudo o que alguma vez me tenha acontecido, aconteceu primeiro nalgum livro”, como estava a dizer há pouco na entrevista. Até a gelatina conheceu primeiro num livro…

Sim, porque desde muito pequeno que lia os contos de Enid Blyton, e os rapazes nesse conto comiam sempre “jelly”, e eu não sabia o que era “jelly”, descobri muito, muito depois, mas fiquei com uma imagem bela de uma comida paradisíaca.

Ou seja, neste livro diz que, uma vez que aconteceram as coisas primeiro consigo na literatura e só depois na vida real, tentou e quis confirmar ao vivo alguns…

Não, eu tenho mais confiança na literatura do que na realidade. Muitas vezes a realidade desilude-me. Quando fui a primeira vez a Londres, com a imagem da Londres de (Charles) Dickens, da Londres de Sherlock Holmes, descobri uma Londres desgrenhada, mal-educada, suja, onde o governo de Margaret Thatcher continuava com a publicidade de uma Londres educada, perfeita e elegante que não correspondis à realidade. Margaret Thatcher contratou uma companhia de publicidade, Saatchi & Saatchi, para fazer a publicidade da Grã-Bretanha, para mostrar o que se supunha que era, e constantemente eu enfrentava uma realidade que não era essa. Então procurava, por um lado, a realidade dos romances de Dickens, por outro lado ouvia a publicidade de Thatcher, e logo em terceiro lugar estava a realidade física de gente cada vez mais pobre, com vidas miseráveis, com uma diferença de classe que não havia nem sequer na China imperial, onde os muito ricos se dividem em novos ricos, em ricos aristocráticos, e depois está o povo. Londres desiludiu-me profundamente. Mas ainda assim, quando voltava a ler Dickens, quando voltava a ler certos autores, Graham Green, Penelope Fitzgerald, dava-me conta de que tinha lido uma parte do romance e que a outra parte refletia essa vida miserável, lives of quiet desperation, como diz um autor americano, vidas de angústia silenciosa.

Cita o Kafka num livro, dizendo que “um livro não pode tomar o lugar do mundo, tal é impossível”. Concorda com esta afirmação?

Não, porque Kafka tinha medo da literatura. Era um autor tão cauteloso e respeitador da palavra que cada frase que escrevia, trabalhava-a como um ourives, deixava de lado centenas e centenas de páginas e ficava com umas poucas que lhe pareciam que mais ou menos se aproximavam do que ele queria dizer. Então, face a este desespero da palavra que não nos diz o que queremos que diga, ele via o mundo como se fosse um romance mais bem feito. É uma noção que, em Kafka, vem da tradição judia. O Talmude diz-nos que quando Deus dá ao povo judeu as tábuas da lei, ao mesmo tempo dá-lhe o comentário dessas tábuas, e esse comentário está nas discussões do Talmude e mesmo no mundo: o mundo como o outro livro de Deus, é uma noção que vem de longe. Então para Kafka, o livro de Deus que é o mundo era o verdadeiro livro, e a linguagem tinha de tentar aproximar-se desse livro do mundo. Mas o escritor acabava sempre construindo “golems”, que se pareciam com a vida mas que não eram a vida.

A sua mãe dizia-lhe, quando o Alberto era adolescente, “sai e vai viver”

Não era a minha mãe, era a minha avó. Sim, porque é também uma noção bastante judia de que ao mesmo tempo que há uma atividade que é o estudo e as letras, o livro, simultaneamente, temos de estar no mundo, e ela queria que eu fosse brincar, que saísse…

Sentia que estava a viver menos do que os jovens da sua idade por estar sempre a ler?

A minha impressão era que eu vivia muito mais. Os jovens da minha geração, os que não liam, não tinham uma noção do mundo, não conheciam história, não sabiam que a vida que levavam já estava contada nos livros. Que qualquer rapaz que tentasse encontrar a sua verdadeira identidade na adolescência, na relação com o seu pai, por exemplo, já estava contada por Pinóquio, e eu já o tinha lido, e que Pinóquio era uma nova versão da Odisseia de Telémaco procurando o seu pai, e que Joyce tinha pegado nessa história para escrever o seu “Ulisses”. Tudo isso, eu já tinha, já me tinha sido contado. Para mim, a procura que eu fazia da minha identidade, que faziam todos os outros, eu tinha palavras para nomeá-la, enquanto os meus companheiros estavam angustiados, mas sem saber como nomear essa angústia.

A sua biblioteca pessoal começou nessa altura, já estava a ser criada, e esses livros vêm agora para cá. Eu sei que já deu várias entrevistas e tem-se falado muito nos últimos dias desta doação, mas, quer falar-nos um bocadinho do que vamos poder encontrar nestes 40.000 livros? Porque são várias línguas, vários géneros, e várias antiguidades e tempos de livros, não é?

Antes de tudo, há uma mudança de identidade. A minha biblioteca que era muito privada, muito íntima, converte-se numa biblioteca pública. Então, da mesma maneira que alguém na sua casa está de robe ou pijama, quando sai não pode sair assim, tem que vestir-se, então, a minha biblioteca vai estar vestida de outra maneira. Como vai haver um espaço muito maior no Palacete dos Marqueses de Pombal, a distribuição pode ser mais generosa. No centro desta biblioteca vai estar a minha coleção de livros sobre o livro, sobre a história do livro, sobre a história das bibliotecas; biografias e narrativas de grandes leitores ou de livreiros ou de colecionadores de livros, livros técnicos sobre manuscritos, catálogos. Enfim, é para servir a história do livro, da imprensa. Nas outras secções, vai haver o reflexo deste núcleo central: como lemos, o que lemos, quando lemos. Por exemplo, a literatura anglo-saxónica, que vai ter romances, poesias, ensaios para mostrar quais são, concretamente, os textos lidos; Charles Dickens, e os comentários sobre Charles Dickens, e as biografias sobre Charles Dickens, etc. Isso é o que o leitor vai encontrar neste centro. Naturalmente, um estudante vai encontrar outras coisas que outro visitante qualquer, ou um especialista, virão muitos especialistas procurando certas coisas, e espero que a biblioteca seja muito ativa. Vamos ter atividades que começam já no final do ano. Dois anos antes de abrir o centro, o centro vai ter atividades, algumas virtuais, algumas concretas, em sítios amigos como a Casa Fernando Pessoa ou a Fundação Saramago, ou a Fundação Gulbenkian, ou seja, vamos ter eventos patrocinados pelo Centro de Estudos da História da Leitura nesses lugares. Virá a Margaret Atwood para ler, vou convidar atores para ler textos sobre a leitura, talvez tenhamos alguma exposição, já existem vários especialistas internacionais que querem trazer cá seminários. No ano que vem, ano do grande aniversário de Dante, 700 anos, teremos algum evento. Enfim, há muitas coisas que se preparam.

Muitos projetos. E, pelo que acaba de dizer, este Centro de Estudos sobre a História da Leitura e o espaço da sua biblioteca não vão ser um local apenas para académicos, estudiosos do livro…

Eu não sou académico (risos). Não sou especialista de nada, tenho apenas a prática da leitura. Olhe, eu não fui à universidade. Eu acabei os meus estudos quando terminei a escola secundária. Então, eu dependo dos académicos que conhecem o seu tema, as suas teorias, grandes estudiosos que vão trabalhar aqui. Eu sou um anão face a estes gigantes como Robert Darnton, como Roger Chartier, como Lina Bolzoni, como Maryanne Wolf, especialistas de distintas formas da leitura. Vai haver um aspeto médico da Maryanne Wolf, porque ela é fisióloga do cérebro e estuda o que acontece ao cérebro com a leitura, trata de dislexia. Vai haver seguramente um seminário brevemente sobre problemas da leitura, ensinar a ler quando há problemas na leitura.

Portanto, é um projeto com vários projetos dentro para o público em geral, dedicado a todas as pessoas que gostam de ler. Mas, sabe que, cá em Portugal, não sei como é na Argentina ou no Canadá, não tenho os números, o público em geral lê pouco. Os números mais recentes dizem-nos que cada português compra pouco mais de um livro por ano, e que cerca de 40% dos portugueses leem apenas um livro por ano. Acha que a leitura está a ficar para trás?

Não, sempre foi assim, desde da invenção da escrita, os leitores foram sempre poucos. Eu digo que os leitores são uma elite, mas uma elite a que qualquer um pode pertencer, desde que tenha vontade. Mas, desde a Mesopotâmia, onde eram apenas os escrivães que sabiam ler, passando por todas as sociedades, os leitores são muito poucos. Há certas sociedades, Cuba por exemplo, que decidem que todos têm de ler. Então em Cuba o nível de alfabetização é muito grande, perdem-se outras liberdades mas o nível de alfabetização é muito grande, e por outro lado, lugares que teriam de ser mais alfabetizados não o são, como vários países da Europa e da América Latina. Mas, eu estou convencido de que o inimigo, se há um inimigo da leitura, não é a falta de leitores mas sim a deliberada vontade da sociedade de consumo de impedir que haja leitores. Uma sociedade de consumo, uma sociedade como a maior parte das sociedades hoje, necessita manter o poder económico e político face a um público que não tem de ser leitor. Veja, por exemplo, na América de Trump, os que o apoiam, metade da população dos Estados Unidos, porque não lê, acredita em teorias como a de que há uma cabala satânica, que está a organizar isto, que o vírus foi criado por cientistas loucos pagos pelos democratas. Estas invenções vêm de uma profunda ignorância, vêm de uma falta de educação, e, portanto, impendem as pessoas de ler. Porque, enquanto algumas dessas pessoas se aproximam de um livro, mesmo que se aproximem com todas as dúvidas do mundo, e acreditem nos fantasmas e nos extraterrestres, o livro vai dar-lhes alguns elementos para começar a pensar. É disso que necessitamos, confiar na inteligência das pessoas. As pessoas não são estúpidas, os jovens não são estúpidos. Vimos ao mundo com um potencial de inteligência enorme e muito distinto, a sua inteligência não é a minha nem é a do vizinho, mas todas são inteligências capazes de voltar a imaginar o mundo, refletir sobre o mundo, e voltamos à sua primeira pergunta, fazer perguntas. Os que sustêm as tiranias, os que sustêm Trump, os que querem acreditar que tudo é uma conspiração, são pessoas que não se questionam, que querem respostas. É assim, “Trump disse que me vai proteger, então fico tranquilo. Não interessa se os meus filhos estão a morrer, a minha mulher, os meus vizinhos, se não tenho trabalho, se o mundo está a vir abaixo. Trump promete-me que tudo está bem.” É isso que se tem de combater, isso é o inimigo, mas é um inimigo que está a destruir o mundo, porque o impulso contra a leitura é um impulso suicida. E por isso eu penso que, aqui em Portugal, com todos os problemas que há, que são os mesmos do mundo, há uma inteligência em pessoas como Fernando Medina que vê os problemas, mas vê mais para lá dos problemas, que pensa que temos que ir à raiz dos problemas e temos de criar cidadãos responsáveis. Não chega pôr uma máscara, solucionar, dar um pouco de dinheiro para que possa chegar ao fim do mês. Não. Temos de criar cidadãos responsáveis, e os cidadãos responsáveis são os cidadãos leitores. Precisam de ler, precisam de ler a constituição, precisam de ler o jornal, e precisam de ler Eça de Queiroz (risos).

Há quem diga, cá em Portugal, que o divórcio entre os leitores jovens e os livros começa na escola por causa do programa, dos livros que são obrigatórios, onde está o Eça de Queiroz também, e da forma como os professores dão a literatura aos jovens. O que é que pensa sobre estes programas obrigatórios de livros?

(pausa) Queremos sempre culpar alguém. Queremos atribuir a culpa do vírus aos médicos que não são suficientemente capazes, queremos culpar a falta de educação por causa dos professores que não são suficientemente capazes. Isso não está certo. Não está certo porque o sistema de educação tem de ter, necessariamente, um programa básico. Podemos discutir se há que ensinar Eça de Queiroz ou se temos de ensinar Saramago, mas algumas coisas temos de colocar em frente a uma criança. Uma criança pode, por casualidade, quem sabe, encontrar um livro de Eça de Queiroz, mas se não o pomos diante dos livros, como é que a criança lá chega? A diferença está em que o professor e a professora, a única coisa que pode fazer é dar o exemplo da sua própria paixão. As crianças não são estúpidas. Então, se eu não sou leitor, se não me interessa a leitura mas sou professor e digo às crianças “leiam, leiam que é para vosso bem”, não vão acreditar em mim. Não vão seguir o meu conselho. Temos de criar a paixão pela leitura. Veja, vou a outro tema. Quando eu era Diretor da Biblioteca Nacional na Argentina uma professora com muitos anos de experiência veio visitar-me com um projeto nacional de leitura. Era um projeto de leitura não para as crianças, mas para professores. Era um plano brilhante que eu gostaria, em algum momento, de perceber se podemos fazer em Lisboa. Trata-se disto: nem todos os professores são leitores, nem todos os professores gostam de ler. Então, começar com uma oficina de leitura para professores, ver como se pode levar esses professores a serem leitores, a serem leitores apaixonados, falar do gosto da leitura. Criar professores apaixonados que vão fazer cursos com outros professores, estender esse programa para criar professores para quem a leitura é verdadeiramente importante. Não vai ser universal, vai sempre haver gente que não quer ler, a quem a leitura não interessa. Porque o ensino da leitura nas escolas depende exclusivamente da paixão dos professores. Há, depois, outros elementos: se a criança tem problemas, se a escola tem problemas, se não há o livro tal, e se se recomendar um livro de que ele não gosta, tudo isso se pode revolver. Mas, essencialmente, o ponto de partida tem de ser um professor ou uma professora apaixonada.

Parece-lhe que um professor apaixonado pode até fazer os seus alunos gostarem e lerem com gosto um livro que é muitas vezes apontado como muito difícil para os jovens, e que é obrigatório e tem de ser, que é Os Lusíadas de Luís de Camões?

Sim. Veja, a leitura é uma relação amorosa. E, porque é uma relação amorosa, é uma relação de prazer. Digo isto muitas vezes. Não posso obriga-la a apaixonar-se por este senhor, que a mim me parece excelente, me parece boa pessoa, não há nada que eu possa fazer para a obrigar a apaixonar-se por ele. Mas, se eu quero que você conheça este senhor, posso falar-lhe dele, posso fazer pequenas conversas, pode haver pequenas reuniões. Não pode ser a relação de amor única mas há estratégias. Se eu estou convencido, como estou, que Camões é essencial, tenho de encontrar a maneira de contar essa história, de abrir alguma porta, de encontrar algum verso, alguma palavra que interesse aos adolescentes, e deixá-lo agir. Não vamos ter 100% de adolescentes apaixonados por Camões mas basta que haja um ou dois. Se Camões tem de estar no programa, a estratégia tem de ser boa, e é o professor que tem de encontrar essa estratégia.

Muito interessante a ideia do professor enquanto leitor apaixonado. Falou desse projeto para professores que recebeu quando estava na Biblioteca Nacional da Argentina. Pensou levar a sua biblioteca para a Argentina, uma vez que é o seu país de origem?

Vamos ver. (pausa) Você tem filhos?

Tenho.

– Bom, suponhamos que em Portugal há uma enorme crise, não se encontra trabalho, o vírus infeta todo o mundo e você quer salvar os seus filhos. E que numa ilha do pacífico, lhe propõem que vá para lá viver com os seus filhos porque lá se pode estudar, o clima é bom, a saúde é boa. Você vai decidir ficar cá por uma questão de nacionalidade, ou vai escolher essa ilha para os seus filhos? A minha biblioteca é uma coisa viva. Quando tive de sair de França e pôr os livros em caixas senti que estava a enterrar vivos esses livros. Eu teria querido, claro, Argentina, Canadá, os países que são os países das minhas nacionalidades, para, quem sabe, a minha biblioteca renascesse aí. Mas, primeiro, no Canadá houve várias tentativas, nenhuma resultou. Na Argentina não houve nenhuma, nenhuma mesmo. Nada, nada, nada. Nem do governo de Macri, nem do governo de Kirchner me perguntaram “por favor, porque não podemos instalar a sua biblioteca?”. Além disso, eu não pedi porque estava como diretor da Biblioteca Nacional e não tínhamos dinheiro para comprar café! Eu comprei e doei do meu próprio bolso livros para a Biblioteca. Quando tive de mandar uma pessoa para um congresso de bibliotecários no Chile, o bilhete custava 200 dólares, não podíamos pagar, eu paguei-o do meu próprio bolso. Então, como supor que vou dizer “muito bem, dêem-me um edifício, dêem-me o orçamento para manter uma biblioteca, paguem o transporte”. Nem sequer o meu salário, eu tê-lo-ia feito grátis. Mas é uma impossibilidade. Veja, desgraçadamente o meu país, a Argentina, é um país curioso. Borges explicou-o. É um país de rivalidades. E não são rivalidades intelectuais, são rivalidades fanáticas como no futebol – “eu sou desta equipa e nada do que faça a outra equipa é bom e tudo o que é meu é bom” -, e o mesmo do outro lado. Num conto, Borges fala do que ele chama “a lógica do ódio”. Acusavam este personagem de nunca ter ido à China e de nos templos desse país ter insultado os deuses. Então (risos), essa é a lógica do ódio. Censuram-me agora por não ter levado a minha biblioteca para a Argentina quando nunca me fizeram essa proposta. E eu sabia que era impossível que ma fizessem. Veja, a Biblioteca Nacional está alojada num edifício monstruoso, que foi desenhado por uma pessoa que não sabia ler, portanto tem milhões de problemas de salubridade, de ventilação, de coisas que vêm abaixo. Não tínhamos dinheiro para comprar estantes para pôr os livros que chegavam. Como é que, nessas circunstâncias, vou imaginar que se vai instalar uma nova biblioteca? Agora, se me surpreendeu não ter recebido nenhuma proposta de Espanha, não ter recebido nenhuma proposta da Alemanha… Tive propostas da Turquia, do México, da Colômbia, do Canadá, de Itália, inclusive o presidente da câmara de uma pequena cidade perto de Nápoles mas, não havia dinheiro. Quando alguém tem um projeto, uma coisa é o entusiasmo – “ah, veja, gostaria muito de te comprar uma casa” – e depois verifica – “ah, mas apenas tenho 10 euros, não chega para comprar uma casa” -, então, isso não é possível. E, de repente, Bárbara Bulhosa, a minha editora aqui na Tinta da China, conhecendo o problema, foi com essa proposta ao senhor Fernando Medina, e ele disse “sim”. Então, o que vou dizer? “Senhor Medina, não. Não, porque eu sou fiel ao Canadá e à Argentina e quero esperar que dentro de 100 anos, alguém se lembre?” É absurdo. Deixemos isto assim. Estou muito, muito, muito agradecido a Portugal e a Lisboa por me ter dado esta oportunidade de ver renascer a minha biblioteca.

Desta biblioteca, imagino, fazem parte autores portugueses. Aliás, o Alberto no discurso da cedência da biblioteca citou Álvaro de Campos, um dos heterónimos do Fernando Pessoa. Gosta de literatura portuguesa, da poesia e dos romances?

Muito. Mas eu não divido a literatura em nacionalidades. Veja, esse é um costume de historiadores e livreiros e bibliotecários que precisam, naturalmente, de uma etiqueta para a estante, “literatura portuguesa”, “literatura chinesa”, etc. Na minha biblioteca mental estão todos misturados. Eu li autores portugueses, li autores chineses, li autores espanhóis, mas se você me perguntar… Eu gosto muito de Elias Canetti, é um autor de que gosto muito. De que nacionalidade é Elias Canetti?

Nem sei. Itália?

Não. É romeno, inglês, creio que foi em algum momento alemão. Mas não importa! Não importa. De que nacionalidade é António Tabucchi? Sim, escreve em italiano mas todo o seu mundo é português. Então, é uma ideia muito antiga a da literatura sem fronteiras. Séneca, no século I, já dizia que não somos obrigados a ter os antepassados que temos através do sangue, ter o seu avô, o seu tetravô, podemos ir à biblioteca e dizer “aqui, Platão, é meu antepassado” ou “Virgílio é meu antepassado”. Escolher o nosso sangue através da literatura. Porque a literatura é sempre universal.

Podemos escolher quem são os nossos familiares na literatura.

Absolutamente. Seguramente que você se sentiria muito mais próxima de uma autora como Sei Shônagon do século X no Japão do que, quem sabe, não sei, de Lobo Antunes, por exemplo. Mas não é porque seja melhor ou pior, é uma questão de gostos, uma questão de simpatias. É uma alquimia, um processo alquímico que não depende do seu passaporte.

No meu caso, a paixão de que fala é por um autor russo, o Dostoiévski. E eu sou portuguesa, portanto, a afinidade… 

Sim, mas o Dostoiévski é português.

Pois, é isso. Ele é de todos os países.

Quando disseram a Chinua Achebe que um autor americano tinha dito que a literatura africana não tinha muita importância e que os grandes autores eram de outros países, e que esse autor americano tinha perguntado “quem é o Tolstói” da Nigéria?”, Achebe respondeu “o Tolstói da Nigéria é Tolstói!”

Disse numa entrevista que “uma biblioteca é a memória de uma sociedade”. E por falar em memória, no seu livro “Uma História da Leitura” conta uma história de um professor seu que o obrigou a decorar poemas dizendo-lhe que os poemas iam fazer-lhe companhia um dia que não tivesse livros por perto. Ainda sabe de cor esses poemas que foi obrigado a decorar?

Sim, sim, tantos. Conto-lhe uma história. Há uns 7 anos eu tive um AVC e, de repente, não conseguia falar. Podia pensar mas sem palavras, as palavras não saiam. E no hospital tinha medo de ter perdido algumas das minhas línguas, porque isso sucede com os AVCs, ou a memória dos meus livros. Passei as noites a recitar para mim, em distintos idiomas, em francês, espanhol, inglês, alemão, italiano, o que recordava de memória. E foi uma maravilha. Agradeci tanto a esse professor que tivesse insistido nisso. Também a minha ama me fez aprender coisas de cor. Eu tenho na minha memória uma pequena biblioteca de textos, não todos muito bons porque às vezes tínhamos de decorar textos maus, mas não importa. Fazem-me companhia e eu espero poder ter acesso a eles nas minhas últimas horas.

Bem, agora esta pergunta que tenho aqui, depois de falarmos da ideia de os escritores não terem nacionalidade vem um bocadinho fora do tom, mas não queria deixar de lhe falar da Olga Orozco, a poeta argentina, cujo centenário do nascimento se assinala este ano. Gosta da poesia dela?

Muito, sim. E vou contar-lhe um segredo: estou a tratar de trazer o arquivo de Olga Orozco aqui para Lisboa. (risos)

A sério? Essa é uma muito boa notícia.

E tenho algumas coisas de Alejandra Pizarnik, que era muito amiga dela, que vamos ter aqui. Alguns manuscritos, algumas coisas assim…

Sabe que a Tinta da China, a sua editora, publicou este ano uma antologia de Alejandra Pizarnik.

É uma das poetas essenciais do século XX. Sem nenhuma dúvida, se eu tivesse de eleger 5 poetas do século XX, Alejandra Pizarnik estaria nessa lista.

Há um poema dela que diz “Explicar com palavras deste mundo/que partiu de mim um barco/levando-me”. Ela é maravilhosa, de facto.

Sim, maravilhosa. Tem um verso que diz “La rebelión consiste en mirar una rosa hasta pulverizarse los ojos.”

Para terminar, li num livro seu que “para um leitor todos os textos devem ser inacabados (ou abandonados como sugeriu Paul Valery). De facto um texto só pode ser lido porque é inacabado.” O que é que significa esta ideia?

Vejamos. Volto à ideia da literatura como pergunta. Um texto completamente acabado é um texto que não tem nada mais que superfície, é um mau texto. Paulo Coelho é um texto de superfície. O leitor pode deslizar sem problemas sobre o texto desde a primeira à última página e não o afeta, não muda nada, não intervém. Por outro lado, Arthur Rimbaud, Alejandra Pizarnik, Virgílio, nem tudo é perfeito, nem tudo é compreensível, nem tudo é de uma clareza absoluta… Uma pessoa pode chegar a um texto da Alejandra Pizarnik como o que citou e dizer “ah, é a ideia do barco”, ou não “vou concentrar-me na ideia da palavra”. Há várias portas de entrada e não há nenhuma que seja definitiva. Eu entendo que, nesse caso, todo o texto está inacabado porque o leitor tem de continuar a acabá-lo. O leitor é, de alguma maneira, a imortalidade do texto. O texto vive para sempre porque vai haver sempre outro leitor, a leitura nunca vai acabar. Então, para isso, precisamos de considerar o texto como inacabado. Através de leituras distintas, através de traduções, através de distintos momentos históricos, o texto muda.

Parece-lhe que se passa o mesmo com as bibliotecas? Também permanecem inacabadas?

Ó, sim. Uma biblioteca que está acabada é uma biblioteca morta.

Então a sua está inacabada?

Evidentemente.

O que pode faltar numa biblioteca com 40 mil títulos?

Bem (risos), 40 mil títulos são 1 segundo na eternidade do mundo. A biblioteca universal é equivalente ao universo, disse Jorge Luis Borges.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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