Memórias da viagem de Eduardo Salavisa à América Latina em exposição na Casa dos Mundos

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Está patente na Casa dos Mundos (Rua Nova da Piedade 66) a exposição Cadernos da América Latina, da autoria de Eduardo Salavisa, organizada pela Câmara Municipal de Lisboa. Por ocasião da inauguração da exposição, foi apresentado o livro que lhe deu origem.

Caderno da América Latina – Cuaderno de América Latina apresenta 18 cadernos de desenhos e memórias recolhidos durante uma viagem que Eduardo Salavisa realizou, durante cerca de nove meses, entre a Cidade do México e São Paulo que incluiu Ushuaia, a cidade mais a sul do planeta. Um percurso em camioneta por 15 países com estadias em 47 localidades.

A exposição pode ser visitada de terça a sábado, das 14h30 às 19h30.

Eduardo Salavisa acedeu a partilhar com a CAL a sua experiência.

Quando subimos as escadas para o primeiro andar da Casa dos Mundos, onde se encontra a exposição “Cadernos da América Latina”, vemos à entrada um conjunto de desenhos que parecem outra exposição embora sobre o mesmo tema. São dois momentos ou estamos perante o desenrolar de um percurso?

A exposição do rés do chão foi criada a partir de cartas que fui enviando durante a minha viagem, pedi a quem as recebeu que as digitalizasse, sendo que tinham texto e desenhos que posteriormente cobri com tinta, deixando algumas transparências e uma seleção do que quis deixar visível. Há uma sobreposição da pintura face às outras coisas, que ficam meio à vista, meio tapadas, de forma a suscitar leituras diferentes.

Trata-se também de um universo muito pessoal, que nem sempre se quer revelar…

Sim. Eu nessa exposição explico a diferença entre um caderno e um diário gráfico. Um diário gráfico é uma coisa pessoal, aliás, a piada deste tipo de desenho é ser algo que fazemos para nós próprios, sem que o objetivo primeiro seja expor. Uma exposição de diários gráficos é uma coisa um bocado paradoxal… Claro que esta é uma seleção minha, e há textos que não são para mostrar mesmo. As cartas têm semelhanças com o diário gráfico, mas as cartas já são para ser lidas por duas pessoas e não apenas uma.

A prática do diário gráfico já era algo recorrente para si noutras situações?

Sim. A ideia do diário de viagem é a de transportar essa sensação de dia-a-dia. Quando estamos em viagem estamos sempre a olhar para todo o lado e a surpreender-nos com o que nos rodeia. No quotidiano já nos passa tudo ao lado. Quando as pessoas me dizem que gostavam de desenhar eu respondo sempre: “então compra um caderno”. Primeiro, porque tem um efeito muito mais desinibidor – não existe a pressão de mostrar, e, depois, faz com que se repare nas pequenas coisas e pormenores, e isso é bom para adquirir um certo hábito de desenho.

E quando começou esta viagem pela América Latina já tinha o objetivo de desenhar?

Sim. Neste caso, a empreendi a viagem com o objetivo de desenhar. Tenho um outro livro sobre Cabo Verde feito nestes moldes. Claro que não estive só a desenhar, nem desenhei sempre. Às vezes fico cansado, e tento aproveitar a viagem… mas viajei com o intuito de desenhar.

E o que resulta daí é uma junção entre texto, desenho, colagens, memórias pessoais…

O mais relevante nestes desenhos são as memórias. Cada desenho é uma história sobre a qual poderia falar muito tempo. Mas obviamente que são histórias apenas para mim, e que outra pessoa que os vê não tem acesso a ela. Tudo o que existe e acontece à volta do momento em que desenhamos, todo aquele dia, está representado naquelas páginas. E claro que em viagem uma pessoa escreve muito mais, porque há muito mais informações e detalhes. Tenho por hábito colocar quase sempre a data nos desenhos.

Há textos que podem ou não ser compreendidos, porque a caligrafia também tem essa função enigmática…

São coisas que escrevi para mim, e, portanto, não é para os outros lerem. Escrevo rapidamente e a minha caligrafia é de difícil compreensão. Eu tenho um amigo que é escritor científico que me explicou que quando os cientistas mostram os seus cadernos, não se pode olhar os cadernos durante mais que um limitado período de tempo, de forma a que outros não consigam ler o que lá está.

O livro tem também muitas colagens…

Sim, eu decidi colocar algumas colagens de bilhetes, ou, por exemplo, rótulos de cerveja.

Isso quer dizer que esses desenhos foram feitos sob o efeito da cerveja indicada…

[risos] Sim… Na Bolívia, por exemplo, bebe-se muito o chá de coca! [risos], mas em pacotinhos… e é muito bom para as alturas. Esta cidade [aponta para um dos desenhos], que é Potosí, é a cidade mais alta do mundo – quatro mil metros, acho. Eu não senti muito isso, mas as pessoas que vêm daqui para o Machu Picchu, costumam ficar com grandes náuseas, porque é uma subida muito abrupta…

Os desenhos estão organizados cronologicamente ou geograficamente?

Aqui no livro decidi colocá-los por ordem cronológica. Na exposição organizei-os por paredes, mediante os desenhos que tinha de cada país e a dimensão das paredes, dei a cada uma a representação de um país. No livro fizemos como se fosse um fac-símile – foi feita uma seleção, mas por ordem.

Pode ler-se logo no prefácio do livro que alguns dos cadernos desapareceram na viagem, quer contar essa história?

Eu nunca tinha pensado muito em fazer esta exposição, porque a viagem já tinha sido há três anos, e porque não tinha os desenhos de todos os países. Nem o livro… também não pensei nisso. Os desenhos que fiz nos primeiros países que visitei na América Central e Colômbia desapareceram. Só tenho desenhos a partir daqui [aponta no mapa o local exato onde perdeu os manuscritos, entre Quito e Pasto]. O primeiro desenho do livro, que é um desenho até um pouco “feio”, foi incluido exatamente para mostrar o quanto eu estava chateado com a situação. Eu tinha ido até Quito, mas voltei atrás, à cidade onde acredito terem desaparecido.

E foi nesse momento que conheceu Héctor Abad Faciolince…

Não o conheci pessoalmente, ainda… Quando cheguei a Quito não sabia bem o que havia de fazer e uma amiga jornalista aconselhou-me a escrever ao Faciolince, porque ele conhecia toda a gente na Colômbia e é escritor e jornalista no El Espectador. Eu escrevi-lhe e ele deu-me algum alento, arranjou-me inclusive uma entrevista no jornal… Houve uma troca de e-mails, espalhámos cartazes, anunciou-se na rádio, mas quando voltei a Pasto, achando que era uma cidade pequena, deparei-me com uma cidade muito grande onde não conseguiria encontrar a pessoa que suspeito me ter roubado. Os diários nunca foram encontrados.

Quanto à relação com Faciolince… Quando pensei na hipótese de fazer uma exposição ainda não tinha pensado em fazer o livro, mas assim que surgiu essa ideia, pedi-lhe um texto para a exposição e ele escreveu logo. Ele tem um livro sobre a memória, um romance em que um pai morre com um poema escrito à mão no bolso e o Héctor anda à procura do autor do poema, chegando a falar com muita gente, inclusive com Jorge Luis Borges. Ele diz que a memória só é verdadeira se for imperfeita. E o desenho é um pouco isso. É uma manipulação do que estamos a ver – as pessoas que desenhei não estão num espaço real, existe uma seleção do que se desenha…

E, neste caso, a memória é literalmente imperfeita, dada falha dos desenhos que faltam…

Eu fiquei sem vontade de fazer a exposição, mas houve quem me dissesse exatamente isso, que a história era engraçada e complementava a exposição… Mas eu preferia ter os desenhos. Em Bogotá há uma das maiores bibliotecas de diários de viagem, e, quem sabe, se os meus cadernos foram lá parar…

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