Manuel Alberto Valente: “O Luis Sepúlveda não se pode resumir apenas aos livros que escreveu. Nele, a figura humana misturava-se muito com a figura do escritor”

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O Manuel Alberto Valente foi editor do Luis Sepúlveda. Conhece-o, imagino, há muito tempo. 

Exatamente, desde que ele publicou o seu primeiro livro e eu traduzi em Portugal o seu primeiro livro. Não, não era o primeiro livro porque ele tinha publicado um antes e que, aliás, nunca chegou a ser reeditado. Mas verdadeiramente, o primeiro livro dele foi “O velho que Lia Romances de Amor”.

Que é um livro bastante querido de muitas pessoas em muitos países. 

Claro, foi um livro que teve imediatamente uma enorme projeção mundial. Eu tinha a sorte de ser, e sou hoje ainda, muito amigo da Anne Marie Métailié, editora francesa, que como fala espanhol e também português – ela é editora por exemplo da Lídia Jorge e de outros autores portugueses em França – e nessa altura “O velho que lia romances de amor” tinha sido publicado em Espanha por uma pequena editora e tinha passado completamente despercebido, mas por qualquer razão chegou às mãos da Anne Marie, e ela percebeu que tinha ali uma pérola e falou-me disso. Portanto, eu comprei imediatamente os direitos do livro. Foi o Pedro Tamen que o traduziu, é bom recordar isso. Portanto, eu tive a sorte, a honra e o privilégio de ter sido o editor de todos os livros do Luis Sepúlveda em Portugal, desde o primeiro até ao último. 

E conhece-o pessoalmente na ocasião da tradução e edição em Portugal desse livro ou mais tarde?

Muito pouco tempo depois. Aliás, é uma história muito bonita. Pouco depois de o livro sair nós convidámo-lo a vir a Portugal apresentar o livro e ele disse que sim, que vinha. Nós não nos conhecíamos pessoalmente, mas coincidiu que ele nessa altura estaria no Festival de Cinema de Huelva, onde era, se bem me lembro, júri. Estamos a falar do princípio dos anos 90. E então combinámos que ele viria de Huelva até Vila Real de Santo António e que eu ia lá esperá-lo de carro para o trazer para Lisboa. E assim foi. Eu fui de carro, aliás acompanhado pelo João Duarte Rodrigues, meu companheiro, amigo e colega desde sempre, fomos os dois para Vila Real de Santo António. E, quase num ambiente de filme de espionagem, estávamos com o carro e a certa altura chegou um carro do lado de Espanha, onde alguém lá do Festival de Huelva o vinha trazer, e saiu do carro aquele enorme barbudo que ele na altura era, que veio ter connosco e demos logo grandes abraços e pusemo-nos a caminho de Lisboa. E ele pôs uma condição, disse que sim senhor mas queria passar por Grândola, foi a condição que ele pôs. E portanto, saímos do Algarve e a nossa primeira paragem foi em Grândola, onde ele tirou uma fotografia, que é historicamente a primeira fotografia dele em Portugal, em que eu lhe tirei uma fotografia em que ele está junto àquela placa que existe à entrada das terras, a placa a dizer “Grândola”, em que ele está encostado à placa e com o punho no ar e umas grandes barbas que ele na altura usava.

Quais foram as primeiras impressões com que ficou do Luis Sepúlveda quando se conheceram nesse dia e nas horas em que privaram depois?

Foram muitos anos de muitas conversas, muito convívio, de uma enorme amizade. Eu diria que o Luis era sobretudo um enorme, enormíssimo contador de histórias, não só nos livros como eu quase que diria sobretudo fora dos livros, porque era um homem que na sua convivência com os outros estava sempre a contar histórias. Histórias que ele apresentava sempre como verdadeiras, evidentemente, mas que muitas vezes não sabíamos se eram verdadeiras ou se ele as estava a inventar naquele momento. Eu lembro-me de algumas verdadeiramente fabulosas, porque ele tinha uma capacidade de improviso e de invenção de histórias num determinado momento que era uma coisa fantástica. Eu lembro-me, por exemplo, que num lançamento que houve aqui em Lisboa de um outro escritor latino-americano, um escritor argentino que eu acho que era o Pablo de Santis, em que o Pablo de Santis falava que o pai tinha em Buenos Aires uma pequena fábrica, uma coisa artesanal, que fabricava um licor que na altura era muito famoso na Argentina. E estava a contar uma história muito bonita e estava toda a gente entusiasmada. E a certa altura o Luis Sepulveda pede para falar e pega nessa história e diz: “é engraçado porque o pai tinha um restaurante no Chile e importava esse licor da Argentina”. E as pessoas ficavam sem saber. Eu até hoje estou sem saber se é verdade ou não. Mas na altura as pessoas ficavam verdadeiramente deliciadas com este tipo de efabulação que ele era capaz. Estes momentos podiam repetir-se aos milhares. 

E isso acontecia, como o Manuel estava a contar, nas várias e muitas conversas que terão tido ao longo destes anos, mas há também uma característica nos livros do Luis Sepúlveda que se prende precisamente com esse lado da efabulação. Enquanto editor, como é que falaria dele enquanto escritor?

É uma pergunta um bocadinho difícil eu diria. Eu diria duas coisas. Primeiro, Luis Sepúlveda é autor de duas obras que ficarão certamente como dois clássicos, digamos assim. “O velho que Lia Romances de Amor”, que é realmente um pequeno romance, uma novela de uma qualidade inexcedível, fora de série, e depois um livro que se tornou também mítico mas já um livro para crianças e adolescentes, ou para a criança que todos temos em nós, que é “A História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”. São dois livros centrais no seu trajeto de escritor. Depois, há uma quantidade de livros diferentes. Uns que são mais circunstanciais, outros que são pequenos contos e memórias, outras fábulas para a juventude que ele foi escrevendo mas que, quanto a mim, nunca atingiram o patamar da gaivota e do gato, livros de combate também. Mas sobretudo é uma obra que no seu conjunto reflete, acho eu, um enorme amor pelo Homem, pela natureza, pela liberdade, e julgo que essa é a mensagem que fica dele.

É o legado que ele deixa.

É. Alguém me disse há pouco, um amigo comum,  “o Sepúlveda não era apenas um escritor”, ou seja, o Sepúlveda não se pode resumir, como a muitos escritores acontece, não se pode resumir aos livros que escreveu. Nele, a figura humana misturava-se muito com a figura do escritor, na sua cumplicidade com os amigos, na sua solidariedade com os amigos, nas lutas em que se envolvia, tudo isso fazia dele realmente um homem muito especial.

Como é que o vai recordar?

(pausa) Não sei. Não sei. Não não sei como é que o vou recordar. O último abraço que demos foi na Póvoa de Varzim, muito pouco antes de ele ter contraído o vírus, ou se calhar já o tinha dentro dele, não sei, nunca se saberá isso. Essa será certamente uma das memórias que ficará. Mas quero ficar também com muitas outras, de momentos fantásticos de comunhão, de risos, de festa, muitas delas passadas aqui nesta cidade de Lisboa também.


Entrevista realizada por Raquel Marinho

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