Juan Gabriel Vásquez: “Escrever é ler de forma combativa”

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Juan Gabriel Vásquez, vencedor do Prémio Literário Casa da América Latina/ Grupo Lena 2016, está entre os mais criativos autores da sua geração. Títulos como “Los Informantes” (2004), “Historia secreta de Costaguana” (2007) e “O barulho das coisas ao cair” (Alfaguara, 2012), fazem parte da obra publicada em 14 idiomas e mais de 30 países, com extraordinário êxito da crítica e do público.

Aos 43 anos, falou à Casa da América Latina (CAL) sobre “As Reputações”, a sua mais recente obra e quarto romance (o primeiro desde que voltou à cidade natal, Bogotá). Numa prosa minimal e mordaz, Juan Gabriel Vásquez propõe, através da figura de um cartoonista que revisita os últimos 28 anos da sua vida, uma “meditação sobre a fragilidade da memória privada”, assente em factos históricos que relatam a memória coletiva colombiana.

Prémio da Real Academia Espanhola em 2014, traduzida para o português por Vasco Gato (Alfaguara, 2015), esta obra foi distinguida por decisão unânime pelo júri do Prémio Literário Casa da América Latina/ Grupo Lena 2016, composto por José Manuel Mendes, Maria Manuel Viana e Pedro Mexia. A CAL vai entregar, no dia 8 de julho, pelas 18h00, este galardão ao escritor colombiano, numa cerimónia realizada na nova sede desta associação em Lisboa (Av. da Índia, 110).

Que tipo de pesquisa ou contacto direto realizou no sentido de retratar o protagonista da obra [um caricaturista]? Esta realidade já lhe era de alguma forma familiar?

Não, não me era nada familiar. Sempre fui leitor das caricaturas políticas: desde pequeno cresci rodeado de livros de Ricardo Rendón, o grande caricaturista dos anos 20, e de Héctor Osuna, um dos mais importantes das últimas décadas. Mas o ofício em si era-me completamente desconhecido. Para construir o personagem de Javier Mallarino fiz o mesmo que faço em todos os meus romances: ser jornalista. Visitei e entrevistei longamente vários caricaturistas, em particular dois: o colombiano Vladdo e o espanhol Andrés Rábago, “El Roto”. Dedicaram-me tempo e revelaram-me segredos, maneiras de ver o mundo e métodos de trabalho que acabaram por construir a minha personagem fictícia.

A abordagem do livro à temática do poder e importância da “reputação” é algo com que se identifica como escritor? Existe uma responsabilidade semelhante à de ser cronista/ caricaturista, no âmbito da criação literária?

A responsabilidade de um romancista é radicalmente distinta daquela que tem um jornalista de opinião. Comecemos por decidir o mais importante: não há ofícios mais opostos. O jornalista de opinião, caricaturista ou cronista parte de uma certeza e esmera-se por dar uma resposta. O romancista, em contrapartida, escreve a partir das suas incertezas, suas dúvidas, suas ignorâncias, e não quer responder, mas sim, fazer as melhores perguntas possíveis. Para mim, a responsabilidade do romancista consiste simplesmente em iluminar um lugar da experiência humana que antes estava obscuro para os leitores: em ampliar o nosso conhecimento da condição humana, e, se possível, ampliar também o território do que o romance pode fazer.

“As Reputações” acaba por fornecer um relato da vida política da Colômbia. Houve pormenores que decidiu filtrar? Como diria Gerardo Gómez a Mallarino, “afrouxou” em algum momento? Com que olhos vê o que se passa na atualidade do seu país?

Não omiti nada do que quis incluir. Como em todos os meus romances, “As Reputações” é também um ajuste de contas com os aspetos da vida do meu país que me parecem lamentáveis, tristes ou desprezíveis. Agora, o que acontece hoje no meu país é extraordinário: respondo a esta entrevista nos dias seguintes à assinatura dos acordos de paz entre a guerrilha das FARC e o governo colombiano. Pela primeira vez desde que nasci, despertei num país sem conflito armado. Porém, não sei o que diria Mallarino de tudo isto.

Aborda várias vezes o tema da memória, pessoal e coletiva, e como o esquecimento é um traço inevitável da sociedade colombiana. Este é um facto que o foi influenciando ao longo da vida? O livro procura contrariar esta tendência de esquecer?

A nossa relação com o passado está presente em todos os meus livros. Noutros, tratava-se de um passado público que afetava a vida privada: em “Os Informantes”, a perseguição a cidadãos alemães na Colômbia da Segunda Guerra, e em “O Barulho das Coisas ao Cair”, os anos do narcoterrorismo. Em “As Reputações”, pelo contrário, trata-se de um passado privado e de uma memória íntima. O romance transformou-se durante a escrita: o que começou por ser uma meditação sobre a fragilidade da imagem pública converteu-se, a partir de certo momento da narrativa, numa meditação sobre a fragilidade da memória privada. Como se alteram as nossas recordações? São firmes e invulneráveis, ou podem transformar-se? A memória é confiável ou é incerta? A obra propõe-se a explorar estas questões.

Qual é a sua visão geral da literatura que tem vindo a nascer na Colômbia e América Latina? Distancia-se dessa realidade?

Não me distancio. Pelo contrário, estou consciente e feliz de trabalhar numa tradição tão rica. A tradição que produziu contos como “O Sul” [Ficções – Artifícios, Jorge Luis Borges, 1944] e romances como “Cem Anos de Solidão” [Gabriel García Márquez, 1967] é um paraíso para um romancista do século XXI. Simultaneamente, a literatura é um desporto de contacto: escrevemos para enfrentarmos a tradição, lutar com ela e esperar que dessa luta resulte algo proveitoso. Escrever é ler de forma combativa. Desse combate com os nossos mestres saem os melhores livros, e os deuses da literatura sabem que nas últimas gerações se têm escrito muitas obras de grande valor.

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