Miguel Abreu: “Com este espectáculo, pretende-se criar uma tensão no público”

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Fundada em 1987 a Cassefaz, espetáculos, vídeos e publicações culturais Lda. é reconhecida como a primeira produtora cultural independente criada em Portugal e a única que se mantém em atividade desde essa data. Desde serviços de consultoria à formação artística, passando pela produção executiva de espectáculos, é esta última que os leva até Guadalajara, onde vão apresentar Consentim(i)ento — A Perda do Paraíso. Em entrevista à Casa da América Latina, Miguel Abreu, encenador e fundador da produtora, anteviu a estreia deste “manifesto” na FIL Guadalajara 2018.

Às 19h de 1 de dezembro, o claustro do Instituto Cultural Cabañas recebe Consentim(i)ento — A Perda do Paraíso, que contará com a participação, entre outros, da Cassefaz e do Miguel Abreu. O que representa para ambos a oportunidade de levarem a cultura portuguesa à América Latina?

Representa uma grande responsabilidade, porque somos o único espectáculo de teatro que vai estrear no contexto da comitiva portuguesa. Representa também a oportunidade de apresentar, a convite da Dra. Manuela Júdice, Secretária-Geral da Casa da América Latina e Comissária da Participação Portuguesa na FIL Guadalajara 2018, um texto bilingue e que aborda dois importantes nomes da cultura ibero-americana: Padre António Vieira e Frei Bartolomé de Las Casas. Foi interessante conjugar os dois textos, pensá-los para um público de língua portuguesa e espanhola e é um desafio ir ocupar um espaço não convencional [antigo orfanato], uma tradição de muitos espectáculos da Cassefaz, e não estarmos presos ao recinto da Feira. Nós trabalhamos com estes espaços não de uma forma de implantação mas de diálogo com a arquitetura e história destes, numa conversa entre o passado e o presente. Esta participação significa muito e permite-nos ficar com um espectáculo bilingue, que gostaríamos de trazer para Lisboa em 2019.

Fale-nos um pouco desta peça e do que esperar dela.

Esta dramaturgia é um texto original. É uma compilação de vários excertos, de vários sermões e cartas ao Rei do Padre António Vieira, que compilámos num texto a que demos o nome de Paiaçú, que temos vindo a fazer desde há vários anos; este texto foi o motivo pelo qual nos desafiaram a pegar em textos de Frei Bartolomé de Las Casas e fazer uma dramaturgia desta obra, no sentido de complementá-la e cruzá-la com os textos do autor português. Há nesta peça uma espécie de pensamento ibérico que vamos, a partir das palavras do passado, questionar no presente e consciencializar, de uma forma muito assente nos textos da época mas lidos à luz da contemporaneidade. Por isto, foi importante para nós ter atores mexicanos no projeto, enquanto representantes latino-americanos, para que possam, de alguma forma, transportar para a peça algum sentimento de medo ou subjugação que ainda possa existir na América Latina em relação à Europa, cujo comportamento colonialista se continua a manter. De referir que este espectáculo não vai ter luz artificial: será um espectáculo no cinzento e cuja única luz que terá será a do luar. Queremos muito trabalhar com essa sensação de consentimento, porque todos somos um bocadinho cúmplices, no passado e no presente, de um conjunto de situações em que um conjunto de homens continua a subjugar outros conjuntos de homens. Para além disto, é um espetáculo que tem de se ouvir, porque a palavra dita, que acusa, tem uma força muito grande em relação àquilo que se não diz. Com este espectáculo, pretende-se criar uma tensão no público e gostaríamos que este sentisse as tensões contemporâneas.

Como surgiu a ideia de juntar dois autores separados por um século e por um oceano?

Na realidade, ambos acabam por estar em sintonia com o princípio da defesa do bom tratamento dos indígenas ameríndios. Passados 130 anos entre os autores, verificamos que, pese embora de uma forma mais direta e menos literária por parte de Frei Bartolomé de Las Casas, os dois denunciam as barbaridades que os colonos portugueses e espanhóis foram responsáveis na América Latina. Existia em ambos um sentimento de bondade e indignação comum e um sentimento de salvaguarda da fé cristã e da Igreja Católica no sentido de que teriam de tratar de modo mais nobre e digno os indígenas e tudo isto confluiu na ideia de juntá-los.

As temáticas do racismo e da discriminação são parte incontornável desta peça mas também do seu trajeto enquanto encenador. Numa época em que vários líderes de países com bastante expressão mundial apelam à segregação étnica e racial, sente que estes trabalhos são ainda mais necessários? 

Estes trabalhos são sempre necessários. Um livro, por exemplo, pode ser lido ao longo de séculos e percepciona-se melhor a sua receção em períodos em que o leitor está mais próximo da mensagem; no teatro, como por norma os espetáculos duram pouco tempo, isto não é tão percetível. No entanto, tenho constatado que, quando o mundo está em “crise”, o público agarra-se às palavras com uma energia de representatividade: sentem-se completamente representados, identificados e defendidos! Estes projetos, neste momento em particular, podem ser efeticamente importantes e necessários se conseguirem ir ao cerne daquilo que as pessoas estão a sentir. Esta é, sem dúvida, uma linha de trabalho que sempre me interessou muito.

O que diferencia uma produtora cultural independente das demais?

Essa definição é um chavão de época. O que nos diferencia é que, do ponto de vista do negócio – e para nós o termo negócio é um conceito de permanente relação -, não nos encostamos exclusivamente ao mercado e aos subsídios. Desde 1987 que criámos e defendemos uma triangulação de clientes e de trabalho: espetáculos, prestação de serviços de produção e formação, por exemplo. Tentar sempre que nunca estejamos dependentes de mais de 40-45% de um cliente para não perdermos a nossa independência. Claro que, se tivermos dinheiro do estado, candidatamo-nos a projetos com maior dimensão, o que não quer dizer que sejam melhores ou mais interessantes para o país! Se trabalhamos muito com um cliente comercial que, de repente, não respeita os nossos valores, ou recusamos, ou diminuímos a quota de participação. Portanto, é toda uma matriz de pensamento e de acção negocial que aconselharia a que muitos outros jovens produtores o assumissem porque a médio prazo estamos dependentes daquilo que o Estado vai decidir.

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