CineSur: Uma comunidade em torno do cinema latino-americano em Lisboa

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CineSur é o ciclo de cinemas latino-americanos que a Mutirão – Associação Cultural traz todos os meses à Casa da América Latina, com incidência em problemáticas como as migrações, a autoria indígena, ou o impacto da cinema no feminino. Cristina de Branco, representante do projeto, explica que o mesmo surge da sua relação pessoal muito próxima com as geografias latino-americanas. Nascida em Lisboa, criada em São Paulo, vive entre os dois lados do Atlântico. Na última viagem que fez a São Paulo, envolveu-se no meio artístico da cidade, contexto que a “criou” a nível cultural e político, como explica em entrevista à Casa da América Latina.

O que é a Mutirão?

A Mutirão é uma associação cultural que eu e o Miguel Dores criámos quando voltámos para Lisboa (após quatro anos em São Paulo), porque percebemos que era importante criar uma estrutura mais formalizada que conseguisse acolher vários projetos nossos e de outros amigos que também trabalham nos âmbitos da Cultura e do Cinema, e que também abordam os recortes do Sul – tudo o que é produção visual artística sul-americana e latino-americana, periférica, migrante, de várias perspetivas geopolíticas, culturais e sociais. Reparamos que aqui em Portugal existe uma certa imposição pela formalização dos coletivos e também por isso percebemos a importância de nos formalizarmos.

De que forma é que as vossas experiências pessoais prévias levaram a esta iniciativa?

Este é um projeto que surge da maturação que tivemos no Brasil e São Paulo (entre 2013 e 2017), das angústias que tivemos lá, mas que também sentimos no regresso. Sentimos que podíamos contribuir um pouco mais para a cidade de Lisboa com o que aprendemos. Fizemos parte do Cineclube Latino-americano no Memorial da América Latina. Também participámos num projeto que se chamava Microcine Migrante, que era uma estrutura de exibição semanal de cinema itinerante pela cidade, sempre sobre a temática migratória. Foram projetos que tiveram bastante sucesso e com os quais evoluímos muito. Considerámos que com estes projetos teríamos a bagagem suficiente para criar um Microcine Latino-americano aqui. Foi por isso que propusemos isto à cidade. E fazia todo o sentido propor o projeto para a Casa da América Latina, sendo o único espaço realmente dedicado à América Latina em Lisboa, que nos acolhe durante quase todo o ano de 2018.

No entanto, existe uma grande disparidade entre cidades, que influencia a forma como se fazem cá os projetos…

Todos os nossos projetos lá eram financiados pelo Estado ou pelo Município de São Paulo. Isso era uma grande diferença. As coisas funcionam um pouco mais rápido. Se precisávamos de financiamento para o mesmo ano, precisávamos de nos preparar com seis meses de antecedência. Aqui tem de ser quase um ano e meio antes. Aqui, as políticas públicas da cultura são bastante mais frágeis. É facto que a área metropolitana de São Paulo tem mais de 20 milhões de pessoas, duas vezes as que existem em Portugal, mas ainda assim o que existe é muito diversificado e bastante mais organizado. Aqui temos editais muito fechados, com linhas de apoio muito restritas. Ainda assim ganhámos o apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), que nos apoiará financeiramente o projeto durante o ano de 2018 e 2019.

E que diferenças existem em relação ao próprio público?

O público é muito diferente. São mundos muito distintos. Nós migrávamos muito pela cidade e, por isso, tínhamos oportunidade de criar novos públicos em cada área, surgiam novos desafios. O público é diversificado, com muitas nacionalidades e experiências de vida diferentes, enquanto que cá estamos a ter um público maioritariamente latino-americano, o que é maravilhoso para nós, e alguns portugueses.

Quanto às temáticas abordadas no CineSur, também não há uma restrição tão grande…

A nossa ideia inicial era exibir só cinema latino-americano. Em São Paulo tivemos projetos mais relacionados com as migrações e eram esses os que corriam melhor, por ter o reconhecimento da municipalidade e das comunidades. Tivemos a oportunidade, enquanto lá estávamos, de fazer parte do Grupo de Estudos de Cinema Latino-americano, e do qual fazem parte pessoas de diferentes formações. Estivemos envolvidos na criação de colóquios e de ciclos de cinema, sempre com o objetivo de envolver as pessoas mais na produção audiovisual do continente… Fez muito sentido vir para cá e ter um projeto não necessariamente ligado à migração, por já existirem muitos projetos nesse âmbito. Mas sentimos um vazio em relação à produção latino-americana na cidade. Viemos de São Paulo, muito cosmopolita e com comunidades enormes, mas onde, ainda assim, existe uma compreensão muito maior do que é a América Latina do que aquela que existe em Portugal. Percebemos que tínhamos de aproveitar a vez de Lisboa como Capital Ibero-americana da Cultura para tentar trazer essa pertença às comunidades ibero-americanas. Sentimos que tínhamos de contribuir com este conhecimento do que é o outro lado do Atlântico.

E porquê o Microcine?

Em São Paulo já conhecíamos o incrível trabalho do grupo Chasqui, que é uma rede de microcines populares. Admiramos muito este projeto nascido na conjuntura política do Peru nos anos 90. A rede veio a ganhar corpo em 2000, mas ainda existem dificuldades reais no seu quotidiano, problemas muito básicos, relacionados com o mapeamento, com a falta de água, de Internet… É uma sociedade que ainda está a lutar muito pelo seu desenvolvimento, mas que, mesmo assim, a Rede de Microcines Chaski conseguiu desenvolver mais de 30 espaços de projeção de cinema. Estes são geridos pelas comunidades e exibem semanalmente ou mensalmente. São espaços que nascem organicamente a partir de setores das comunidades através das populações e geridos de forma muito horizontal, construindo assim um projeto de promoção do cinema, sem imposições. Isso, à partida, constrói um ambiente democrático, que vai ao encontro da história do cineclubismo, apesar de hoje, especialmente nas grandes cidades, este se fechar muito a um circuito de cinéfilos – pessoas que já viram cinema e têm um olhar muito mais técnico e ligado à análise formal do cinema e algumas vezes, à “fetichização” da autoria. Muitas vezes perde-se o conteúdo. O nosso objetivo não é tratar necessariamente das grandes personalidades do cinema, mas sim de temas da vida. Não queremos reproduzir um espaço hierarquizado que o cinema ocupa hoje. O cinema latino-americano lida com a vida de uma forma muito direta.

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